"Hotentote" é uma espécie de insulto inventado por brancos para designar certas tribos, incluindo o povo da personagem principal do filme Vénus Negra (realizado por Abdellatif Kechiche).
Trata-se de "um filme biográfico sobre a trágica história de Saartjes Baartman, uma mulher da tribo Khoikhoi que, no início do século XIX e devido às suas características físicas específicas, deixou o sul de África para ser exibida nos salões europeus sob o nome "Venus Hotentote", com promessas vãs de uma vida dourada. Chegada à Europa, depois de viajar por toda a Inglaterra em espectáculos de aberrações, é estudada por alguns dos mais conceituados naturalistas e anatomistas da época, que usaram as suas investigações para justificarem a inferioridade dos negros, num esforço claro de legitimação do racismo e escravatura." (mais info aqui)
Não querendo ser crítico de cinema, escrevo este apontamento para sugerir aos leitores que não se deixem desmotivar pelas inúmeras críticas depreciativas que têm sido feitas a este filme. Não está em causa a história, que é extraordinária na sua veracidade e, só por si, pelo menos para quem a não conhece ainda, faz com que mereça a pena ir ao cinema. Está em causa, muito para lá disso, o objecto estético que é o filme, que tem sido tratado como uma peça menor. Discordo absolutamente dessa depreciação, pelas razões que passo a expor.
Este filme dá a ver um zoológico onde só entram humanos. Especialmente, humanos em grupo. Os espectadores londrinos, consumidores populares de espectáculos de monstruosidades, são os primeiros apanhados na voragem daquela curiosidade adoentada que hoje alimenta certos espectáculos televisivos. Mas essa fase é só para nos apanhar, desprevenidos, a olhar de alto para gente vulgar e nós a pensar que de gente vulgar só pode vir tal comportamento grupal. Depois vêm os finos salões libertinos de Paris, apanhados na mesma lógica de matilha, a querer pensar que no seu gozo imenso seria legítimo acolher a exposição de uma mulher negra como parte das suas brincadeiras, sem verem que ela não tinha escolhido tais brincadeiras (embora os libertinos parisienses mereçam, de raspão, uma desculpa, como se se tivessem apercebido, e deplorado, o excesso). Mais ainda, como último grupo de animais no zoo humano, os cientistas - que, por mor da ciência, são menos exuberantes do que o vulgo, mas não menos predadores, não menos desrespeitadores, não menos cúmplices.
Neste filme, o protagonista não é a actriz que faz de Vénus Negra. Os protagonistas são os grupos de pessoas que, na voracidade do espectáculo, perdem qualquer noção da dignidade do humano, da dignidade do Outro. Ir ao cinema ver este filme é ir a um zoo humano, a uma exposição de comportamentos de grupos humanos em certas situações. O filme, pela sua duração, documenta o quanto isso pode chegar a fatigar-nos. Mas, perante este espectáculo dos comportamentos de que somos capazes, só o cansaço nos liberta do medo do espelho. Se não fosse sermos levados a estar cansados de ver aquilo, não teríamos como libertar-nos do medo de termos estado simplesmente ao espelho.
Claro, este não é um filme de Verão para refrigerantes e pipocas.
Trata-se de "um filme biográfico sobre a trágica história de Saartjes Baartman, uma mulher da tribo Khoikhoi que, no início do século XIX e devido às suas características físicas específicas, deixou o sul de África para ser exibida nos salões europeus sob o nome "Venus Hotentote", com promessas vãs de uma vida dourada. Chegada à Europa, depois de viajar por toda a Inglaterra em espectáculos de aberrações, é estudada por alguns dos mais conceituados naturalistas e anatomistas da época, que usaram as suas investigações para justificarem a inferioridade dos negros, num esforço claro de legitimação do racismo e escravatura." (mais info aqui)
Não querendo ser crítico de cinema, escrevo este apontamento para sugerir aos leitores que não se deixem desmotivar pelas inúmeras críticas depreciativas que têm sido feitas a este filme. Não está em causa a história, que é extraordinária na sua veracidade e, só por si, pelo menos para quem a não conhece ainda, faz com que mereça a pena ir ao cinema. Está em causa, muito para lá disso, o objecto estético que é o filme, que tem sido tratado como uma peça menor. Discordo absolutamente dessa depreciação, pelas razões que passo a expor.
Este filme dá a ver um zoológico onde só entram humanos. Especialmente, humanos em grupo. Os espectadores londrinos, consumidores populares de espectáculos de monstruosidades, são os primeiros apanhados na voragem daquela curiosidade adoentada que hoje alimenta certos espectáculos televisivos. Mas essa fase é só para nos apanhar, desprevenidos, a olhar de alto para gente vulgar e nós a pensar que de gente vulgar só pode vir tal comportamento grupal. Depois vêm os finos salões libertinos de Paris, apanhados na mesma lógica de matilha, a querer pensar que no seu gozo imenso seria legítimo acolher a exposição de uma mulher negra como parte das suas brincadeiras, sem verem que ela não tinha escolhido tais brincadeiras (embora os libertinos parisienses mereçam, de raspão, uma desculpa, como se se tivessem apercebido, e deplorado, o excesso). Mais ainda, como último grupo de animais no zoo humano, os cientistas - que, por mor da ciência, são menos exuberantes do que o vulgo, mas não menos predadores, não menos desrespeitadores, não menos cúmplices.
Neste filme, o protagonista não é a actriz que faz de Vénus Negra. Os protagonistas são os grupos de pessoas que, na voracidade do espectáculo, perdem qualquer noção da dignidade do humano, da dignidade do Outro. Ir ao cinema ver este filme é ir a um zoo humano, a uma exposição de comportamentos de grupos humanos em certas situações. O filme, pela sua duração, documenta o quanto isso pode chegar a fatigar-nos. Mas, perante este espectáculo dos comportamentos de que somos capazes, só o cansaço nos liberta do medo do espelho. Se não fosse sermos levados a estar cansados de ver aquilo, não teríamos como libertar-nos do medo de termos estado simplesmente ao espelho.
Claro, este não é um filme de Verão para refrigerantes e pipocas.