22.2.25

A Ucrânia, Putin, Trump e os servos




O regresso a um imperialismo americano bárbaro, com Trump e Putin, vem acompanhado de um odor nauseabundo à mentalidade dos servos: alguns dos servos falando como se fossem de esquerda.



Embora já se esperasse que a segunda vitória presidencial de Donald Trump nos EUA traria uma fragilização da posição da Ucrânia na guerra com a Rússia, creio que ninguém esperava exatamente o que se está a passar. Trump e Musk, ao mesmo tempo que tratam de destruir as instituições dos EUA - um processo que vem sendo preparado ao longo dos anos, designadamente minando o aparelho judicial, um alerta para aqueles que pensam que estão protegidos contra a emergência de ditaduras -, lançaram-se desenfreadamente em campanha aberta a favor de tudo o que seja extrema-direita, especialmente na Europa Ocidental; ameaçaram o uso da força contra várias nações independentes, incluindo países europeus; adotam, crescentemente, a narrativa de Putin acerca da invasão russa da Urânia e, cereja no topo do bolo, Trump e Musk querem colonizar a Ucrânia - isto é, querem apoderar-se das suas riquezas naturais, como pagamento do apoio que os EUA deram no passado ao esforço de guerra ucraniano. Quer dizer: Trump quer vingar-se do apoio (interessado) que Biden deu à Ucrânia.

No meio de tudo isto, a União Europeia paga o preço do acumular das suas cegueiras estratégicas.

A UE não viu que precisávamos de um sistema de segurança comum na Europa, que fosse confortável para o “Ocidente” e, também, para a Rússia - porque é estultícia esquecer que a questão da paz não é uma questão entre amigos, a questão da paz é uma questão entre adversários ou inimigos. São os adversários ou inimigos que precisam de tratar da paz entre si, não é inteligente pensar que só nos interessa a paz entre amigos. Querer ter paz na Europa desprezando os interesses de segurança da Rússia é uma arrogância que se paga caro, como se vê.

Do mesmo modo, a UE não viu que a aliança de segurança com os EUA estava minada por uma previsível divergência de interesses estratégicos com os EUA, que se tornaria notável a qualquer momento quando os EUA mostrassem mais claramente a sua faceta imperialista mais bárbara. Como está a acontecer agora. E os fracos líderes que pululam na UE preferiram manter a ilusão da “paz perpétua” sob o “guarda-chuva americano” e fazer de conta que não era preciso pensar na nossa própria segurança, com as consequências que estão à vista.

Talvez, para mim, mais inesperadamente, os dias mais recentes produziram um micro-fenómeno curioso: gente que se pinta como muito de esquerda anda radiante com as novas bençãos que Trump e Musk dão a Putin e com os renovados ataques que o “eixo do mal” de cabeça dupla na Sala Oval desferem contra o governo da Ucrânia. A narrativa de desculpabilização do infrator volta a circular - com gente tão de esquerda por cá a aproximar-se da, agora, tese de Trump segundo a qual a iniciativa da guerra foi da Ucrânia. Renasce a conversa de que mais valia termos sido simpáticos com Putin. Numa palavra: opinadores com mentalidades de servos brilham, agora, de novo, à luz do dia, iluminados pela estrela dupla Trump-Musk!

Queria, com o resto deste apontamento, fazer duas coisas, neste momento grave do nosso mundo: reafirmar um certo número de posições que são as minhas; mostrar que essa é a linha que sigo desde o primeiro dia desta guerra.

 Quanto ao primeiro ponto, reafirmar posições que têm sido as minhas desde a invasão russa da Ucrânia:

  • é inaceitável a iniciativa de atacar outro país pela força, a Rússia tem de perceber que isso tem consequências - mesmo que tenhamos, nós, europeus, um preço a pagar por essa afirmação da liberdade;
  • a responsabilidade russa pela agressão não desculpa “o Ocidente” (incluindo a UE) das suas próprias responsabilidades por não ter procurado um modus vivendi com a Rússia após a queda da União Soviética: a fraqueza russa após o colapso da URSS foi aproveitada para tentar humilhar a Rússia, desprezando os seus interesses de segurança, o que, para cúmulo dos escândalos, foi sendo combinado com os interesses de alguns em se fazerem a guarda avançada dos interesses russos na economia de alguns países europeus;
  • não é aceitável confundir Putin com o povo russo, mesmo que a maioria dos russos aprovem as ambições do seu Presidente - quanto mais não seja por respeito por aqueles que também sofrem, internamente, os efeitos da ditadura putinista;
  • estando em guerra, é preciso procurar a paz: o apoio à resistência ucraniana nunca deveria ter excluído a procura de caminhos de negociação, para tentar acabar a guerra o mais depressa possível, atendendo até aos pesados custos que os povos europeus foram pagando por esse conflito, mas atendendo, também, às dificuldades causadas a muitos outros países por esta guerra na Europa (é incrível como os dirigentes europeus ignoraram, ou desprezaram, o peso desta situação para muitos países amigos, por exemplo em África); a arrogância com que os países ocidentais descartaram todos os países que tentaram posicionar-se como eventuais pontes… só demonstra uma arrogância irresponsável;
  • não saímos daqui sem largarmos a ideia de que o mundo pode ser seguro se for seguro só para nós: precisamos de uma sistema de segurança comum que não faça de conta que todos os países são amigos uns dos outros e que seja capaz de lidar com as rivalidades realmente existentes no nosso mundo;
  • é impossível a UE ganhar a batalha pelo respeito pelo direito internacional se tiver duplo padrão de adesão ao direito internacional: a pretensa firmeza na Ucrânia e a patente desresponsabilização no Médio Oriente, quando metidas no mesmo saco produzem uma incoerência que será, a prazo, fatal;
  • não é aceitável meter no mesmo saco a competição económica e os conflitos armados - e, por isso, não devemos apoiar as pretensões de nenhuma potência para ameaçar outros países pela força quando o que está em causa são motivos económicos e não legítimos interesses de segurança.
Quanto ao segundo ponto - mostrar que há uma linha que sigo desde o início desta guerra -, ele é relativamente facilitado por ter tido acesso regular à expressão dos meus pontos de vista no espaço público. Assim, passo a transcrever aspetos das minhas declarações, escritas ou orais, em diferentes meios, indicando sempre o link onde uma leitura/audição mais abrangente do contexto pode ser verificado.

24 de fevereiro de 2022, Facebook:

A ouvir o PCP no Parlamento tenho a impressão de que percebi mal as notícias desta madrugada: afinal, foi a Ucrânia que invadiu a Rússia?!

(Clicar aqui para verificar o original.)

14 de maio de 2022, Facebook:

Leio por aí um certo número de escritos que parecem dizer muitas coisas acerca da guerra provocada pela invasão russa da Ucrânia, sendo, afinal, apenas variações de uma única ideia: deixem a Rússia fazer, porque a Rússia é enorme e pode fazer-nos mal, não obstaculizem Putin porque ele é forte. É o tipo de ideia que só pode ser produzida por gente com mentalidade de servo. O salazarismo viveu muitos anos à conta de massas com essa mentalidade. E, não, ser de esquerda é incompatível com ter mentalidade de servo.

(Clicar aqui para verificar o original.)

24 de maio de 2022, Facebook:

O jornal Público publicava uma notícia intitulada «Kissinger apela ao Ocidente para não infligir derrota pesada a Moscovo e pede “sensatez” à Ucrânia». Republiquei, com o seguinte comentário:

Não se pode dizer que Kissinger tenha as mãos imaculadas. Mas talvez faça entender duas ideias importantes: a primeira, que uma segurança comum é a segurança para todas as partes, não apenas para uma das partes; a segunda, que uma guerra mal resolvida trará no seu bojo, não a paz, mas guerras futuras.

(Clicar aqui para verificar o original.)

24 de junho de 2022, “Ucrânia e UE: os variados prémios à Rússia e o engodo dos momentos históricos”, in Machina Speculatrix:

Se a Rússia, com a invasão e a guerra, conseguir desorientar a UE, se conseguir afetar a coesão interna da UE, se conseguir que dentro da UE se relativizem valores, que se esqueçam princípios, que os procedimentos ad hoc se sobreponham a métodos de decisão apurados ao longo de décadas, se conseguir abanar as instituições da UE, então a Rússia terá obtido um enorme prémio pela sua agressão à Ucrânia. A Rússia quer uma UE fraca, por isso apoia as extremas-direitas que cá dentro trabalham contra as nossas democracias. Se conseguir, por esta via, enfraquecer a UE, a Rússia terá um prémio que o invasor não devia obter. A benevolência com que hoje se olha para Estados-Membros que não respeitam o Estado de direito, como a Polónia e a Hungria (a par da simpatia com que, na NATO, se lida com as pretensões da autocracia turca) é um sinal perigoso desse risco de erosão da União Europeia (o risco de voltarmos ao estilo da guerra fria, onde todo o julgamento político se resume a "está por nós ou está contra nós?" face ao "outro lado").

(Clicar aqui para verificar o original.)

30 de julho de 2022, Facebook:

(…) ser contra a invasão, e querer que os ucranianos a possam repelir, não é equivalente a esquecer que o Ocidente tem responsabilidades na gestão do caminho que nos trouxe até aqui. Ser contra a invasão não é equivalente a aprovar todos os métodos das autoridades ucranianas. Ser contra a invasão é estar do lado dos que sofrem com a guerra, sem dúvida, mas não é confundir os russos com Putin. Ser contra a invasão não nos pode obrigar a engolir todas as manobras para aproveitar politicamente a situação (desde logo, os que querem mudar a relação de forças dentro da UE à custa da guerra da Ucrânia).

(Clicar aqui para verificar o original.)

11 de agosto de 2022, Facebook:

(…) a PM da Estónia defende a proibição do turismo de cidadãos russos para a Europa. Parece que a PM da Finlândia defende o mesmo. Parece-me um posicionamento absolutamente absurdo. Condeno Putin, um ditador, e condeno a invasão da Ucrânia. Mas, seja dito com toda a clareza, este tipo de posições confunde Putin com os russos. E isso é inadmissível. É, além do mais, uma profunda falta de respeito pelos cidadãos russos que se opõem à ditadura de Putin. Insistir no ressuscitar do espírito da guerra fria é politicamente criminoso.

(Clicar aqui para verificar o original.)

23 de novembro de 2022, Casa Comum, Rádio Renascença:

Neste dia, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução no sentido de que a Rússia seja declarada um Estado patrocinador do terrorismo. Nesse mesmo dia, no programa de debate semanal onde era, na altura, comentador residente, disse:

Desde o primeiro minuto que condenei claramente a invasão da Ucrânia pela Rússia e tenho aqui dito várias vezes que a Rússia não pode ter um prémio por essa agressão. Dito isto, eu considero que é um erro monumental do Parlamento Europeu ter aprovado a resolução, hoje, em que declara a Rússia como um Estado promotor ou patrocinador do terrorismo.

O plano dos conceitos políticos e o plano da batalha política não pode prejudicar a eficácia e eficiência do plano jurídico e da capacidade para as instâncias penais internacionais perseguirem e condenarem os responsáveis por atos inaceitáveis, mesmo durante uma guerra, porque a guerra não é o vale-tudo, a guerra também tem regras. (…)

(…) estar a meter um conceito que é um conceito que juridicamente significa uma coisa deste lado do Atlântico, que significa outra coisa nos Estados Unidos, que tem implicações jurídicas pouco conhecidas, um conceito vago, meter este conceito numa luta que é política e tem que ser política, e é a luta pelo direito da Ucrânia à independência e à autodeterminação, acho que é incorreto.

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22 de março de 2023, Casa Comum, Rádio Renascença:

A propósito da visita de Xi Jinping à Rússia e do plano de paz para a Ucrânia apresentado pela China:

Eu tenho sempre insistido que o invasor não pode ter um prémio e que nenhum plano de paz pode ser manipulado para dar à Rússia aquilo que ela quis com a invasão Mas também tenho insistido que é preciso encontrar caminhos para acabar com o sofrimento do povo ucraniano e também com o sofrimento de todos aqueles que nos outros países são atingidos pelas consequências desta guerra.

Eu não seria tão radical como os Estados Unidos na reação ao plano apresentado pela China. Eu acho que é preciso olhar com atenção para as propostas da China e ver se elas não podem permitir começar à procura de um caminho. Os Estados Unidos desconfiam tudo o que vem da China. Nós sabemos disso. Mas o nosso interesse nessa matéria não é necessariamente coincidente em todos os pontos com o interesse dos Estados Unidos.

(Clicar aqui para verificar o original.)

5 de abril de 2023, Casa Comum, Rádio Renascença:

Por ocasião da adesão da Finlândia, um país tradicionalmente neutral, à NATO:

(…) esta adesão foi forçada pela invasão russa da Ucrânia. Antes da invasão russa da Ucrânia não havia nenhum sinal de um debate sobre a adesão à NATO na Finlândia, não havia em nenhum país da NATO nenhuma perspectiva ninguém, tinha pensado na adesão da Finlândia à NATO e, portanto, isto é uma resposta a um ato de agressão cometido pela Rússia e não podemos perder isso de vista.

E, acrescentava:

Toda esta situação mostra o fracasso do conjunto da comunidade internacional em criar um sistema de segurança coletiva. Isto é, um sistema de segurança para todos, mesmo para aqueles que não são amigos. Mesmo para aqueles que são adversários. E, portanto, a incapacidade de criar um sistema que inviabilize o recurso à guerra como meio para resolver divergências. O mundo precisa de uma ordem internacional onde ninguém se sinta autorizado a tomar uma ação de força só com base no seu próprio juízo e precise de respeitar a ordem internacional, a lei internacional. Nós temos que ter consciência que, por um lado, a Rússia tem desafiado sucessivamente a ordem internacional. Lembremos, por exemplo, da intervenção na Geórgia em 2008, ou a anexação da Crimeia em 2014.

Mas temos de ter também consciência que os países ocidentais também deram, em alguns momentos, sinais errados acerca do respeito por essa ordem internacional. A invasão ilegal do Iraque em 2003, por exemplo: claramente, não apenas erradamente motivada, porque os argumentos invocados afinal eram falsos, mas, ainda, em claro desrespeito pela a ordem internacional. E não podemos, também, esquecer, por exemplo, toda a problemática que diz respeito aos bombardeamentos da Nato sobre a Sérvia e o Montenegro no fim da década de 90, que também foram feitos sem cobertura do Conselho de Segurança.

Isto põe uma questão essencial: nós olhamos para uma ordem internacional que não tem os meios, não tem as instituições adequadas para garantir a segurança de todos.

(Clicar aqui para verificar o original.)

19 de novembro de 2024, Facebook:

Eu não gostaria de uma paz que fosse um prémio ao invasor, porque isso alimentaria a voracidade do agressor. Contudo, não se constrói - nem se procura - a paz falando apenas com um dos lados. A histeria dos que atacam todos os que procuram preservar a possibilidade de mediação (por exemplo, a histeria dos que atacam o SG da ONU sempre que procura manter o respeito institucional por todas as partes que deveriam entender-se) é desprezo cru pelo sofrimento que a guerra espalha.

Temos de estar preparados para a guerra, é certo neste mundo real em que vivemos - mas isso será pura desumanidade se não estiver acompanhado de um esforço real e concreto para fazer a paz.

Claro que o duplo padrão exibido por muitos países ocidentais quando toca à questão da Palestina, onde o respeito pelo direito internacional já parece muito relativo, mostrando a face hipócrita de alguns supostos "valores elevados", só torna tudo isto mais repelente. Tão repelente como os que arranjam desculpas para a Rússia agressora e depois nos querem dar lições na condenação de Israel.

(Clicar aqui para verificar o original.)

29 de novembro de 2024, “O que esperar de António Costa”, in O Jornal Económico:

“(…) nem toda a propaganda é suficiente para nos fazer ignorar questões simples: o que fez a UE para evitar que se chegasse à invasão russa da Ucrânia, atuando na compreensão de que só a segurança comum é segurança de todos? O que fez a UE para evitar que se chegasse à situação atual no Médio Oriente? O que faz a UE para evitar a proliferação de abordagens claramente incoerentes aos dois casos, onde aqui se apela ao direito internacional e ali se esquecem as suas exigências?

Devemos ter a esperança que um António Costa que, na sua juventude, mostrou que lhe fazia sentido a mensagem “deem uma oportunidade à paz”, e que entendia essa mensagem para lá das fronteiras partidárias, seja capaz de levar as lideranças europeias a compreender que, se temos de estar preparados para a guerra neste mundo real em que vivemos (e não adormecermos todos os dias acomodados à nossa dependência do “amigo americano”), também temos de ser capazes de esforços reais e concretos para fazer a paz (e é entre inimigos que é preciso fazer a paz), onde não confundamos conferências de paz com iniciativas onde só são bem recebidos os aliados de um dos lados. Ignorar a questão limite, que é a questão da guerra e da paz, seria, afinal, suicidário.”

(Clicar aqui para verificar o original.)

Nunca o futuro da nossa rua esteve tão dependente do futuro do mundo. Quem não estiver ciente disso, está na lua.



(Publicado primeiro aqui: Somos Filhos da Madrugada.)

Porfírio Silva, 22 de Fevereiro de 2025
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