24.11.22

Fez bem o Parlamento Europeu em ter declarado a Rússia como um Estado patrocinador do terrorismo?

 
 
1. Condenámos a invasão da Ucrânia pela Rússia desde o primeiro momento. Sem desculpas, sem tergiversações, sem evasivas. Sem "mas..". Sabendo que "o Ocidente" andou décadas a descurar a realidade básica de que só há verdadeira segurança quando ela é segurança partilhada, segurança nossa e dos outros. Sabendo que Mikhail Gorbatchov, o último presidente da União Soviética, foi ludibriado quando deu o seu acordo à reunificação alemã no pressuposto, ou debaixo da sugestão americana, de que a NATO não avançaria em direcção às suas fronteiras - tendo acontecido tudo o contrário. Mas não aceitamos nada disso como justificação para a iniciativa guerreira da Rússia e do ditador Putin. E também não aceitamos que da guerra possa resultar qualquer prémio para o invasor: a paz não pode ter o preço de uma recompensa a quem espoletou a guerra.

É nesta óptica que analisamos a resolução do Parlamento Europeu (PE), aprovada ontem (23/11/2022), que aponta para a qualificação da Rússia como um Estado promotor do terrorismo.

 

2. Para começar pelo princípio: o próprio conceito de “Estado patrocinador do terrorismo” é juridicamente indeterminado ou incerto, variando a situação entre os EUA e a Europa. Nos Estados Unidos, existe um instrumento legal específico associado a uma lista de países que aquele país considera que providenciam, de forma reiterada, apoio para actos de terrorismo internacional. Estão nessa lista, apenas, Cuba, Irão, Coreia do Norte e Síria. Na União Europeia não existe nenhuma figura jurídica similar, nem uma tal lista de países. É a própria resolução aprovada pelo PE que reconhece claramente essa inexistência, pedindo que se desenvolva o quadro jurídico para enquadrar a figura (o que é estranho, que se estabeleça uma qualificação antes de definir o que ela quer dizer). Aliás, mesmo o conceito de “Estado terrorista” é um conceito juridicamente impreciso.

Na verdade, a resolução do PE faz uma misturada, metendo no mesmo saco, por um lado, conceitos precisos na ordem jurídica internacional (como o conceito de crimes de guerra), servidos por instituições de justiça penal internacional às quais cabe perseguir e punir os criminosos, com, por outro lado, conceitos que podem ter a aparência de serem conceitos jurídicos, mas não o são: como o conceito de Estado patrocinador do terrorismo. Tem havido alegações de crimes de guerra no contexto da guerra da Ucrânia, cometidos pela Rússia, mas também cometidos pela Ucrânia. A diferença de atitude relativamente a essas alegações é relevante, na medida em que a Rússia não as leva a sério, enquanto a Ucrânia tem prometido investigar – e esperamos que o faça. De qualquer modo, o conceito de crime de guerra é juridicamente determinado e permite o recurso adequado à justiça penal internacional para perseguir e punir os criminosos. Misturar conceitos juridicamente operantes com conceitos que, sendo aparentemente jurídicos, são puramente proclamatórios, só pode prejudicar a forma como o mundo entende a efectividade do direito internacional – e isso é politicamente condenável, porque esse valor é sacrificado no altar do oportunismo político.


3. Não será por acaso que o Presidente Biden recusou, explicitamente, que os EUA dêem o passo de qualificar a Rússia como Estado patrocinador do terrorismo. As explicações do governo americano (segundo notícia da Voice of America, de 6/9/2022) indicam que essa qualificação da Rússia como Estado patrocinador do terrorismo, pelas suas consequências legais, criaria uma situação que, na prática, prejudicaria a assistência humanitária em certas áreas da Ucrânia, bloquearia acções necessárias para mitigar a crise alimentar e poria em risco o uso de infraestruturas portuárias no Mar Negro para escoar cereais necessários ao mundo, designadamente a África, e prejudicaria a capacidade dos EUA quer para darem assistência à Ucrânia à mesa de negociações que venham a ter lugar, quer para responsabilizar a Rússia pelas suas acções. Talvez alguns, tão vocalmente pró-americanos, pudessem reflectir neste exemplo e nesta explicação.  

 

4. Tomadas de posição com as quais alinhou agora o PE tiveram lugar, nos últimos meses, na Estónia, na Letónia, na Lituânia e na Polónia, e há uma decisão no mesmo sentido da Câmara Baixa do Parlamento checo. É compreensível o capital de queixa acumulado por países que sofreram com ditaduras comunistas apoiadas pela União Soviética. Ninguém, na esquerda democrática, esquece a repressão que o comando de Moscovo impunha para lá da Cortina de Ferro, sob o instrumento do Pacto de Varsóvia, numa versão vermelha de imperialismo. Ninguém esquece a invasão da Hungria pela URSS, para evitar uma revolução democrática liderada pelos próprios comunistas reformadores que estava à frente do partido. Ninguém esquece que a Primavera de Praga foi esmagada pelos tanques soviéticos contra os próprios comunistas checoslovacos, que entendiam que o país não se podia desenvolver sem libertar a criatividade dos seus cidadãos e que isso só seria possível com liberdade. Ninguém esquece a luta do Solidariedade na Polónia – e não podemos esquecer as causas pelas quais nos mobilizámos a seu tempo.

Só que, agora que esses países estão na União Europeia, não podem querer impor-nos uma lógica de vingança histórica que é contrária a todo o rumo da construção europeia. Tal como a Alemanha e a França entraram no projecto da CEE (Comunidade Económica Europeia, antecessora da EU) deitando para trás das costas a dura realidade de terem saído de uma guerra violentíssima que confrontou esses dois países centrais no continente. A lógica da construção europeia é a lógica de conseguir mais com a cooperação do que com a confrontação, trabalhando para que o futuro seja melhor que o passado, sem fazer do passado um muro contra o futuro. Não é, pois, aceitável, que haja quem pretenda alinhar o Parlamento Europeu com uma lógica de vingança histórica, que está claramente expressa na resolução aprovada pelos eurodeputados a 23/11/2022, quando quer ligar a condenação da Rússia dos dias de hoje à exigência de uma “exaustiva avaliação histórica e legal (…) dos crimes do regime soviético”, considerando que está em causa uma “repetição de crimes similares”.

 

5. A resolução agora aprovada pelo Parlamento Europeu insere-se na estratégia dos que pretendem inviabilizar possíveis caminhos diplomáticos para encontrar uma solução negociada para a guerra. A resolução pede que se tomem acções para iniciar o isolamento internacional alargado da Rússia (não se trata de manter o actual nível de isolamento), incluindo no que concerne à pertença da Federação Russa a organizações internacionais e a órgãos como o Conselho de Segurança das Nações Unidas, e que se reduzam ainda mais os contactos diplomáticos para os mínimos, bem como os contactos com representantes oficiais russos. Esta declaração política pede um nível radical de incomunicabilidade entre países adversários, uma abordagem perigosa. Felizmente, todas as potências mantêm contactos entre si, mesmo nas situações mais adversas, embora o façam por canais discretos ou mesmo secretos. Só que, para um democrata, parece preferível que os contactos secretos não substituam completamente, mesmo em guerra, as relações diplomáticas e a respectiva responsabilidade política.    

No caso da UE, os efeitos legais da resolução são nulos ou irrelevantes – tirando a criação de uma nebulosa jurídica em torno de um conceito que quer ser jurídico sem o ser. Já no caso dos EUA, essa declaração poderia ter efeitos sobre uma eventual saída negociada para a guerra, na medida em que proibiria a aceitação de elementos de um acordo que dessem à Rússia acesso a mecanismos da economia internacional que estão bloqueados pelas sanções actualmente em vigor.

 

6. Ainda, a resolução ora aprovada pelo Parlamento Europeu, a ter efeitos práticos, acentua o risco de estimulação de comportamentos xenófobos dirigidos contra a diáspora russa presente nos nossos países, na medida em que preconiza que sejam banidas e encerradas organizações e associações de russos. É claro que a explicação é que só se visam aquelas associações e organizações que sejam apoiadas pela Rússia e propaguem as posições russas. Contudo, é uma linha de acção que permite alimentar um clima social de discriminação das comunidades russas integradas em cada um dos nossos países – e isso é inaceitável. Ao mesmo tempo – e isto, infelizmente, não é novo neste contexto – deixa em aberto que, sob a acusação de propaganda russa, se possa interferir ilegitimamente com a liberdade de expressão. Não é aceitável que o PE entre, de forma tão descuidada, por terrenos tão pantanosos.

 

7. Além do mais, não podemos, desde um ponto de vista da esquerda democrática, admitir que seja a extrema-direita a querer apropriar-se do património de luta pela liberdade nos países que se libertaram de ditaduras comunistas. Nesse sentido, não é por acaso que a resolução aprovada pelo PE teve origem num grupo de extrema-direita, os Conservadores e Reformistas Europeus, onde, nomeadamente, pontifica o partido que lidera o permanente desrespeito pelo Estado de direito na Polónia. 

A nossa posição sobre a guerra da Ucrânia, claríssima desde o primeiro momento, não nos permite aceitar que o sofrimento do povo ucraniano sirva para manobras políticas. Há sectores da direita europeia, e não apenas da extrema-direita, que estão apostados em aproveitar a situação da Ucrânia para ganhar preponderância na União Europeia e para desviar a construção europeia dos seus valores fundadores e fundamentais. Não é por amizade ao povo ucraniano que alguns sectores querem uma adesão relâmpago do país à União Europeia: é para ganhar uma vantagem partidária decisiva no seio das instituições europeias. Não é por amizade ao povo ucraniano que alguns sectores da direita europeia, e não apenas da extrema-direita, tentam usar o sofrimento do povo ucraniano como alavanca para desviar a construção europeia dos seus valores fundacionais.

Há muitas palavras certas na resolução do PE. O que é lamentável é que o apoio à Ucrânia invadida seja misturada com uma manobra política que aposta no revanchismo histórico, no aprofundamento da divisão internacional e no enfraquecimento dos mecanismos diplomáticos, no uso político de conceitos jurídicos (em prejuízo da efectividade da justiça penal internacional) e na tentativa de inviabilizar uma saída para a guerra que seja melhor do que o mero esmagamento de uma das partes. Por tudo isto, esta resolução do PE é um erro político grave.

 
Porfírio Silva, 24 de Novembro de 2022
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