Face à ameaça de uma vitória da extrema-direita, e face à paralisia do campo liberal do presidente Macron, que, depois de ter desmembrado a esquerda e de ter desmembrado a direita tradicional, numa estratégia de “monarca” que despreza as estruturas de intermediação e de formação da vontade política que são os partidos, diversos partidos – e muito diversos são eles entre si – decidiram apresentar-se às eleições legislativas (precipitadamente) antecipadas em França na Nova Frente Popular.
Enquanto a luta, na “direita tradicional”, entre os que querem aliar-se à extrema-direita e os que querem ir autonomamente às próximas eleições legislativas, já vai no tribunal, os principais partidos da esquerda francesa elaboraram rapidamente um programa eleitoral e um esquema de repartição das candidaturas em todo o território nacional, formando a Nova Frente Popular, destinada a concorrer às legislativas antecipadas que o presidente Macron marcou após constatar a vitória da extrema-direita (e a sua própria derrota) nas europeias deste mês em França.
Essas eleições serão nos próximos dias 30 de junho e 7 de julho (primeira e segunda voltas).
Neste apontamento queremos deixar algumas anotações sobre
este momento, basicamente nos seguintes aspetos: breve recordatória dos
momentos mais recentes de cooperação à esquerda em França; descrição básica do
processo “Nova Frente Popular” agora em curso em França.
Etapas anteriores
Vale a pena passar, brevemente, em revista a dinâmica das
tentativas de juntar a esquerda nas últimas décadas da política francesa.
Depois do movimento unificador da esquerda não comunista
francesa, que resultou na criação do PSF em 1971, em larga medida graças ao
impulso de François Mitterrand, deu-se rapidamente um movimento de aproximação
aos comunistas. Cabe lembrar que o PCF, liderado por Georges Marchais, era a
força dominante da esquerda francesa, em termos organizativos e eleitorais,
apesar da “crise cultural” que passara pelo Maio de ’68.
Assinado em 1972, o Programa Comum de Governo, entre o PSF e
o PCF, a que se juntou o Movimento dos Radicais de Esquerda, foi a primeira
tentativa séria, depois da guerra, para uma “esquerda plural”. Mitterrand foi o
candidato da “esquerda unida” às presidenciais de 1974 (derrotado).
Globalmente, o processo espoletou uma dinâmica que prejudicou eleitoralmente o
Partido Comunista Francês: o PSF suplantou o PCF em eleições autárquicas e
regionais em 1976 e em 1977.
A renegociação do Programa Comum para as Legislativas de
1978 fracassou (um dos principais pontos de desacordo foi o programa de
nacionalizações proposto pelos comunistas e recusado pelos socialistas), o PCF
rompeu com o Programa Comum, os partidos que o compunham concorrem separados, a
direita volta a sair vencedora do escrutínio, mas acontece uma reviravolta:
pela primeira vez desde antes da guerra, os socialistas tiveram (em eleições
nacionais) mais votos do que os comunistas, emergindo o PSF como a força mais
votada à esquerda (com 22%), perdendo o PCF a sua anterior preponderância (com
20%). O declínio eleitoral dos comunistas nunca mais parou e a cooperação entre
os grandes partidos de esquerda entrara em crise ainda na oposição.
A nova oportunidade surgiu em 1981, quando Mitterrand foi
eleito Presidente da República por toda a esquerda e nomeou um novo governo,
com 4 ministros comunistas, seguindo-se uma vitória esmagadora em legislativas
antecipadas (graças ao sistema maioritário). Rapidamente, graças ao insucesso
do programa económico em contexto de crise internacional, o governo mudou de
rumo e recomeçou o afastamento entre socialistas e comunistas – tal como
começou uma viragem do PSF nas políticas públicas, num sentido bastante
diferente daquele que proporcionara a aproximação aos comunistas.
A fase assinalável seguinte de cooperação à esquerda é a
chamada “Esquerda Plural”: para as legislativas de 1997, uma rede de acordos
liga o PSF, em entendimentos separados, com os Verdes, os Radicais de Esquerda
e o movimento de Jean-Pierre Chevènement (antigo dirigente de uma corrente do
PSF, dissidira e criara um movimento). Esses acordos, complementados por uma
declaração conjunta do PSF e do PCF, configuraram o que se chamou a Esquerda
Plural, que chegou ao governo com ministros e secretários de Estado dos vários
parceiros, com o líder do PSF, Lionel Jospin, como primeiro-ministro.
Lionel Jospin foi, depois, candidato presidencial derrotado,
não tendo passado da primeira volta, o que constituiu um terramoto na política
francesa: a segunda volta das presidenciais foi disputada por dois candidatos
da direita (direita tradicional e extrema-direita), apesar de, na primeira
volta, o conjunto dos candidatos da esquerda terem recolhido mais de 42% dos
votos. A extrema fragmentação da esquerda afastou-a da possibilidade de
disputar minimamente o poder.
Mais recentemente, nas legislativas de 2022, que se seguem à
reeleição de Macron para um segundo mandato presidencial, Jean-Luc Mélenchon
(que foi, no passado, militante do PSF), consegue dinamizar a NUPES (Nova União
Popular Ecologista e Social). A NUPES, cuja principal força é a France
Insoumise, o partido onde pontifica Mélenchon, conta ainda com os ecologistas,
os socialistas e os comunistas. Não constituindo, propriamente, um movimento de
renovação da esquerda francesa (nem no plano das ideias, nem no plano da
organização), e mesmo sem um verdadeiro sucesso eleitoral, consegue que Macron
não tenha maioria absoluta no parlamento. Balanço eleitoral da NUPES em 2022:
na segunda volta, a NUPES continuava em jogo em 385 círculos, enquanto, nas
eleições de 2017, os partidos que a integram, concorrendo separados, só tinham
sobrevivido à primeira volta em 146 círculos.
A NUPES nunca deixou de ser um campo político fragmentado, fragmentação essa muito alimentada pelo radicalismo político e comportamental de Mélenchon, apesar de não ser possível deixar de contar com o partido político atualmente mais representativo da esquerda francesa. Se a France Insoumise é, no atual quadro, incontornável do ponto de vista do peso eleitoral à esquerda, é evidente que Mélenchon é visto por muitos à esquerda como obstáculo a um aprofundamento da cooperação nessa mesma esquerda. Entre os episódios que evidenciam essa questão podemos mencionar as eleições de setembro de 2023 para a renovação parcial do Senado, onde socialistas, comunistas e ecologistas organizam candidaturas comuns, deixando de fora o partido de Mélenchon, que acusou o toque. Posteriormente, a posição de Mélenchon sobre o ataque do Hamas a Israel é considerada, por muitos, no mínimo dúbia, levando os socialistas a suspender a sua participação na NUPES. Nas europeias deste ano, os partidos integrantes da NUPES concorreram separadamente.
A Nova Frente Popular é uma coligação pré-eleitoral com um programa
partilhado por todas as forças concorrentes (França Insubmissa, Ecologistas, Socialistas
e Comunistas) e vai traduzir-se no facto de que em cada círculo eleitoral apresentar-se-á
uma candidatura única apoiada por todos estes partidos (e outras organizações mais
pequenas que atuam nas proximidades de algumas destas forças). Para isso, fizeram
um acordo círculo eleitoral a círculo eleitoral, designando onde se vai tentar
eleger quem (em termos de partidos, sendo que cada partido escolhe
autonomamente os candidatos aos lugares que lhe couberam na distribuição).
A distribuição das candidaturas será a seguinte: a França
Insubmissa terá 299 candidatos (são menos 100 candidatos dos “insubmissos” que
na candidatura NUPES em 2022), 175 candidatos dos socialistas (reforçados, até
tendo em vista a subida muito substancial que tiveram nas europeias), 92
candidatos dos ecologistas e 50 candidatos dos comunistas.
Entretanto (dificuldades) a França Insubmissa, de Mélenchon,
está a ser acusada de sectarismo por ter excluído das suas listas algumas das figuras
que são críticas do líder (vários deputados e deputadas atualmente em funções),
enquanto mantém nas listas um condenado por violência doméstica (a quatro meses
de prisão com pena suspensa).
Quanto ao programa, ou contrato de legislatura, e
reconhecendo que preciso de mais tempo de análise para o perceber melhor,
posso, desde já, indicar-vos que podem lê-lo na língua original (francês) no
sítio da Nova Frente Popular (https://www.nouveaufrontpopulaire.fr/
). Contudo, como acredito que muitos dos meus leitores não entendem facilmente
o francês, deixo o link para o esquerda.net, que creio ter a única versão
portuguesa disponível do “contrato de legislatura” da Nova Frente Popular: https://www.esquerda.net/artigo/aqui-esta-o-programa-eleitoral-da-nova-frente-popular/91330.
Não sou, em geral, partidário de “formas de fusão” entre partidos
diferentes, preferindo formas de cooperação que preservam a autonomia e as diferenças
específicas. Compreendo, no entanto, que um sistema como o francês favorece
fortemente a concentração de votos e penaliza a dispersão, embora já não tanto
como o antigo sistema maioritário puro. É isso que justifica, para muitos, que
um campo tão fragmentado como a atual esquerda francesa tenha de procurar
formas de concentração que permitam não desperdiçar as suas forças.
Para terminar, deixo uma imagem da distribuição das candidaturas
pelas diferentes forças integrantes da Nova Frente Popular, numa imagem do Le
Monde.
A entrega de candidaturas termina hoje.