20.12.24

Ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz


Deixo aqui, para registo, o meu editorial de hoje no Acção Socialista, que assino na responsabilidade de diretor dessa publicação. 


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Ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz

Ontem, numa rua de um bairro de Lisboa, pessoas, muitas pessoas, foram indiscriminadamente mandadas encostar à parede e sujeitas a revista policial, no quadro de um aparato mandado montar para mostrar essa humilhação coletiva a determinados grupos étnicos ou raciais (embora, cientificamente, não existam raças humanas, mas apenas a raça humana). Uma operação desta natureza não podia acontecer sem motivos fortes – e desses motivos, suficientemente concretos, a opinião pública devia ser adequadamente esclarecida. Ora, segundo se sabe, desse espetáculo lamentável resultou a apreensão de uma arma branca e de canábis. A desproporção entre os meios e os resultados, mais as declarações do primeiro-ministro, denunciam o fito puramente propagandístico da operação. As forças policiais estão a ser usadas para fins político-partidários, isto é, para tentar obter uma transferência de votos entre partidos da direita portuguesa, à custa do respeito que devemos a todas as pessoas que vivem na nossa comunidade.


Não por acaso, a zona escolhida para aquela humilhação coletiva e seletiva é conhecida pela forte presença de imigrantes. O governo não se atreveria a produzir este espetáculo numa rua de Cascais ou do Estoril, porque, aí, as perceções preconceituosas que alimentam estas manobras não funcionariam no sentido desejado pelos instigadores. Seguindo uma estratégia de cavar divisões, o governo está, repetidamente, a criar as condições para uma fratura social que julgávamos impossível na nossa sociedade. Não se trata de pretender que não havia racismo entre nós, porque havia. Trata-se de que, até há pouco, não havia nenhuma pessoa decente e com responsabilidades públicas que enveredasse pelo caminho de explorar o racismo existente, latente, subliminar, para espicaçar perceções distorcidas, erradas e contrárias aos dados existentes, apenas como parte de um jogo de pequena política. Hoje, essa espécie, que devia ser rara, tem um espécime na chefia do governo.


Efetivamente, pelo que diz, o primeiro-ministro parece ter sido o mandante desta ação. Não deu nenhuma justificação, nenhuma explicação, nem apresentou nenhum resultado que, pelo menos remotamente, indiciasse qualquer lógica assente na legalidade democrática que estivesse subjacente ao teatro público montado para humilhar pessoas que vivem entre nós e que contribuem para a nossa humanidade comum. A sua explicação é vergonhosa, quando assume que labora na manipulação de perceções.


O primeiro-ministro foi capturado pela extrema-direita. Não somos capazes de precisar se o primeiro-ministro sabe de história o suficiente para compreender que encontramos antecedentes destas práticas de humilhação de grupo para fins políticos na estratégia do partido nazi na Alemanha da primeira metade do século passado ou se é levianamente que o primeiro-ministro entra pelo caminho infernal do acirrar divisões de grupo na sociedade do Portugal onde vivemos.


O que sabemos é que todos os portugueses de paz, respeitadores da Constituição e da legalidade, aderentes aos princípios fundadores dos direitos humanos, foram ontem colhidos por aquela ação numa rua de Lisboa. O que sabemos é que somos todos ameaçados com ações, como aquela, que pretendem acirrar a desconfiança, e até o despeito e a raiva, entre pessoas que são, desta forma, acantonadas em identidades grupais que alguns pretendem transformar em antagónicas. O que sabemos é que todos perdemos com esta ameaça, politicamente inspirada, à concórdia entre membros da comunidade dos humanos que vivem no nosso país. Por isso, ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz, e isso foi obra de quem nos governa e trai, por truque político, os seus deveres e responsabilidades. 


(Publicação original aqui: Ontem fomos todos encostados à parede no Martim Moniz .)


Porfírio Silva, 20 de Dezembro de 2024
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15.12.24

A JS no início dos anos 1980, um testemunho

20:55




Por ocasião do XXIV Congresso Nacional da Juventude Socialista, o Jovem Socialista, pela mão do seu Diretor Diogo Vintém, fez publicar um número especial dedicado a esse momento de passagem de testemunho na organização, como é sempre um Congresso onde muda a liderança (saiu, agora, da função de secretário-geral, o Miguel Costa Matos). Para além dos textos "obrigatórios" num número dessa natureza, este número do Jovem Socialista inclui dois textos sobre a história da JS. São dois textos de propostas e de candidatos, a seu tempo, derrotados em congressos da organização. Um desses textos é da minha responsabilidade e reproduzo-o aqui, para registo. No final, darei a ligação para poderem ler na íntegra este número do órgão central da JS.


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Aproveito o texto que me pediu o diretor do Jovem Socialista, camarada Diogo Vintém, por ocasião do XXIV Congresso Nacional da JS, o primeiro congresso em muitos anos que ultrapassa aquilo que considero a insuficiência democrática da candidatura única sistemática, para um exercício de estímulo a mais informação e mais reflexão sobre a história da JS. A história da JS é uma história política, não é uma mera cronologia de líderes, e não deve ser caricaturada. Deve, pelo contrário, saradas as feridas dos confrontos passados, ser assumida, debatida e pensada como parte do processo de crescimento do coletivo, grande, livre e plural, que é este partido a que pertencemos. Então…


O momento em que assumi maiores responsabilidades no debate político na JS foi o V Congresso Nacional, em fevereiro de 1984. Fui candidato à liderança, com uma moção intitulada “Com as nossas mãos o futuro, com os militantes a esperança”. Os autores do livro “Juventude Socialista: 30 anos de estórias de Portugal e do Mundo” (2004), escrevem que ocorreu aí a primeira rutura com a continuidade diretiva da JS desde a sua fundação, saindo derrota a lista alinhada com a anterior direção, liderada por Porfírio Silva. Vale a pena contar aqui um pouco do contexto desse Congresso, que são os começos dos já longínquos anos 1980.


O IV Congresso (1981) elegera como secretária-coordenadora a primeira mulher a liderar, em Portugal, uma organização político-partidária com autonomia: Margarida Marques. Ainda não tinham passado 7 anos sobre o 25 de Abril e os socialistas estavam na oposição ao governo da primeira AD. A crise interna do PS, por ocasião da reeleição de Eanes para a Presidência, estava a causar muitas feridas.


Foi durante esse mandato que entrei para o Secretariado Nacional. Pela primeira vez, 5 membros desse órgão eram obrigatoriamente camaradas residentes fora de Lisboa, os 5 Secretários Nacionais de Coordenação Regional, cobrindo todo o território. (Eu entrei para o SN com a coordenação de Aveiro, Coimbra e Viseu). Sistematizou-se, ainda, a prática das reuniões do SN com as Federações.


Foram anos de atividade política intensa, da qual podemos destacar alguns aspetos, em vários planos. A JS elaborou, em colaboração com camaradas do Partido, um projeto de lei de Bases do Sistema Nacional de Educação (antes de qualquer outra iniciativa para aprovar essa lei). Apresentou no parlamento dois projetos-lei para legalização das associações de estudantes (um sobre ensino secundário, outro sobre ensino superior) e um projeto-lei sobre o estatuto dos objetores de consciência ao serviço militar (em tempos de serviço militar obrigatório, a objeção de consciência estava na Constituição, mas não na lei).


Reformulou-se o apoio à participação de socialistas nas associações de estudantes, tendo passado de 5 para 40 as associações do secundário onde estávamos presentes. No superior, as vitórias mais importantes foram na Associação Académica de Coimbra, em Direito (Lisboa) e na Universidade dos Açores.


Tema candente na altura, a JS entrou na luta contra o nuclear (campanhas “Não a Sayago” e “Armamento Nuclear Não, Obrigado”). Em outubro de 1983, a JS realizou uma grande Conferência sobre a Paz e o Desarmamento, com participação de várias organizações socialistas estrangeiras e muitos oradores nacionais de referência, marcando a posição da esquerda democrática, que, querendo travar a corrida aos armamentos, seguia a análise de François Mitterrand, numa Europa ainda dividida pelo Muro de Berlim: vemos que os mísseis estão a Leste e que os pacifistas estão a Oeste. Fui um dos principais responsáveis pela conceção e realização desta conferência, que tinha como objetivo político contrariar a tentativa dos comunistas para instrumentalizar a luta pela paz.


De destacar, do trabalho feito neste período, a criação do Conselho Nacional de Juventude. Por iniciativa da Juventude Socialista, em maio de 1982, sentaram-se à mesa e chegaram a acordo para criar o CNJ, subscrevendo as suas Bases Gerais, 20 organizações de juventude, as mais representativas no espectro partidário e fora dele. Fui um dos subscritores desse documento. Ficou de fora a JSD, que só aderiu mais tarde. É um sinal (triste) das tentativas de reescrever a história que, posteriormente, alguns tenham feito tudo para apagar da história os iniciadores do CNJ, alimentando a ficção de que começou apenas no momento da sua escritura formal de constituição.


Entretanto, a conflitualidade interna, quer no PS quer na JS, era muito elevada neste período. No PS, o IV Congresso (maio de 1981) registara a divisão interna mais virulenta de toda a nossa história. O V Congresso (do PS) baixara um pouco a tensão, mas, principalmente, à custa de uma situação política completamente diferente: o PS estava de novo no governo, formalmente aliado ao PSD. Nas eleições legislativas, a minoria partidária tinha quase completamente desaparecido das listas de candidatos a deputados e do grupo parlamentar. Muitos dirigentes da JS eram (ou eram considerados) próximos da minoria partidária. No governo do Bloco Central, o Ministro da Educação era do PSD – e, vistas as suas políticas, passado algum tempo a JS pediu a sua demissão. (O PSD fazia oposição todos os dias ao governo PS-PSD, mas não era esse o caso do PS…). No cruzamento de todas estas questões, uma parte do aparelho do PS considera que a JS era “oposição” e que era preciso encontrar uma direção mais “tranquila” para os jovens. A minoria da JS aproveitou esse balanço (e o apoio no terreno de muitos funcionários do partido, que foram incentivados a apoiar uma das candidaturas). Com a revolução e o 25 de Abril a deixar de ser tema dominante na vida dos jovens, avançava a passos largos o processo designado como “despolitização” e a direção da JS (e eu próprio, como candidato) era tido como “demasiado ideológico” para os tempos.


Havia, de facto, na altura, clivagens dentro da JS acerca do entendimento que devia ser dado à autonomia da organização e à especificidade da nossa missão junto da juventude portuguesa. Dou um exemplo que está muito vivo na minha memória. Quando o Secretário-Geral do PS entrou no pavilhão onde se realizava o V Congresso, em Tróia – Mário Soares era, nessa altura, Primeiro-Ministro do governo PS-PSD – eu levantei o congresso com uma palavra de ordem que visava a demissão do ministro da educação, do PSD (creio que seria “Seabra para a rua”), na sequência do pedido de demissão que já tínhamos feito publicamente. O meu camarada José Apolinário, o candidato que saiu vencedor desse congresso, alinhou na onda e juntou-se ao pavilhão, que já estava em uníssono a seguir aquela reivindicação. Mas, depois de ganhar o congresso, esqueceu isso e explicava-nos que o partido não gostaria dessa reivindicação… Hoje, quando alguns se queixam de que a JS não faz “o seu trabalho” junto da juventude, lá fora das nossas portas, vale a pena refletir sobre se, realmente, é mais importante que a JS seja a voz do PS junto da juventude ou que a JS seja a voz da juventude junto do PS…


Retrospetivamente, há quem, mais jovem ou menos jovem, tenha alguma dificuldade em entender o que era Portugal no princípio da década de 80 do século passado. Li, há algum tempo, numa das publicações da JS sobre os 50 anos da organização (dirigida pelo camarada Diogo Vintém, diretor do Jovem Socialista), que alguém teria escrito: “1984 marcou a necessária rutura com um passado necessariamente romântico. Em Congresso Nacional, a JS altera a sua linha política, agora coerente com as posições económico-sociais que o PS vinha defendendo. Do socialismo autogestionário à defesa de uma economia de mercado regulada pelo papel do Estado foi o passo de gigante que a Juventude Socialista deu nos duros anos 80”. É difícil imaginar um retrato mais distorcido do que se passava na JS (e no PS) (e no país) naqueles anos. Passado pouco tempo, o PS registaria o pior resultado eleitoral legislativo da sua história e 10 anos de Cavaco Silva estavam prestes a começar. A esquerda estava em dificuldade – e os socialistas, a principal força da esquerda, também. O tempo da despolitização jogava, principalmente, contra a esquerda moderada. E, mais do que tudo, entre a juventude. Pensar nisso seria pensar nas condições de ação política naquele tempo. Isso seria mais útil, para os tempos de hoje, do que qualquer tipo de mistificação (as mistificações são sempre favorecidas pela falta de conhecimento histórico: onde é que alguém pode ver, nas moções apresentadas ao congresso de 1984, o tal socialismo autogestionário?!)


Uma das tarefas mais continuadas que me ocuparam durante o tempo em que fui dirigente nacional da JS a nível executivo, além de ter sido responsável pela Formação, foi a publicação do Jovem Socialista. Exerci essa responsabilidade como chefe de redação, porque a Comissão Nacional sofreu durante largos meses de falta de quórum (provocado, como parte da querela interna), impossibilitando a eleição do diretor. Assim, assumindo a secretária-coordenadora o papel de diretora-interina, foi como chefe de redação que fiz publicar 11 números do órgão central da organização, entre novembro de 1982 e janeiro de 1984. Desses, os 9 números regulares saíram em formato de revista e os 2 últimos (o nº 76, com os materiais do V Congresso; o nº 77, com uma retrospetiva do Jovem do IV ao V Congresso) saíram em formato de jornal. Fazendo um pouco de arqueologia, deixo-vos uma lista exemplificativa dos textos publicados no Jovem Socialista entre o IV e o V congressos da JS. Vejam (e depois da lista faço ao leitor uma pergunta simples):


The Clash, o rock contra o racismo, Não ao armamento nuclear, Os jovens, o 25 de Abril e a Música, Masculino/Feminino: factos e imagens, Campismo é cultura, Movimento de escritores novos, Camões e a sua obra, Defender o meio ambiente, Estatuto do Objetor de Consciência, Dossier Turismo Juvenil, Natal: um produto para consumo? Os mistérios de Milton Nascimento, Discocrítica, Planeamento familiar, Entrevista com Mário Soares,  Os Jovens e o serviço militar, Bob Marley ao Jovem Socialista, Entrevista com Filipovic, Nuclear: dizemos por que não, JS recebe resistentes salvadorenhos, O jovem consumidor e o desporto escolar, Objeção de Consciência, Vida Sexual da Juventude (inquérito e entrevista com Maria Belo), JS em Beirute, durante a invasão israelita, Entrevista com Rosa Mota, Desporto associativo em Aveiro, Campanha para as autarquias: entrevista com Eduardo Pereira, Entrevista com um objetor da consciência francês,  O negócio das armas, RTP, para quê?, Entrevista com Soares Louro sobre Comunicação Social, Comer, perigo de morte?, Reportagem: «Eu abortei!», Perspetivas do movimento ecológico internacional, Os comunistas e o nuclear, A revolução na Nicarágua, Livros proibidos no regime fascista, The Wall (Pink Floyd), O movimento dos Cineclubes,  Lançamento do Prémio Literário Jovem Socialista, Estudantes Socialistas em Encontro Nacional, Cultura em debate (depoimentos de António Reis, Margarida Projecto, Fátima Murta e Fernando Alçada), Entrevista com dois artesãos de Idanha-a-Nova, Sobre a Lei da Defesa Nacional, Defesa do Consumidor, Defesa do Património Natural e Cultural, A civilização do «Macho», A Imprensa de juventude no estrangeiro, Plano de Emprego de Jovens, O Ambiente na Constituição, O Rock dos nossos tempos, Banda Desenhada, Edição Especial: Política de Juventude da JS, Movimento Ecológico Internacional, Desarmamento nuclear, Repúblicas coimbrãs, Dia do Estudante; entrevista com Jorge Sampaio, dirigente associativo em 1962, O que é a regionalização, A loucura militar, Serviço cívico: inquérito de rua, Mapa por um mundo solidário, Entrevista com Aquino de Bragança, intelectual moçambicano, Relatividade estrita: apontamento científico, Beatle John, Que fomento desportivo em tempo de crise,  Poesia britânica, Grande inquérito «E agora, socialistas?»,  O erotismo de andar de bicicleta, Marx, quem és tu?, Objeção de consciência no Parlamento Europeu,  Fala-nos um palestino, Entrevista com Soeiro Pereira Gomes, As dimensões do Universo, Humor e política, História do Xadrez, Declaração sobre a Paz, Os homens ou as armas?, Entrevista com Manuel Alegre (sobre o seu livro “Babilónia”), O roteiro dos ecologistas, Alimentação em férias, Pratique desporto, A mulher em Os Lusíadas, A arte das aranhas, Mulher... em chinês, Número especial sobre desarmamento, Entrevista com dirigente da JS espanhola, Oposição filipina ao Jovem Socialista, A Juventude Socialista e o Governo: inquérito de rua, A educação sexual, Reivindicações estudantis, Existirão outros sistemas solares?, Cuidado com o Pato Donald, Como vamos de música.


Lendo esta lista de assuntos tratados no Jovem Socialista, no início dos anos 1980 (tinha, na altura, uma tiragem de 5000 exemplares e era distribuído gratuitamente por todas as estruturas, uma das poucas despesas que o Partido não nos regateava), parece-vos que denota uma organização paleolítica?


(O número do Jovem Socialista onde este texto foi editado pode ser lido na íntegra ou descarregado aqui: Jovem Socialista nº 537, dezembro 2024)



Porfírio Silva, 15 de Dezembro de 2024)
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