O incêndio de Pedrógão Grande continua a lavrar. Continua aceso na nossa vida comum. E, no essencial, muitos continuam a não perceber o que está em causa.
Não vou falar da dor e do luto, nem das extraordinárias circunstâncias meteorológicas, nem das coisas que não terão estado tão organizadas como deviam estar, nem da pobreza de espírito de quem confunde política com politiquice irresponsável, nem das erradas concepções do mundo que não entendem que vivemos rodeados de incerteza - uma irredutível incerteza que exige um tipo de preparação (planeamento) completamente diferente daquele que seria útil se o mundo fosse essencialmente previsível.
Não vou entrar na conversa partidária de tentar distribuir culpas ou louros por este ou aquele. A humildade que o problema exige não toleraria essa função de distribuidor de culpas. Os que tentam atribuir notas positivas ou negativas para premiar ou condenar este ou aquele agente político, passado ou presente, não compreenderam algo muito simples: o que está em causa é a ineficiência do sistema de governação do país como um todo em matérias de prazo muito longo.
Não vejo ninguém, fora dos agentes políticos no sentido estrito, que acredite que a "culpa" seja desta ministra de agora ou daquele ministro de ontem. As pessoas percebem que o problema é que colectivamente, todos, ao longo do tempo, nos governos e nos parlamentos, e mais em todos os órgãos e instâncias onde se podia contribuir para decidir bem, nunca conseguiram fazer o suficiente para tomar um rumo certo, partilhado, persistente, determinado. As dificuldades de pensar e agir colectivamente transformaram-se na insuficiência da decisão e na insuficiência da acção. As pessoas, em geral, percebem que culpar o político A ou o político B é estultícia, neste caso. As pessoas culpam é "os políticos", isto é, toda a gente que devia tomar decisões e não conseguiu, em décadas, fazer isso com todos os ingredientes necessários.
A crise da capacidade de pensar e agir colectivamente é, até certo ponto, a crise do Estado. O Estado anda há muito a arder, porque há muito que muitos têm conseguido enfraquecer o Estado em matérias que não podem ser entregues a privados cujo primeiro interesse é o lucro. Não tenho nada contra quem, respeitando as regras, procura o lucro. Mas tenho contra que se confundam as funções do Estado com agentes cuja motivação estatutária é maximizar o lucro. A noção de funções de soberania não pode ser infinitamente enfraquecida, não porque sejamos "estatistas", mas porque isso implica péssimas consequências para a nossa vida em comum.
O Estado é uma marca civilizacional. Termos Estado só é possível por termos saído da selva. Quem nos tem querido levar de volta à selva (ao salve-se quem puder) tem responsabilidades, porque a infinita privatização tem consequências. Isso está à vista, tal como está à vista como podemos pagar caro a incapacidade de decidir de forma suficientemente robusta. O fogo também tem isto a dizer-nos.
29 de Junho de 2017