19.8.14

Eu... Eu... Eu...


A “Moção Política Grandes Opções de Governo” apresentada por António José Seguro às primárias do PS é um documento cuja substância me dispenso aqui de comentar (tenho-o feito noutros momentos). Acho que vale a pena ler (aqui) e ajuizar; creio que ninguém terá muitas dúvidas acerca do valor deste documento na sua função de “grandes opções de governo”. Pelo menos não perderão muito tempo: são cinco páginas e meia com espaçamento duplo entre as linhas.

De qualquer modo, como documento de “grandes opções de governo”, tem uma característica notável: é um documento na primeira pessoa do singular. Eu fiz, eu faço, eu farei, eu penso, eu isto, eu aquilo. Se a moda pega, ainda acabaremos por ter programas de governo assinados pelo primeiro-ministro e com frases do género: “Eu darei ordens ao Ministro dos Negócios Estrangeiros para ir a Bruxelas levar recados meus aos Comissários competentes.”

Dirão que brinco com coisas sérias. É verdade: isso resulta, francamente, de quão triste fico com esta exibição de uma espécie de monarquia-mais-ou-menos-constitucional num partido republicano, socialista, com tradições fortes de valorização do colectivo. E um colectivo democrático não é uma multidão a quem o chefe ouve com bonomia para depois fazer o que bem entende. A ideia de que “o líder ouviu muita gente e depois falou” não é a concepção de cooperação, de trabalho político partilhado, de construção comum que costuma estar associada às organizações políticas da esquerda democrática.

Uma “Moção Política Grandes Opções de Governo” escrita na primeira pessoa do singular é estranha à cultura do Partido Socialista e denota uma cedência ao “espectáculo” que por vezes substitui a substância e a consistência. Estamos cansados dessa confusão lamentável entre as instituições e as pessoas que devem servir as instituições. A pessoa, o indivíduo, o ser humano concreto, são muito importantes e não são meras peças do colectivo – mas isso não deve fazer-nos esquecer que a política democrática é servida por instituições e que os papéis que as pessoas desempenham na boa política ganham o seu sentido no quadro das instituições, nunca em vez das instituições.

Ah, pensará o leitor, isto não tem importância nenhuma; se o secretário-geral fala como parte do colectivo ou fala no modo “eu”, isso é apenas uma questão de estilo. Pois, o problema é que isso não é indiferente. Neste caso, mostra uma atitude política que acaba por ter consequências graves. Lembro, apenas, um episódio.

Quando, no princípio de 2013, o descontentamento com a prestação do PS levou vários dirigentes a ponderar a necessidade de uma alternativa ao rumo que Seguro imprimia ao partido, tendo-se até falado que António Costa poderia ser proposto como candidato a secretário-geral, tudo acabou naquilo que geralmente foi entendido como um acordo para manter as hostes unidas até às próximas eleições legislativas. Já nessa altura muitos militantes pensavam que Costa estaria em melhores condições para travar a receita de empobrecimento que a direita estava (e está) a aplicar ao país, bem como estaria mais habilitado para construir uma alternativa mobilizadora. Embora muitos militantes já naquela altura não acreditassem que Seguro pudesse fazer melhor do que tinha feito até então, António Costa assumiu o ónus de optar pelo apaziguamento, defendendo que se conversasse para encontrar uma linha estratégica onde todo o partido se pudesse reconhecer, de tal modo que não fosse necessário questionar o secretário-geral. Para se conseguir esse acordo foi preciso negociar, isto é, essa coisa singela de se trocarem propostas à procura de um texto que pudesse ser largamente aceite como base da futura estratégia. Esse processo resultou naquilo que veio a chamar-se “documento de Coimbra”, apresentado numa reunião da Comissão Nacional realizada naquela cidade a 10 de Fevereiro de 2013.

O que se passou, então, foi realmente premonitório. Seguro, em lugar de anunciar ao país o que se tinha realmente passado, valorizando o acordo alcançado entre dirigentes que tinham antes discordado; em lugar de valorizar a negociação e a aproximação de posições, coisa positiva num partido plural; em lugar de dar o devido destaque ao contributo de António Costa para esse acordo, porque Costa foi realmente o apaziguador naquele processo – em vez disso, Seguro veio fazer de conta que tudo aquilo era um processo centrado na sua pessoa, uma espécie de soberano individual que tivera a amabilidade de ouvir uma pluralidade de vozes, de dentro e de fora do PS, e que escrevera por sua alta recreação um texto com as conclusões da sua reflexão magnânima.

Seguro disse mais ou menos isto: Acordo? Isto não resulta de acordo nenhum. Negociação? Não, eu não negociei com ninguém. Eu ouvi várias pessoas, tive conversas sobre a vida do partido e tirei estas conclusões que aqui tenho. O documento é a expressão da minha convicção e do que eu considero melhor para o PS. Ah, sim, também o António Costa deu contributos, pois.

Esta “explicação” tinha, desde logo, um problema: era mentira. Mas, politicamente, este desempenho teria consequências desastrosas na vida política do PS. Porque a direcção do PS continuou a afunilar a sua intervenção focada na meta propagandística de projectar Seguro como um grande líder, que apenas aceitava rodear-se de quem não parecesse fazer-lhe sombra, em manifesto prejuízo de um alargamento das vozes que dessem expressão à pluralidade do partido e provassem ao país que ali havia um núcleo de uma alternativa de governo.

Deixo-vos um vídeo desse dia 10 de Fevereiro de 2013. Na altura, expressei neste blogue o meu desagrado com esta actuação. Eu tinha razão: esta actuação de António José Seguro prenunciava um estilo de soberano individual cercado de vozes que ele se dispõe a ouvir de modo mais ou menos inorgânico. O problema é que esse estilo talvez seja útil noutro tipo de organizações, mas não num grande e plural partido da esquerda democrática como é o Partido Socialista. Assim, uma “Moção Política Grandes Opções de Governo” apresentada no modo “Eu”, não é afinal tão inesperada como isso. Vinda de quem vem, é um estilo que estava prometido.