2.12.16

O BE, a visita do Rei de Espanha ao Parlamento… e a democracia



Já devemos estar todos fartos deste assunto, mas ele tem ainda uma “variante” que deve ser escalpelizada – porque se resvala muito facilmente para ideias perigosas acerca do que é uma democracia representativa.

Obrigo-me a recapitular, para depois chegar ao meu ponto.

Desde o primeiro momento fui muito claro quanto à forma que o BE escolheu para abordar politicamente a ida do Rei Felipe VI à Assembleia da República. Escrevi no FB:
«A propósito do acolhimento do Rei de Espanha hoje na Assembleia da República e das civilizadas manifestações de distanciamento produzidas por alguns deputados... Sou republicano - mas os reis não são todos iguais e acho que vale a pena julgar o papel histórico de cada um em concreto. Acho que a actual dinastia da monarquia espanhola merece crédito, até pelo contributo que deu para a democracia espanhola. E não esqueçamos que foi legitimada democraticamente. Continuo a pensar que uma república é mais democrática do que uma monarquia? Continuo. Mas isso não me impede de respeitar um rei que, julgo, respeita a ordem constitucional do seu país, que é uma democracia.»
O BE tomou uma posição política, da qual discordei politicamente: nada mais normal em democracia. E mesmo entre parceiros políticos que não deixaram de ser diferentes.

Contudo, rapidamente, em certos meios, a conversa resvalou para a “teoria” de que a atitude do BE tinha sido “má educação”. Alguns até elogiavam a postura do PCP (levantar-se, mas não aplaudir) para insistir que o BE tinha sido “malcriado”. Sem prejuízo do reconhecimento de que a atitude do PCP foi mais subtil, ou mais diplomática, é inaceitável que a posição do BE seja tratada como uma questão de “educação”. Desde logo, há que rejeitar a hipocrisia de alguns deputados que passam a vida aos berros no parlamento, a agitar os braços e a bater na mobília, tentando sobrepor essas manifestações ao uso das palavras – e que, de repente, apontam o dedo a outros deputados acusando-os de falta de educação... por ficarem quedos e mudos. É preciso ter lata.

Mas, deixando esses “de lata” de lado, subsiste o ponto: reduzir a questão política a uma questão de educação? Não aceito. Foi uma posição política. Discordo dessa posição política. Mas foi uma posição política. Têm direito a terem essa posição. É legítimo que tenham essa posição. Eu discordo. Mas não reivindico para a minha discordância nenhum privilégio, nem nenhuma superioridade moral. A diferença política deve ser isso: diferença política. Faz parte da democracia. Tentar deslegitimar aqueles que tomam posições políticas dentro do quadro democrático, não ferindo nenhum valor fundamental - é atitude em que não alinho. Todos os deputados cumpriram a elegância institucional de se levantarem à entrada dos convidados e quando foram executados os hinos de ambos os países. Não conheço nenhuma regra parlamentar que convide os deputados a aplaudir uma intervenção, ou a levantarem-se no fim de uma intervenção. Aliás, os deputados à esquerda do PS também não aplaudiram o discurso do Presidente da Assembleia da República, que foi um excelente discurso, de um progressista crítico mas europeísta, com uma crítica da globalização desenfreada mas numa perspectiva que eu chamaria internacionalista. Politicamente, dei mais importância à falta de aplauso da esquerda da esquerda ao discurso de Ferro Rodrigues do que à falta de aplauso ao Rei de Espanha. Mas, isso, parece que não foi notado por nenhum dos escandalizados com a situação.

Entretanto, outro argumento surge (designadamente nas “redes sociais”) e corre, no essencial e descontadas as variantes, assim: os deputados representam-nos a todos, os portugueses queriam receber bem os Reis de Espanha, os deputados do Bloco deviam ter representado essa vontade dos portugueses e “feito boa figura” e, com a sua atitude, não respeitaram a vontade dos portugueses: receber bem o Chefe de Estado espanhol.

Ora, aqui, calma, porque entramos num perigoso pântano. E, aí, temos de ser claros.
Cada deputado não representa toda a gente. Cada deputado tem que representar a posição que entende corresponder ao encontro da sua opinião e da opinião dos que o elegeram. Ou, até, que corresponde à sua avaliação da situação, mesmo que tenha consciência de que os seus eleitores não partilhariam o seu ponto de vista – já que o deputado não é um mero porta-voz automático dos eleitores, tem uma responsabilidade própria. É a diversidade da representação, daí resultante, que faz a democraticidade do parlamento. Alguém pretender que todos os deputados deviam fazer assim ou assado, porque todos me/nos representam, é pretender que algum particular (algum grupo, alguma instância) pode determinar qual é “a posição de todos” para lá da diversidade do todo. É que, em democracia, o todo é inapelavelmente diverso. Democracia é diversidade. E o parlamento representa essa diversidade. Não há nenhum ponto de vista exterior a essa diversidade que possa determinar o que é comum e todos tenham de respeitar. Exigir que este ou aquele deputado, este ou aquele grupo parlamentar, faça A ou B, porque essa seria “a vontade de todos” – é, tenham disso consciência ou não, um raciocínio que está fora da lógica democrática.

Alguns dizem que este assunto é da espuma dos dias. Não é. É nestes interstícios da vida democrática que entram os perigos, quando, em vez de assumir as divergências políticas, tratando-as como tal, tratamos de excomungar a diferença com argumentos que tentam domesticar a representação em nome de qualquer “unicidade”.


2 de Dezembro de 2016