Enquadramento
1. Quando as autoridades de um Estado-Membro o solicitam, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) organiza uma Missão de Observação Eleitoral (MOE) para um determinado pleito eleitoral. Foi assim que, entre 15 e 27 do corrente mês de Agosto, esteve em Angola uma MOE para as Eleições Gerais de 2022, que elegem o Presidente, o Vice-Presidente e os deputados à Assembleia Nacional. A MOE foi chefiada por Jorge Carlos Fonseca, ex-Presidente da República de Cabo Verde, tendo integrado 27 observadores.
2. A CPLP é, basicamente, uma organização dirigida politicamente pelos Governos dos Estados-Membros, dispondo de um Secretário Executivo que garante um núcleo permanente de dedicação às metas próprias da Comunidade. Contudo, existe no seio da CPLP uma Assembleia Parlamentar (AP-CPLP), constituída por deputados dos parlamentos de todos os Estados-Membros. A Assembleia Parlamentar pode organizar Missões de Observação Eleitoral próprias, mas, até ao momento, seja por razões organizativas, seja por razões políticas, os deputados que integram a AP-CPLP têm integrado a MOE da CPLP. Assim, cada MOE é mais forte (mais observadores, mais pontos de observação) e mais relevante (nela participando, além dos representantes do poder executivo, membros das assembleias representativas).
3. Participei na MOE da CPLP, como membro da Assembleia Parlamentar da Comunidade, junto com outro deputado da Assembleia da República (do Grupo Parlamentar do PSD) e de um assessor parlamentar. Participaram nesta MOE deputados de 6 parlamento nacionais. Sendo ambos os deputados portugueses em causa membros da Delegação da Assembleia da República à AP-CPLP (de que sou o presidente, nesta legislatura), acompanhamos regularmente a vida pública nos Estados-Membros e, desde que tomámos conhecimento de que teríamos esta tarefa em Angola, seguimos de perto a evolução do processo eleitoral e o debate público nesse país.
4. Durante a sua presença em Angola, a MOE da CPLP contactou formalmente com autoridades nacionais, com organismos de administração eleitoral, com partidos políticos concorrentes, com embaixadores e outro pessoal diplomático residente no país, com outras missões de observação internacional e, a título individual, alguns observadores contactaram informalmente com outras pessoas envolvidas na dinamização cívica em torno das eleições. A missão assistiu parcialmente a três comícios de três forças concorrentes. A reunião mais longa com um partido de oposição demorou cerca de três horas. No dia 24 de agosto, os observadores, organizados em 9 equipas, acompanharam a votação distribuindo-se por quatro províncias (Luanda, Bengo, Kwanza-Norte, Kwanza-Sul), tendo estado em 452 mesas, de 173 assembleias de voto. No dia da votação, a observação direta do dia eleitoral iniciou-se antes de começarem os preparativos para a abertura das mesas e terminou depois de se terem concluído as contagens por assembleia de voto, quando se entregam as atas-síntese, com os resultados por assembleia de voto, a todos os delegados de candidatura presentes. No meu caso pessoal, estive na província do Bengo e cruzei-me, durante o dia da votação, com observadores da União Africana, da Conferência da Região dos Grandes Lagos e da Embaixada dos EUA. Cruzei-me ainda, e troquei impressões, com observadores nacionais credenciados em representação de organizações da sociedade civil.
5. Importa compreender qual é a atitude que se espera de um observador internacional (e não é por acaso que a CPLP não admite nas suas MOE nacionais do país em observação). Para um cidadão empenhado na vida política do seu país, o resultado de uma eleição conta pelas consequências em termos de políticas públicas: não se é indiferente ao resultado de uma eleição na medida em que o resultado favorece ou prejudica determinadas escolhas que nos parecem importantes para a comunidade. É legítimo, para quem se interessa pelo mundo na diversidade dos seus povos, que um cidadão se interesse também pelas consequências de eleições em outros países. É compreensível, no entanto, que tenhamos em conta outro plano: que o sistema seja democrático, que permita uma escolha livre do rumo da governação pelos eleitores, deve ser um valor mais alto do que o resultado específico da eleição. Um observador internacional de uma eleição deve, julgo eu, colocar-se neste plano: não estamos para pugnar por um resultado específico, estamos para compreender se a escolha foi feita em condições democráticas. Estamos para testemunhar, não estamos para interferir. Durante a presença no país, os observadores da MOE-CPLP não podem pronunciar-se publicamente sobre o processo, ficando essa função de comunicação reservada ao Chefe de Missão.
6. A MOE da CPLP às Eleições Gerais de Angola em 2022 emitiu, no dia 27 de agosto, a sua Declaração Preliminar, que pode ser consultada clicando aqui: Declaração Preliminar da Missão de Observação Eleitoral da CPLP às V Eleições Gerais na República de Angola. Posteriormente, será elaborado um relatório circunstanciado.
Análise
7. No meu modo de ver, há três questões essenciais acerca de um processo eleitoral nestas condições:
(a) todos os cidadãos com direito legal a votar puderam fazê-lo de forma livre e sem coação?
(b) todas as candidaturas que se apresentam ao pleito eleitoral dispuseram de condições de igualdade para apresentar as suas propostas ao eleitorado?
(c) os resultados oficiais correspondem fielmente aos votos entrados nas urnas (pelo menos em mandatos na Assembleia Nacional e quanto ao próximo Presidente da República)?
Procurarei responder seguidamente a estas três questões, um pronunciamento em que as palavras que usarei só me responsabilizam a mim e não a MOE da CPLP (sem prejuízo de assinalar aspetos relevantes da Declaração Preliminar produzida pela Missão).
8. Quanto à primeira questão, foi unanimemente reconhecido que a votação decorreu sem quaisquer sinais de coação sobre o eleitor: a confidencialidade do ato estava garantida, não se registou nenhuma pressão sobre os cidadãos no ato de votar, não houve qualquer interferência ilegítima das autoridades nos locais de voto. O presidente do maior partido da oposição reconheceu, num ato público, que a Polícia Nacional, da qual tinha queixas no período pré-eleitoral, tinha tido um comportamento impecável durante o período eleitoral. O presidente de outra candidatura de oposição disse, ainda durante a campanha, que “a Polícia está a ter um comportamento republicano”. Esta realidade é reconhecida pela Declaração da MOE da CPLP. Não conheço registos de pessoas que tenham querido votar e que não estivessem nos cadernos eleitorais, embora seja de admitir que alguns casos dessa tipologia possam ter ocorrido, mas não de forma numericamente significativa ou como uma operação de desvirtuamento do ato.
9. Quanto à segunda questão, a da igualdade entre as candidaturas, cabe assinalar que a própria Declaração Preliminar da MOE da CPLP identifica deficiências relevantes no processo, as quais têm de ser corrigidas, apelando mesmo às autoridades angolanas para que se empenhem na melhoria dos procedimentos do processo eleitoral.
Desde logo, o acesso dos candidatos aos órgãos de comunicação social públicos é desigual. Fortemente desigual. Nas últimas semanas, dei uma atenção redobrada aos canais públicos de televisão pública angolanos e fui olhando para alguma imprensa escrita e pude concluir que há um abuso desses meios para valorizar a candidatura do partido no poder e desvalorizar outras candidaturas. A inserção de publicidade de um ministério que serve para louvar a ação do governo no poder ou uma peça de divulgação dos programas de comentário político onde só se podem ouvir elogios a um dos lados e críticas a outras candidaturas, são exemplos de expedientes que reconhecemos e que foram usados para lá do aceitável no período que antecedeu as eleições em causa. Tratando-se de meios públicos, a responsabilidade política por este tratamento desigual não pode ser iludida. Dizem-me que, pelo contrário, as redes sociais são claramente desfavoráveis ao Governo: isso não posso comentar, porque não frequento, mas aí não pode ser atribuída uma responsabilidade direta a nenhum agente com autoridade pública.
A divulgação atrasada de certos documentos necessários à boa preparação do processo por parte das candidaturas, como é o caso dos cadernos eleitorais, que não foram disponibilizados com a antecedência legalmente prevista, é criticável, porque desfavorece principalmente as candidaturas mais frágeis e aqueles que se encontram mais distantes da máquina administrativa e do poder.
O processo de constituição ou atualização da base de dados dos cidadãos com capacidade eleitoral foi polémico. Só muito tardiamente foi dada alguma informação pública sobre a forma como esse registo foi auditado e a informação fornecida não abona a favor da transparência do processo. É uma falha crítica e que não devia ser tolerada. Em todo o caso, deve dizer-se que, tanto quanto sei, não há evidência de que tenham ficado eleitores de fora dos cadernos. Por outro lado, a polémica acerca dos mortos nos cadernos eleitorais foi um tanto confusa: por um lado, para um português, esse fator não indicia qualquer vontade de fraude, e sabemos que há reais dificuldades administrativas em manter o registo atualizado quanto a óbitos; por outro lado, é verdade que a oposição alega que o problema com os mortos é terem sido deslocalizados, mas, creio, não será fácil fazer votar um morto, já que os cadernos eleitorais contêm fotografias (a cores!) de todos os eleitores, sendo fácil detetar alguém que se apresenta a tentar ludibriar o processo de identificação do eleitor no ato de votar.
De qualquer modo, é claro que o processo teve deficiências que prejudicam a igualdade das candidaturas presentes à disputa eleitoral, é claro que isso é criticável e, na minha apreciação, as autoridades tinham os meios e as competências para evitar essas falhas e deviam tê-lo feito.
10. Quanto à terceira questão, decisiva para o presente e o futuro destas eleições: podemos saber se os resultados oficiais correspondem fielmente aos votos entrados nas urnas (pelo menos em mandatos na Assembleia Nacional e quanto ao próximo Presidente da República)?
Creio que sim. Creio que o processo eleitoral angolano tem os instrumentos apropriados para garantir a fiabilidade do resultado eleitoral: há delegados dos partidos (normalmente de vários partidos, mesmo quando não a totalidade) em todas as Assembleias de Voto (e mesmo em todas as Mesas de Voto), que controlam à vista toda a operação de votação, desde antes de se abrirem as malas com os materiais eleitorais até depois de concluída a contagem; no final da contagem, os delegados recebem as atas com os resultados, assinadas por todos os delegados; os partidos podem reunir essas atas e, compilando a informação, fazer o seu próprio apuramento e detetar qualquer discrepância entre resultados oficiais e o que diz a documentação em sua posse. Isto implica um grau de organização assinalável por parte dos partidos, especialmente por parte dos partidos da oposição, mas é exigível que cumpram essa parte das suas responsabilidades como agentes políticos, mesmo que diferentes partidos tenham de colaborar entre si para garantir este mecanismo de controlo. Dos partidos da oposição, pelo menos a UNITA anunciou ter os meios para fazer o seu próprio apuramento (afirmou ter mais de 52.600 delegados em todo o país). O que se espera é que este mecanismo funcione e que seja possível comparar lotes de atas-síntese em qualquer situação em que algum partido assinale discrepância entre os seus dados e os dados oficiais – e que essa comparação seja feita de forma transparente e, se necessário, com conhecimento dos eleitores em geral.
Este mecanismo, dentro do quadro legal angolano, sem precisar de recorrer a meios estrangeiros, tem todas as condições para dilucidar quaisquer dúvidas. A verdade é que não basta que alguém alegue fraude para termos de reconhecer que há fraude. Há, aliás, quem sempre preveja fraude. Podemos até recear que alguns só reconhecerão o resultado eleitoral quando sejam eles próprios os vencedores das eleições. O que precisamos é de poder distinguir entre alegações de fraude com fundamento e alegações de fraude sem fundamento. Quem alega fraude tem o dever inescapável de apresentar evidências (as atas que atestam a contestação dos resultados nesta ou naquela circunscrição eleitoral).
Conclusão provisória
11. O líder de uma das forças concorrentes fez a seguinte afirmação: “Nem o MPLA está preparado para perder, nem a UNITA está preparada para não vencer.” É aqui que está o ponto onde os observadores têm de estar conscientes da sua responsabilidade: não nos cabe partilhar as perspetivas eleitorais de nenhuma candidatura. Talvez vários pensem que serão vencedores, mas, no dia D, só uma candidatura fica à frente. Os observadores nem podem legitimar uma falsa vitória, nem podem legitimar uma contestação infundada.
Em Portugal, como certamente noutros países, há partidários políticos de diferentes forças em Angola. É legítimo. Mas não é legítimo usar nessa luta política o recurso de tentar sujar, de forma genérica, o trabalho dos observadores. A MOE da CPLP traduz a diversidade política dos parlamentos dos diferentes Estados-Membros. Tentar vender a ideia de que os observadores da CPLP são uns vendidos ao poder de Angola, como alguns têm feito, sugere a seguinte pergunta: o líder parlamentar do MPD, de Cabo Verde, que integrou a MOE, é crível que esteja alinhado com o MPLA? A deputada da RENAMO que integrou a MOE, uma deputada que foi cabeça de lista da RENAMO nas últimas eleições num círculo eleitoral, é crível que esteja alinhada com o MPLA? Ou o deputado do PCD, de São Tomé e Príncipe? Só para dar alguns exemplos. Nem apelo aqui a que o leitor reconheça a minha capacidade de observação independente. Basta-me que reconheçam a personalidade política do Chefe de Missão, anterior Presidente da República de Cabo Verde, eleito com o apoio do MPD, e que reconheçam que seria bizarro considerar que pudesse ser um joguete do MPLA.
Não vou discutir política angolana. Não é esse o meu papel. O que espero é que as forças políticas angolanas usem todos os mecanismos legais próprios do processo em que se envolveram para dissipar quaisquer dúvidas sobre os resultados eleitorais e, depois, façam destas eleições um ponto de partida para aperfeiçoar a democracia angolana e a capacidade para responder aos anseios do povo. Neste tempo, difícil em todos os países, as democracias só podem vingar – e progredir – se derem resposta à vida concreta das pessoas. Lá como cá.