16.5.22
Questões à geringonça francesa (1)
9.5.22
A geringonça francesa
Acordo entre a França Insoumise e o Partido Socialista
para as próximas eleições legislativas
4 de maio de 2022
A France Insoumise e o Partido Socialista reuniram-se na quarta-feira 4 de Maio no quadro da preparação das próximas eleições legislativas. Chegámos aos seguintes pontos de acordo na continuidade das trocas de pontos de vista que tiveram lugar nas últimas duas semanas entre as nossas duas formações.
1. Queremos eleger deputados na maioria dos círculos eleitorais, para impedir Emmanuel Macron de prosseguir as suas políticas injustas e brutais (RSA sob condição de trabalho livre e reforma aos 65 anos) e para derrotar a extrema-direita. Propomos ao povo francês que a 12 e 19 de Junho realizemos uma grande convergência de votos, com base nos resultados das eleições presidenciais, abrindo caminho para uma maioria na Assembleia Nacional. Nesta perspectiva, de acordo com a tradição republicana, o Primeiro-Ministro sairia do maior grupo na Assembleia Nacional, ou seja, Jean-Luc Mélenchon.
[Nota: RSA: Revenu de Solidarité Active, Rendimento de Solidariedade Ativa, prestação que proporciona um nível mínimo de rendimento para pessoas sem recursos que varia de acordo com a composição do agregado familiar.]
2. Para tornar isto possível, queremos federar, com base num programa ambicioso, todas as forças que o partilham, respeitando a sua pluralidade e a sua autonomia. Por uma questão de clareza, queremos fazê-lo sob uma bandeira comum "Nova união popular ecológica e social"; a fim de dar vida à pluralidade, construiremos um parlamento de campanha que reunirá forças políticas e personalidades dos mundos sindical, associativo, cultural e intelectual. A maioria que queremos constituir será baseada em grupos parlamentares de cada uma das componentes e terá um intergrupo para completar e continuar este trabalho comum após as eleições.
3. Partilhamos objetivos programáticos comuns que constituirão a base de um programa de governo partilhado com várias centenas de propostas.
Em particular, iremos defender:
- A revalorização SMIC para 1.400 euros líquidos e a organização de uma conferência social sobre salários, formação, condições de trabalho e pensões; [Nota: SMIC, salaire minimum de croissance, salário mínimo de crescimento, que tem neste momento um valor mensal líquido médio de 1.300 euros, mas cujo valor exacto varia sectorialmente.]
- A criação de uma prestação para autonomia dos jovens e de uma garantia de dignidade;
- O direito à reforma aos 60 anos para todos, com especial atenção às carreiras longas e descontínuas e aos trabalhos árduos;
- O congelamento dos preços dos bens de primeira necessidade;
- O reforço e a generalização da representação dos trabalhadores nos conselhos de administração;
- A revogação da lei El Khomri, das contra-reformas do código do trabalho e do seguro de desemprego e a luta contra a uberização do trabalho com a presunção do estatuto de assalariado para os trabalhadores em plataformas;
[Nota. A lei El Khomri é uma lei de 2016, da iniciativa da Ministra do Trabalho Myriam El Khomri, do governo de Manuel Valls, durante a presidência de François Hollande. A lei, muito contestada, inclusivamente dentro do grupo parlamentar socialista, foi aprovada sem votação no parlamento, recorrendo ao dispositivo previsto na alínea 3 do artigo 49 da Constituição, que permite aprovar uma lei em conselho de ministros sem a submeter ao voto dos deputados, que podem na sequência (no prazo de 24 horas) apresentar uma moção de censura ao governo. Quando estava na oposição, Hollande tinha deste mecanismo a seguinte opinião: "É uma brutalidade. É uma negação da democracia". Em substância, a lei em causa trata-se de uma revisão das leis laborais na linha da “flexibilização” para, supostamente, dinamizar o mercado de trabalho, e, designadamente: reduzia o carácter coletivo da relações laborais, facilitando que empregador e trabalhador façam acordos à margem dos mínimos legais ou do que esteja acordado a nível coletivo, contornando a intervenção sindical; facilitava os despedimentos, nomeadamente alargando o leque de justificações económicas para os mesmos, tais como a mera quebra de encomendas ou de faturação; facilitava a redução do valor a pagar por trabalho suplementar, permitindo acordos de empresa com esse fim que fixassem valores mais baixos do que os acordos sectoriais.]
- A afirmação de um imperativo de justiça ecológica, que se exprime através de uma abordagem de planeamento, orientada por novos indicadores de progresso humano, bem como pela regra verde; [Nota: a “regra verde” consiste em "não tirar da natureza mais do que ela pode repor".]
- O fim da monarquia presidencial com a 6ª República e o referendo de iniciativa dos cidadãos, e um novo papel para as autoridades locais e os movimentos sociais, sindicais e associativos;
- O desenvolvimento dos serviços públicos, a recusa de os privatizar ou de os abrir à concorrência, a criação de um serviço público para a primeira infância e para os idosos;
- A imposição da igualdade salarial, dedicando mil milhões de euros à luta contra a violência contra as mulheres, prolongando a duração da licença parental, e em particular a licença de paternidade;
- A implementação de um sistema fiscal mais justo, em particular com o restabelecimento do ISF [Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna] e a revogação da flat tax [a flat tax, em inglês no original, refere-se à taxa única sobre todos os rendimentos de capital, em vigor desde 1 de janeiro de 2018];
- A revogação das leis sobre o separatismo e a segurança global que minam as nossas liberdades individuais; [Nota: a referência é para um conjunto alargado de leis promulgadas nos últimos anos, relativas a terrorismo, motins internos com destruição de bens no espaço público, asilo e imigração, informações de segurança sobre atividades associativas, possibilidades de ação policial na manutenção da ordem pública, …, criticadas por sectores da esquerda, e, em alguns casos, também por apoiantes de Macron na sua primeira eleição, como leis restritivas das liberdades de associação, manifestação, crença, opinião.]
- A defesa da República secular e universalista, a proteção da liberdade de consciência e de expressão, a ação resoluta contra o racismo, o antissemitismo e todas as formas de discriminação e a luta contra o comunitarismo e o uso político das religiões;
- A verdadeira igualdade nos territórios ultramarinos, o direito à água e a promoção dos territórios ultramarinos como postos avançados da bifurcação ecológica e solidária;
- A adoção de uma “proteção habitação” para limitar a fatia do rendimento gasto em habitação, em particular através da redução das rendas em todo o país e da produção de habitação social;
- 1% do PIB dedicado à cultura, orçamentos atribuídos para períodos de cinco anos, em todo o país, a fim de dar uma nova ambição às políticas culturais;
- A reconstrução de uma escola global para a igualdade e a emancipação, com a revalorização e o recrutamento de pessoal, uma escola com abandono zero, a abolição da reforma do Bac [diploma de fim do ensino secundário] e do Parcoursup [acesso ao ensino superior], e a mobilização contra o assédio escolar;
- Aumentar a esperança de vida em boa saúde e reduzir as desigualdades: garantir o acesso aos cuidados de saúde, desenvolver ações preventivas, lutar contra os desertos médicos; [A expressão “desertos médicos” refere-se a territórios onde o acesso aos cuidados de saúde, por exemplo por falta de profissionais, não corresponde ao padrão estabelecido.]
- A abertura de novos direitos, tais como o direito de escolher o fim da vida.
4. Sobre questões europeias e internacionais:
A França Insoumise, herdeira do “não” de esquerda ao Tratado Constitucional Europeu em 2005, e o Partido Socialista, ligado à construção europeia e às suas realizações, das quais é um ator-chave, têm histórias diferentes com a construção europeia. Mas partilhamos um objetivo comum: acabar com a orientação liberal e produtivista da União Europeia e construir um novo projeto ao serviço da bifurcação ecológica e solidária.
Se algumas regras europeias são pontos de apoio, todos podem ver hoje em dia até que ponto outras, e não menos importante, estão desfasadas dos imperativos da emergência ecológica e social. Durante a crise sanitária, certas regras orçamentais e de concorrência foram suspensas. Foi assim aberta uma brecha que temos de aproveitar para alcançar mudanças de longo alcance.
Devido às nossas histórias, alguns de nós falam de desobediência, outros de derrogações transitórias, mas temos o mesmo objetivo: sermos capazes de implementar plenamente o programa de governo partilhado e assim respeitar o mandato que nos terá sido dado pelos franceses.
A implementação do nosso programa partilhado conduzirá necessariamente a tensões, a constatar contradições. Teremos de ultrapassar estes bloqueios e estar preparados para não respeitar certas regras, trabalhando ao mesmo tempo para as transformar, em particular as regras económicas, sociais e orçamentais, tais como o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o direito da concorrência, as orientações produtivistas e neoliberais da Política Agrícola Comum, etc.
Não seremos nem os primeiros nem os últimos a fazê-lo, tanto em França como na Europa (Espanha sobre os preços da energia, Alemanha sobre os concursos públicos das empresas de água potável, Portugal sobre os aspetos económicos e orçamentais, etc.). Fá-lo-emos respeitando o Estado de direito e combatendo firmemente os ataques às liberdades fundamentais dos governos de extrema-direita da Hungria e da Polónia.
Como membro fundador da União Europeia, a França assumirá as suas responsabilidades neste quadro. O governo que iremos formar para esta legislatura não pode ter como política a saída da União, nem a sua desintegração, nem o fim da moeda única. O nosso objetivo será arrastar outros Estados connosco, a fim de contribuirmos como governo para a reorientação das políticas europeias e para a modificação duradoura das regras e tratados europeus que são incompatíveis com a nossa ambição social e ecológica legitimada pelo povo.
Finalmente, num contexto internacional de tensão e guerra no continente europeu e face às atrocidades decididas por Vladimir Putin, defendemos a soberania e a liberdade da Ucrânia. Além disso, continuamos a trabalhar nas nossas convergências para encontrar formas e meios de restaurar a paz e preservar a integridade territorial de todos os países. Teremos de iniciar uma cooperação altermundialista para agir por um mundo que respeite os direitos humanos, a democracia e a luta contra as alterações climáticas.
5. O Partido Socialista irá realizar um Conselho Nacional nas próximas horas para ratificar este acordo.
Estamos em tempo de nos mobilizarmos para as eleições legislativas e realizaremos um evento conjunto de lançamento no sábado 7 de Maio.