O Papa Bento XVI, na sua recente visita à cidade turca de Istambul, rezou na Mesquita Azul, virado para Meca. Que significado pode isto ter? Vejamos. Os cristãos e os muçulmanos, tal como os judeus, têm o mesmo Deus. Nada de estranho, portanto, que o Papa reze num lugar de oração de outra religião que partilha o mesmo Deus. E quanto ao rezar “virado para Meca”? O Papa acredita em Maomé como profeta? Se o Papa não assume Maomé como profeta, que significado pode ter virar-se para Meca, uma vez que essa orientação simboliza o respeito pelo profeta Maomé? Vejamos as coisas de outro modo. Se eu souber o que significa o sinal de trânsito redondo, de fundo vermelho, com uma faixa horizontal branca no centro (sentido proibido) e entrar a conduzir o meu automóvel particular numa rua à entrada da qual está colocado esse sinal, estou a desrespeitar esse sinal. Em dois sentidos: estou a ter um comportamento que vai contra o que prescreve esse sinal, e sei que estou a infringir o código da estrada. Diferentemente, se eu não souber o que significa aquele sinal, o mesmo comportamento é objectivamente uma infracção, mas eu, não sabendo disso, estou a agir de forma diferente. Em particular, não estou a concretizar qualquer acto consciente de infracção. Eu não posso desobedecer conscientemente a uma regra que não conheço. O símbolo (o sinal de trânsito) é um facto material, mas não é só isso. O sentido do que eu faço perante um símbolo depende do que eu reconheço nesse símbolo. Voltando ao nosso assunto: se o Papa não reconhece o profeta Maomé, que sentido tem que ele reze virado para Meca? Será pura encenação? Não. Pode ser outro acto simbólico. Faz certos gestos, não porque lhes dê a mesma interpretação que os seus anfitriões turcos, mas para significar que os respeita. Para significar que entende os seus símbolos e os respeita. Mas isso, note-se, é algo que escapa ao mundo apenas material.
A ponte mais comum entre o natural (o que não fomos nós que fizemos) e o artificial (o que fomos nós, ou alguém por nós, a fazer) são as próteses. A ponte liga o lado de cá, de onde queremos sair (o corpo herdado e os seus caminhos que nada nos perguntam se queremos) com o lado de lá, para onde queremos ir (segundo as nossas necessidades percepcionadas, ou segundo a nossa imaginação desejante). Podemos querer realizar o sonho de Ícaro - ou podemos querer uma alma toda nova. Montados nas próteses, o calor do sol é o nosso limite. Tal como Ícaro aprendeu, contudo, tarde de mais... Pois.
Parte da "agenda oculta" deste blogue passa por namorar uma certa inestética da crítica (que palavrão...). Quem conheceu os portugueses Ena pá 2000 no seu início pode fazer uma ideia do que queremos dizer (pena que se tenham deixado cair na facilidade). O vídeo que se pode ver clicando abaixo é um exemplo do que, por esse lado, me apetece. São os Flying Lizards a executar "Money". A letra é uma sátira simples mas eficaz. A encenação beneficia da incrível "cara de pau" da vocalista. Quanto à música: aqueles que a achem primária sempre podem fazer um esforço de memória para a comparar com as variadas peças para "instrumentos de brinquedo" compostas pelo "clássico contemporâneo" John Cage.
ADENDA:
Uma vez que se trata de uma versão de uma canção dos Beatles, aqui vai a letra original:
Money
The best things in life are free
But you can keep them for the birds and bees
Now give me money
That's what I want
That's what I want, yeah
That's what I want
You're lovin' gives me a thrill
But you're lovin' don't pay my bills
Now give me money
That's what I want
That's what I want, yeah
That's what I want
Money don't get everything it's true
What it don't get, I can't use
Now give me money
That's what I want
That's what I want, yeah
That's what I want, wah
Money don't get everything it's true
What it don't get, I can't use
Now give me money
That's what I want
That's what I want, yeah
That's what I want
Well now give me money
A lot of money
Wow, yeah, I wanna be free
Oh I want money
That's what I want
That's what I want, well
Now give me money
A lot of money
Wow, yeah, you need money
now, give me money
That's what I want, yeah
that's what I want
Continuamos (e terminamos) a explicação do que vem a ser isso de "Machina Speculatrix".
As entranhas electromecânicas anteriormente descritas traduzem-se num reportório de comportamentos das "tartarugas": exploração; fototropismo positivo; fototropismo negativo; evitamento de obstáculos.
No decurso do comportamento de exploração, o motor de tracção está a meia velocidade, fazendo avançar a máquina devagar na direcção em que esteja a roda da frente. O motor de direcção está na máxima velocidade, fazendo rodar continuamente a estrutura frontal, que inclui a roda motora – há por isso uma mudança contínua de direcção – e a célula fotoeléctrica, que assim está sempre a “esquadrinhar” o ambiente. A combinação de movimento linear e rotação confere uma trajectória cicloidal à máquina. Este comportamento ocorre no escuro ou enquanto não houver luz suficiente para activar a célula fotoeléctrica.
O comportamento de fototropismo positivo tem lugar quando, na presença de uma fonte de luz moderada, a célula fotoeléctrica é activada e o motor de direcção deixa de receber corrente (pelo que não pode fazer rodar a estrutura central, mantendo-se assim inalterada a direcção e a posição do “olho”). O motor de tracção recebe corrente máxima e acelera a máquina em direcção à fonte luminosa detectada. Frequentemente, porém, no momento em quer a célula fotoeléctrica capta luminosidade a máquina não está virada exactamente para a fonte luminosa. O desvio progressivo daí resultante acaba por reduzir a intensidade da luz recebida abaixo de um determinado limiar. Provoca desse modo uma passagem ao comportamento de exploração, que resulta numa reorientação e regresso ao comportamento de fototropismo positivo (o que pode repetir-se várias vezes).
Ilustração do comportamento de fototropismo positivo.
O comportamento de fototropismo negativo tem lugar quando a máquina se aproxima muito da fonte luminosa e a célula fotoeléctrica é impressionada acima de um certo limiar. Nessas circunstâncias, o motor que faz rodar a direcção passa a trabalhar a meia corrente e o motor de tracção opera à velocidade máxima, provocando uma “fuga” da fonte luminosa.
O comportamento de evitamento de obstáculos é despoletado quando a carapaça da “tartaruga” toca num obstáculo e o desequilíbrio resultante faz com que ela toque nos sensores de contacto. Isso provoca uma alteração no circuito eléctrico, fazendo com que passe a funcionar como um oscilador, abrindo e fechando os relés 1 e 2 alternada e rapidamente (fazendo alternar o funcionamento dos dois motores). Isso faz com que a máquina vire, recue e avance repetidamente, por vezes empurrando mesmo o obstáculo. Enquanto está nesta condição, a máquina não reage à luz (enquanto funciona como oscilador, o circuito eléctrico é praticamente insensível a outros sinais). Esta condição dura, de cada vez, cerca de um segundo.
Poucos anos depois de ter construído as suas primeiras “tartarugas”, Grey Walter fornece uma elaboração dos princípios da sua investigação com vista a uma “imitação” razoável de um animal simples. Nessa altura acrescenta mais alguns comportamentos aos seus “animais artificiais”. Por exemplo, o auto-reconhecimento e o reconhecimento mútuo entre dois animais artificiais, que se explica como segue.
Comportamento de auto-reconhecimento. Uma vez que são dotadas de uma lâmpada piloto (que só permanece acesa quando funciona o motor de direcção), as “tartarugas” desenvolvem um comportamento de auto-reconhecimento. Quando, com a lâmpada acesa, enfrentam um espelho, dirigem-se para a fonte luminosa que assim detectam. Uma vez que passam ao comportamento de se dirigirem directamente para a luz, o motor de direcção pára e a lâmpada apaga-se. Como a lâmpada se apaga, cessa o comportamento de tropismo positivo e volta a funcionar o motor de direcção, para recomeçar a exploração. Com o motor de direcção de novo a funcionar, a lâmpada acende-se de novo – e recomeça o ciclo. E assim sucessivamente. Walter diz que isto é um comportamento de auto-reconhecimento, de que mesmo muitos animais superiores não são capazes.
Comportamento de reconhecimento mútuo. Pelo mesmo mecanismo descrito anteriormente, duas “tartarugas” desenvolvem um comportamento “social” específico da sua “espécie”. Trata-se de um “desejo” que não pode ser consumado: cada “tartaruga” vê a lâmpada da outra e dirige-se para ela, mas quando está nesse comportamento (tropismo positivo) apaga a sua lâmpada e, assim, desorienta a outra.
Grey Walter também considera que os seus animais artificiais zelam pela sua própria sobrevivência. Sendo as tartarugas “alimentadas” por baterias, existe uma “cabana” onde está o recarregador de baterias. Essa “cabana” está sinalizada por uma luz intensa. Durante a operação normal, as “tartarugas” não se aproximam muito desse local (fototropismo negativo) – mas, quando as baterias descarregam para lá de um certo ponto, o comportamento dos circuitos eléctricos é modificado de modo que “a moderação dá lugar ao apetite”: a máquina dirige-se à luz intensa, entra na cabana, liga-se ao recarregador de baterias, os motores e os sensores são desligados e só voltam à operação normal depois de ter terminado o período de “refeição” das “tartarugas”.
“…moderation gives place to appetite.” Machina speculatrix finds her way home.
Grey Walter, com os seus “animais artificiais”, opunha-se ao nascente império dos computadores electrónicos digitais como instrumento para realizar uma “Inteligência Artificial”. Pioneiro da robótica inspirada na biologia, Walter descarta, como desinteressantes para a investigação que prosseguia, os computadores. Os computadores, tal como os autómatos baseados em “mecanismos de relojoaria”, são vistos como máquinas de “comportamento predestinado” ao estilo do século XIX, cujo comportamento está limitado a uma série de movimentos planeados com antecedência. A variedade de movimentos proporcionada pela programação não dota a máquina de qualquer autonomia, de qualquer movimento espontâneo, de qualquer forma de auto-regulação. Walter, que pertencia ao círculo dos cibernéticos britânicos, critica aos cibernéticos americanos neste ponto. Escreve Walter que a programação de máquinas para fins específicos pode resultar em máquinas muito úteis, capazes de suplantar o humano em certos trabalhos – mas essas máquinas não serão de interesse para o fisiologista e nada nos ensinarão sobre o cérebro. Em seu entender, era tempo de começar a pensar em máquinas que, além de responderem “sim” ou “não” ou vomitarem séries numéricas (como os computadores), também soubessem responder “talvez” (como as suas tartarugas, sem mecanismos de cálculo, apenas dotadas de mecanismos para comportamentos corporais).
Eis, pois, de onde vem a designação deste blogue, Machina Speculatrix. Esta muito actual encruzilhada entre natural e artificial será inspiração das nossas reflexões sobre as ciências do artificial – mas também não deixará de nos interrogar acerca daquilo que ameaça tornar-nos máquinas de carne no nosso próprio mundo.
[Para uma exposição mais técnica do que foi o trabalho de Grey Walter, pode aceder-se com facilidade ao seguinte texto: Owen HOLLAND, “Exploration and high adventure: the legacy of Grey Walter”, in Philosophical Transactions of the Royal Society of London, Parte A, 361, pp. 2085-2121. Versão electrónica deste artigo no sítio http://www.journals.royalsoc.ac.uk/. ]
Vamos então cumprir a promessa de explicar de onde vem isto de Machina Speculatrix. Para começar, teremos um texto longo, tão longo que se espera não volte a repetir-se neste blogue – mas, deste modo, muito se explica da identidade deste espaço.
Machina Speculatrix eram “tartarugas electrónicas” construídas por Grey Walter no final dos anos 1940. As duas primeiras “tartarugas electrónicas” chamavam-se Elmer (ELectroMEchanical Robot) e Elsie (Electromechanical Light-Sensitive robot with Internal and External stability) e foram construídas em 1948 e 1949.
Imagem do catálogo da exposição "1951 Festival of Britain, the Exhibition of Science", aberta ao público em South Kensington com o objectivo de mostrar as perspectivas da ciência no pós-guerra.
O que Grey Walter pretendia era fazer imitação científica da vida por meios artificiais, “electrobiologia”. A foto abaixo, mostrando o senhor e a senhora Walter, o filho de ambos e a “tartaruga” Elsie, levava a seguinte legenda: Ce couple a deux enfants dont un électronique.
Esta pretensão de familiaridade com os humanos inscreve-se na pretensão de que todos, tanto os “humanos naturais” como as “tartarugas artificias”, são animais. É por isto que Grey Walter é considerado um pioneiro da robótica inspirada na biologia.
Uma Machina Speculatrix com carapaça transparente para deixar ver as entranhas.
Mas o que eram as tartarugas electrónicas? Cada Machina Speculatrix tinha a estrutura de um carrinho de três rodas, sendo que as rodas traseiras são passivas e a roda da frente é a responsável pela tracção e pela direcção. A aparência de “tartaruga” era dada por uma carapaça metálica que cobria praticamente todo o conjunto. A máquina era dotada de dois sensores (uma célula fotoeléctrica e um comutador mecânico sensível à pressão) e dois efectores (dois pequenos motores eléctricos, um responsável pela tracção e outro responsável pela direcção). O essencial do mecanismo eléctrico interno era constituído por duas válvulas amplificadoras e por dois relés. A imagem seguinte, onde a tartaruga aparece sem carapaça, dá uma ideia do interior da máquina.
Na parte anterior da “tartaruga” encontra-se uma estrutura vertical onde estão montadas algumas das peças mencionadas. No topo a célula fotoeléctrica, em baixo a roda motriz e o respectivo motor de tracção, ao meio uma lâmpada (que em funcionamento se vê através de uma abertura na carapaça) que acende sempre e apenas quando o motor de direcção está em funcionamento. A célula fotoeléctrica está alinhada com a roda da frente e encontrava-se protegida por uma “viseira” de tal modo que só recebia luz numa direcção. Esta estrutura vertical roda sobre si mesma comandada por uma roda dentada que por sua vez é movida pelo motor de direcção instalado no “corpo” do “carrinho”.
Na parte superior do “corpo” do “carrinho”, muito próximo da carapaça quando esta esteja colocada, está montado um comutador mecânico com botões que funcionam como sensores de contacto: quando a “tartaruga” se encontra num plano inclinado ou choca com um obstáculo, a carapaça prime esses sensores.
Como máquina eléctrica, a “tartaruga” é basicamente constituída por dois circuitos. O primeiro circuito controla a alimentação de cada um dos motores pela bateria. Este circuito é controlado por dois relés electromecânicos. O segundo circuito controla precisamente o funcionamento desses relés. O elemento central deste segundo circuito são duas válvulas electrónicas funcionando como amplificadores.
(Amanhã continuamos e terminamos esta explicação do que vem a ser isso de "Machina Speculatrix". Veremos, então, vários "comportamentos naturais" destes "animais artificiais".)
Acabei uma tarefa de quatro anos. A tese de doutoramento está entregue, ainda há-de demorar a discussão e qualquer coisa que se lhe siga. Não é que tenha pouca coisa para fazer, mas a disciplina agora mudou. É, pois, tempo de regressar, com calma. Digo regressar porque se trata de retomar, em larga medida, um projecto que aqui andou há uns dois anos atrás. Falo do Turing Machine, que ainda existe (embora em estado cadavérico). Nos próximos dias vou aqui inaugurar alguns dos temas que estruturarão este espaço (lista dos temas na coluna da direita). Entre outras coisas vou explicar (justificar?) aquela coisa de "Machina Speculatrix". Não é por acaso, não: é uma geração diferente daquela em que encontramos a Máquina de Turing, mas trata-se ainda da mesma família. Para complicar ainda mais este programa de intenções: em geral, teremos pequenas "postas" todos os dias úteis. Aos sábados e domingos fechamos para balanço (ou descanso, porque o descanso dá muito balanço). Prometer é fácil; logo se verá se se cumpre. Para verificarem com os vossos próprios olhos, apareçam.
«O atraso de Portugal é grande. A economia é deficitária. Mesmo que se eliminassem todos os lucros da grande burguesia e se procedesse a uma melhor distribuição da riqueza, o produto nacional não asseguraria, ao nível actual, a acumulação necessária para um desenvolvimento rápido e uma vida desafogada para todos os portugueses. Para o melhoramento das condições de vida gerais será necessário aumentar a produção em ritmo acelerado. E isso obrigará não só a investir como a trabalhar mais e melhor.»
Álvaro Cunhal, discurso ao VII Congresso do PCP, Outubro de 1974 ____________________________________________