16.6.24

A Nova Frente Popular em França



Face à ameaça de uma vitória da extrema-direita, e face à paralisia do campo liberal do presidente Macron, que, depois de ter desmembrado a esquerda e de ter desmembrado a direita tradicional, numa estratégia de “monarca” que despreza as estruturas de intermediação e de formação da vontade política que são os partidos, diversos partidos – e muito diversos são eles entre si – decidiram apresentar-se às eleições legislativas (precipitadamente) antecipadas em França na Nova Frente Popular.

Enquanto a luta, na “direita tradicional”, entre os que querem aliar-se à extrema-direita e os que querem ir autonomamente às próximas eleições legislativas, já vai no tribunal, os principais partidos da esquerda francesa elaboraram rapidamente um programa eleitoral e um esquema de repartição das candidaturas em todo o território nacional, formando a  Nova Frente Popular, destinada a concorrer às legislativas antecipadas que o presidente Macron marcou após constatar a vitória da extrema-direita (e a sua própria derrota) nas europeias deste mês em França.

 Essas eleições serão nos próximos dias 30 de junho e 7 de julho (primeira e segunda voltas).

Neste apontamento queremos deixar algumas anotações sobre este momento, basicamente nos seguintes aspetos: breve recordatória dos momentos mais recentes de cooperação à esquerda em França; descrição básica do processo “Nova Frente Popular” agora em curso em França.


Etapas anteriores

 

Vale a pena passar, brevemente, em revista a dinâmica das tentativas de juntar a esquerda nas últimas décadas da política francesa.

Depois do movimento unificador da esquerda não comunista francesa, que resultou na criação do PSF em 1971, em larga medida graças ao impulso de François Mitterrand, deu-se rapidamente um movimento de aproximação aos comunistas. Cabe lembrar que o PCF, liderado por Georges Marchais, era a força dominante da esquerda francesa, em termos organizativos e eleitorais, apesar da “crise cultural” que passara pelo Maio de ’68.

Assinado em 1972, o Programa Comum de Governo, entre o PSF e o PCF, a que se juntou o Movimento dos Radicais de Esquerda, foi a primeira tentativa séria, depois da guerra, para uma “esquerda plural”. Mitterrand foi o candidato da “esquerda unida” às presidenciais de 1974 (derrotado). Globalmente, o processo espoletou uma dinâmica que prejudicou eleitoralmente o Partido Comunista Francês: o PSF suplantou o PCF em eleições autárquicas e regionais em 1976 e em 1977.

A renegociação do Programa Comum para as Legislativas de 1978 fracassou (um dos principais pontos de desacordo foi o programa de nacionalizações proposto pelos comunistas e recusado pelos socialistas), o PCF rompeu com o Programa Comum, os partidos que o compunham concorrem separados, a direita volta a sair vencedora do escrutínio, mas acontece uma reviravolta: pela primeira vez desde antes da guerra, os socialistas tiveram (em eleições nacionais) mais votos do que os comunistas, emergindo o PSF como a força mais votada à esquerda (com 22%), perdendo o PCF a sua anterior preponderância (com 20%). O declínio eleitoral dos comunistas nunca mais parou e a cooperação entre os grandes partidos de esquerda entrara em crise ainda na oposição.

A nova oportunidade surgiu em 1981, quando Mitterrand foi eleito Presidente da República por toda a esquerda e nomeou um novo governo, com 4 ministros comunistas, seguindo-se uma vitória esmagadora em legislativas antecipadas (graças ao sistema maioritário). Rapidamente, graças ao insucesso do programa económico em contexto de crise internacional, o governo mudou de rumo e recomeçou o afastamento entre socialistas e comunistas – tal como começou uma viragem do PSF nas políticas públicas, num sentido bastante diferente daquele que proporcionara a aproximação aos comunistas.

A fase assinalável seguinte de cooperação à esquerda é a chamada “Esquerda Plural”: para as legislativas de 1997, uma rede de acordos liga o PSF, em entendimentos separados, com os Verdes, os Radicais de Esquerda e o movimento de Jean-Pierre Chevènement (antigo dirigente de uma corrente do PSF, dissidira e criara um movimento). Esses acordos, complementados por uma declaração conjunta do PSF e do PCF, configuraram o que se chamou a Esquerda Plural, que chegou ao governo com ministros e secretários de Estado dos vários parceiros, com o líder do PSF, Lionel Jospin, como primeiro-ministro.

Lionel Jospin foi, depois, candidato presidencial derrotado, não tendo passado da primeira volta, o que constituiu um terramoto na política francesa: a segunda volta das presidenciais foi disputada por dois candidatos da direita (direita tradicional e extrema-direita), apesar de, na primeira volta, o conjunto dos candidatos da esquerda terem recolhido mais de 42% dos votos. A extrema fragmentação da esquerda afastou-a da possibilidade de disputar minimamente o poder.

Mais recentemente, nas legislativas de 2022, que se seguem à reeleição de Macron para um segundo mandato presidencial, Jean-Luc Mélenchon (que foi, no passado, militante do PSF), consegue dinamizar a NUPES (Nova União Popular Ecologista e Social). A NUPES, cuja principal força é a France Insoumise, o partido onde pontifica Mélenchon, conta ainda com os ecologistas, os socialistas e os comunistas. Não constituindo, propriamente, um movimento de renovação da esquerda francesa (nem no plano das ideias, nem no plano da organização), e mesmo sem um verdadeiro sucesso eleitoral, consegue que Macron não tenha maioria absoluta no parlamento. Balanço eleitoral da NUPES em 2022: na segunda volta, a NUPES continuava em jogo em 385 círculos, enquanto, nas eleições de 2017, os partidos que a integram, concorrendo separados, só tinham sobrevivido à primeira volta em 146 círculos.

A NUPES nunca deixou de ser um campo político fragmentado, fragmentação essa muito alimentada pelo radicalismo político e comportamental de Mélenchon, apesar de não ser possível deixar de contar com o partido político atualmente mais representativo da esquerda francesa. Se a France Insoumise é, no atual quadro, incontornável do ponto de vista do peso eleitoral à esquerda, é evidente que Mélenchon é visto por muitos à esquerda como obstáculo a um aprofundamento da cooperação nessa mesma esquerda. Entre os episódios que evidenciam essa questão podemos mencionar as eleições de setembro de 2023 para a renovação parcial do Senado, onde socialistas, comunistas e ecologistas organizam candidaturas comuns, deixando de fora o partido de Mélenchon, que acusou o toque. Posteriormente, a posição de Mélenchon sobre o ataque do Hamas a Israel é considerada, por muitos, no mínimo dúbia, levando os socialistas a suspender a sua participação na NUPES. Nas europeias deste ano, os partidos integrantes da NUPES concorreram separadamente.


 A Nova Frente Popular

 

A Nova Frente Popular é uma coligação pré-eleitoral com um programa partilhado por todas as forças concorrentes (França Insubmissa, Ecologistas, Socialistas e Comunistas) e vai traduzir-se no facto de que em cada círculo eleitoral apresentar-se-á uma candidatura única apoiada por todos estes partidos (e outras organizações mais pequenas que atuam nas proximidades de algumas destas forças). Para isso, fizeram um acordo círculo eleitoral a círculo eleitoral, designando onde se vai tentar eleger quem (em termos de partidos, sendo que cada partido escolhe autonomamente os candidatos aos lugares que lhe couberam na distribuição).

A distribuição das candidaturas será a seguinte: a França Insubmissa terá 299 candidatos (são menos 100 candidatos dos “insubmissos” que na candidatura NUPES em 2022), 175 candidatos dos socialistas (reforçados, até tendo em vista a subida muito substancial que tiveram nas europeias), 92 candidatos dos ecologistas e 50 candidatos dos comunistas.

Entretanto (dificuldades) a França Insubmissa, de Mélenchon, está a ser acusada de sectarismo por ter excluído das suas listas algumas das figuras que são críticas do líder (vários deputados e deputadas atualmente em funções), enquanto mantém nas listas um condenado por violência doméstica (a quatro meses de prisão com pena suspensa).

Quanto ao programa, ou contrato de legislatura, e reconhecendo que preciso de mais tempo de análise para o perceber melhor, posso, desde já, indicar-vos que podem lê-lo na língua original (francês) no sítio da Nova Frente Popular (https://www.nouveaufrontpopulaire.fr/ ). Contudo, como acredito que muitos dos meus leitores não entendem facilmente o francês, deixo o link para o esquerda.net, que creio ter a única versão portuguesa disponível do “contrato de legislatura” da Nova Frente Popular: https://www.esquerda.net/artigo/aqui-esta-o-programa-eleitoral-da-nova-frente-popular/91330.

Não sou, em geral, partidário de “formas de fusão” entre partidos diferentes, preferindo formas de cooperação que preservam a autonomia e as diferenças específicas. Compreendo, no entanto, que um sistema como o francês favorece fortemente a concentração de votos e penaliza a dispersão, embora já não tanto como o antigo sistema maioritário puro. É isso que justifica, para muitos, que um campo tão fragmentado como a atual esquerda francesa tenha de procurar formas de concentração que permitam não desperdiçar as suas forças.

Para terminar, deixo uma imagem da distribuição das candidaturas pelas diferentes forças integrantes da Nova Frente Popular, numa imagem do Le Monde.



A entrega de candidaturas termina hoje.


Porfírio Silva, 16 de junho de 2024
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14.6.24

É tramada, a falta de memória

11:01




O artigo de Carmo Afonso, hoje no Público, começa assim:
"Há dois discursos de António Costa que deveriam ter marcado o final do seu percurso político. Falo, primeiro, do discurso da noite de 5 de outubro de 2015. Nessa noite, António Costa atirou a toalha para o chão. Tinha perdido as eleições para a coligação que mais austeridade impôs ao país, quando se esperava que a vitória fosse sua. Parecia arrumado."

Não vou analisar a sequência do artigo, com o qual posso, genericamente, concordar. Mas este arranque descredibiliza a análise.

Desde logo, não se conhece nenhum discurso de António Costa na noite de 5 de outubro de 2015. As eleições legislativas desse ano foram a 4 de outubro e António Costa fez um discurso importante nesse 4 de outubro. E a 5 de outubro não discursou (já tinha deixado de ser presidente da câmara de Lisboa, onde durante anos discursara a 5 de outubro).

Mas, mais importante, ou Carmo Afonso não se lembra ou não percebeu patavina do discurso de António Costa na noite eleitoral de 4 de outubro de 2015. Para dizer que, nesse discurso, António Costa "atirou a toalha para o chão", a articulista teve a mesma dificuldade que Passos Coelho e Paulo Portas: não percebeu nada do que se disse e não percebeu nada do que esse discurso estava a colocar em andamento (tal como, aliás, o discurso de Jerónimo de Sousa).

Costa não se demitiu (mesmo dentro do PS alguns não perceberam o que isso queria dizer: no dia seguinte Álvaro Beleza manifestava disponibilidade para se candidatar à liderança do PS).

Costa explicou a Passos e Portas que o quadro político tinha mudado ("a coligação tem de perceber que há um novo quadro").

Costa deu a si próprio e ao PS uma tarefa em consequência do resultado eleitoral: o PS vai "garantir que a vontade dos portugueses não se perca na ingovernabilidade".

Tudo vinha na sequência de uma declaração que António Costa tinha dado ao Expresso antes do encerramento da campanha eleitoral: o PS não vai viabilizar um governo minoritário da direita.

Na altura, poucos perceberam. Alguns demoraram algumas semanas a perceber. Nunca pensei que, passados todos estes anos, ainda alguém não tenha percebido: não o que aconteceu depois, nas mesmo o que se disse naquela noite de 4 de outubro de 2015.

É bem certo que não basta ouvir para entender.




Porfírio Silva, 14 de junho de 2024
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