[Para memória, reproduzo aqui a entrevista que João Pedro Henriques me fez para o Diário de Notícias, publicada a 4 de Fevereiro de 2017 (em linha aqui).]
Porfírio Silva, um dos principais entusiastas dentro da direção do PS dos entendimentos do partido com as formações à sua esquerda, dá o passo em frente e vai mais longe: propõe que PS, Bloco de Esquerda, PCP e PEV comecem a conversar entre si um programa de governação a longo prazo. Uma "agenda para a década", diz, numa referência ao título do documento do PS que enquadrou a preparação do último programa eleitoral do partido. O dirigente socialista, próximo de Costa e membro do núcleo mais restrito de decisão no PS, lança no entanto também avisos de curto prazo: as autárquicas não podem fazer perigar a estabilidade do governo.
A nova atitude política do PSD expôs alguns problemas internos na maioria de esquerda. O governo foi obrigado a substituir a redução da taxa social única pela redução do Pagamento Especial por Conta. O que revela isto sobre o estado da arte na maioria de esquerda?
Revela para já no PSD uma falta de maturidade democrática e uma falta de coerência assinaláveis e lamentáveis. No nosso lado, isso revela que a maioria parlamentar de esquerda, ao fim deste tempo, revelou-se mais poderosa e interessante para o país do que poderíamos imaginar ao princípio. Se nos focarmos apenas na ideia de devolução de rendimentos e direitos, estaremos num plano. Mas na realidade, passado este tempo, já estamos num plano diferente, que é começarmos a fazer coisas que não estavam previstas nos acordos e começamos a ter mais ambição.
Isso quer dizer que as "posições conjuntas" foram curtas para aquilo que era preciso fazer?
Não. Se olharmos para os acordos, indicam uma coisa muito importante e que nem sempre tem sido sublinhada: colocamos o PS no ponto de vista da legislatura e os acordos também. Na realidade, há vários aspetos do acordo que não se satisfazem num ano ou dois. Há aspetos que precisam de uma legislatura para ser concretizados: combate à precariedade, a reanimação da negociação coletiva, o reforço do Serviço Nacional de Saúde e de outras funções sociais do Estado, a evolução continuada do salário mínimo nacional, a universalização da educação pré-escolar. São coisas que não se fazem num ano ou dois. Há muita matéria dos acordos que tem de ser vista, como os próprios dizem, na perspetiva da legislatura.
Mas não estão determinadas em concreto as medidas a tomar.
Os acordos não se resumem a dar respostas fechadas e definitivas para problemas. Os acordos indicam variadas áreas em que nos comprometemos a dar respostas ao país em conjunto. É claro que os acordos não são o programa de governo. Há trabalho a fazer. O importante é: nós pensamos numa perspetiva de legislatura. E importa sublinhar que a estabilidade política é essencial ao progresso social. É muito importante sublinhar: a esquerda deve mostrar ao país que somos tão capazes de dar estabilidade governativa como os outros.
Isso é uma recomendação para o PS, para o Bloco de Esquerda ou para o PCP?
É para toda a gente. Até diria mais: para já estamos numa perspetiva de legislatura. Para mim é absolutamente claro que o PS continuará a concorrer com as suas próprias listas. Mas acho que nós começamos todos a pensar noutra direção...
Ou seja, seria mais responsabilizante que, uma próxima legislatura, todos estivessem no governo?
Hoje posso confessar que quando isto estava a ser discutido internamente no PS eu era um dos que defendiam que era mais interessante ter um governo com todos do que ter um governo só do PS e uma maioria parlamentar plural. Mas não me foco na questão da fórmula, até porque reconheço que houve aspetos em que foi positivo ser um governo só do PS.
Por não se ter bloqueado o diálogo europeu?
Sim, terá sido mais fácil entrar no cenário europeu com esta fórmula governativa do que se fosse um governo de coligação. Mas não me quero concentrar nas questões de fórmula. Alguns já têm dito que precisamos de rever os acordos, outros prefeririam um programa comum. Eu não entro pela questão da forma, entro pela da substância. Temos de aumentar a ambição. E isso para mim significa responder a esta pergunta: que legado queremos deixar ao país ao fim de duas legislaturas? Estou a pôr a questão em termos de ambição estratégica. Em vez de pensarmos em termos anuais - Orçamento do Estado -, temos de pensar ao nível de Programa Nacional de Reformas. E até diria, voltando aos nossos próprios termos: precisamos de pensar numa agenda para a década, a esquerda tem de pensar uma agenda para a década. Precisamos de pensar estrategicamente a mais longo prazo. Quando dizemos que temos de reduzir estruturalmente as desigualdades excessivas que temos no nosso país, alguém pensa que se pode dar uma solução sustentada e duradoura apenas numa legislatura? Provavelmente não.
Portanto, a esquerda - e todas as componentes que integram a atual solução de governo - devia agora encarar seriamente a hipótese de começar a conversar entre si numa perspetiva de longo prazo.
Sim, sem dar um calendário, sem dar uma fórmula específica, acho que é preciso começar a pensar com outra ambição. Mas isso tem exigências próprias. Vou dar um exemplo de um tema que não podemos ignorar, em que precisamos de ter outro tipo de conversa: a questão europeia. O PS tem uma aposta na Europa que não é partilhada da mesma maneira nem pelo BE nem pelo PCP, e é uma questão central da estratégia para o país.
Mas o PS não pode estar à espera que o PCP, o BE ou o PEV agora se tornem europeístas?
Nenhum dos partidos está à espera que cada um dos outros deixe de ser aquilo que é. Mas assim como hoje nós podemos reconhecer que alguns alertas que o PCP deu no passado acerca dos riscos da integração europeia eram pertinentes, continuo a achar que Portugal deve estar na União Europeia [UE] e na zona euro. Isso não invalida que reconheçamos que o PCP deu alertas relevantes e pertinentes. Da mesma maneira, talvez outros partidos sejam capazes de reconhecer que o PS não é o Syriza - e ainda bem. O PS não é o primeiro Syriza, que pensou que ganhava afrontando os outros parceiros, nem é o segundo Syriza, que teve de aceitar coisas que nunca pensou aceitar. Talvez os outros parceiros estejam disponíveis para compreender que a via que o PS escolheu, sendo difícil, apesar de tudo tem produzido melhores resultados do que uma via de afrontamento com a UE.
Como é que se resolve a questão concreta da rejeição categórica do BE e do PCP ao Tratado Orçamental?
Em primeiro lugar, já não há Albânias, já não é possível estar isolado do resto do mundo. Penso que este governo tem demonstrado que, com todas as limitações que nós reconhecemos, tem permitido mudar algumas coisas. Hoje, Portugal não está isolado, tem parceiros, há vários países que olham para a experiência portuguesa como uma experiência interessante. Há um caminho, que é difícil, mas é um caminho que promete e concretiza mais do que um caminho de afrontamento. A esquerda não pode voltar ao nacionalismo. Não pode trocar o internacionalismo pelo patriotismo.
Sente que um dos fatores que vieram expor os recentes problemas dentro da maioria de esquerda foi a proximidade das eleições autárquicas?
Todos os partidos concorrem para ganhar. O PS quer continuar a ser o maior partido autárquico, ter a presidência da Anafre e da ANMP. Também entendemos que os outros partidos têm os seus objetivos, e isso é perfeitamente legítimo e normal. Mas seria absolutamente incompreensível, e até muito pouco de esquerda, que por causa da tentativa de obter alguns ganhos autárquicos se entrasse em táticas que pusessem em causa a solidez e a eficácia da maioria de esquerda no Parlamento. A única linha que acho que deve ser marcada é: não façamos das eleições autárquicas uma oportunidade para prejudicar a eficácia, a solidez e a estabilidade da maioria parlamentar e da governação.
E o facto de o Bloco e o PCP serem muito competitivos também complica as coisas?
Todas as relações com vários polos são complexas e não há só a dinâmica do PS com cada um dos outros partidos com quem subscreveu acordos, há as dinâmicas que já existiam de alguma diferenciação política e estratégica dos outros partidos. Mas isso faz parte da nossa democracia, são partidos diferentes, convergem numas coisas, divergem noutras, temos de viver com isso e não é o PS que vai dar lições sobre como o BE e o PCP se devem relacionar.
Neste momento exclui a possibilidade de uma interrupção da legislatura através da aprovação de uma moção de censura que passe com votos à esquerda do PS?
Acredito que a esquerda nunca dará a mão à direita para derrubar um dos parceiros da esquerda.
Derrubou em 2011.
Acho que já todos fizemos contas ao que aconteceu em 2011. E toda a gente percebeu que o que resultou disso não foi bom para o país.
Portanto, não se perspetiva que o PS venha a ter de apresentar uma moção de confiança ao seu governo.
Acho que só se apresentam moções de confiança quando se desconfia da confiança, e neste momento não há razões para duvidar da confiança.
Mas é uma opção que o PS não pode em absoluto excluir.
Todos os mecanismos previstos no nosso ordenamento constitucional e jurídico são recursos dos agentes políticos, mas o meu julgamento político é este: não vejo necessidade de moções de confiança porque não duvido da confiança.