16.5.22

Questões à geringonça francesa (1)

 
Nupes : pourquoi les militants croient en la cohabitation mais restent  prudents - Le Parisien
 
Creio que temos obrigação de refletir sobre a Nova União Popular Ecológica e Social, a "geringonça" francesa que, juntando várias esquerdas, incluindo comunistas e ecologistas, vai tentar reanimar um espaço à esquerda do centrismo de Macron nas próximas legislativas. O primeiro contributo que aqui dei para isso consistiu, apenas, em disponibilizar uma tradução do acordo entre a France Insoumise, de Mélanchon, e o Partido Socialista Francês, a que acrescentei algumas notas sobre alguns pontos menos claros do texto para um leitor não francês (que pode ser lido clicando aqui). Hoje, suscitarei apenas algumas questões preliminares, que julgo interessarem a um princípio de reflexão sobre a matéria. Tenciono ir acompanhando o processo e ir tentando pensar sobre ele, mas com uma única certeza: o futuro dessa iniciativa política não está escrito nas estrelas, depende da capacidade de acção política dos seus integrantes e da sua capacidade para a construção de respostas efectivas de governabilidade, já que uma coisa é aspirar a liderar a oposição e outra coisa, bem diferente, é ser capaz de governar um país. Colocar-me-ei, claro, do ponto de vista de um militante da corrente da social-democracia, do socialismo democrático e do trabalhismo.
 
(1) Sem este acordo, ou algo parecido em termos de mecânica eleitoral, e com as características próprias do sistema francês, o Partido Socialista Francês (PSF) provavelmente desapareceria do parlamento nacional nas próximas eleições. Não vale a pena fazer grandes proclamações políticas, encher muito o peito de coragem ilimitada, se isso servir apenas para esconder que poderia acontecer ao PSF em França o que aconteceu ao CDS em Portugal. Tornando-se um partido extraparlamentar, depois de ter sido o partido dominante da política francesa, o PSF ficaria praticamente arredado de qualquer capacidade para influenciar o rumo dos acontecimentos. Se a política não é apenas uma actividade especulativa, mas deve ser acção, capacidade de intervenção, isso requer algum tipo de poder nos locais onde se tomam decisões. Apostar no desaparecimento político, apenas por orgulho partidário, seria renunciar. Estando fraco, muito fraco, como demonstraram os menos de 2% da candidatura presidencial, o PSF acabou por ter de aceitar um acordo em muitos aspectos deficiente e decepcionante - mas que pode ser uma possibilidade de não cair definitivamente na irrelevância política.


 (2) Claro que inúmeros "barões" do PSF se manifestaram contra o acordo. Há, certamente, muita coisa criticável no acordo e não podemos negar a essas figuras do PSF que possam ter razão em certas críticas (já lá vamos). De qualquer modo, não podemos esquecer o seguinte: alguns dos que agora criticam o acordo como sendo um mau passo foram - são - responsáveis pela desgraça política e eleitoral do PSF. Podemos "agradecer" a nomes como Hollande, que agora berra muito contra os inconvenientes do acordo, ter sido um dos grandes responsáveis por o PSF ter chegado ao estado em que está, graças ao seu péssimo desempenho político nos altos cargos a que chegaram em nome dos socialistas. Acresce que o acordo implica rever alguns aspectos das políticas seguidas anteriormente com o acordo de figuras do PSF, o que, naturalmente, não lhes agrada. Podem compreender-se reacções marcadas por estes factores subjectivos - não temos é que ficar entregues a essas visões subjectivas. Pelo contrário, em algum momento será necessário descolar de políticas erradas que tenham sido seguidas no passado.

(3) Alguns compromissos assumidos neste acordo são de duvidosa exequibilidade, pondo em causa a credibilidade de um governo que possa ceder à demagogia em lugar de defender a sustentabilidade do Estado social. A promessa de reformas aos 60 anos, salvo estudos cuidadosos que mostrassem a sua viabilidade naquele país - estudos que não existem, creio - pode ser muito popular, mas parece ser completamente irrealista e susceptível de vir a proporcionar contra-ataques privatizadores ao Estado social francês. O pior que a esquerda pode fazer é queimar as suas melhores bandeiras com o fogo da irresponsabilidade - e temo que seja, aqui, o caso.

(4) De longe, a parte mais tenebrosa do acordo entre LFI e o PSF é a que diz respeito à União Europeia. O acordo, tal como está escrito, é uma constatação de desacordo. É uma conversa divergente entre as tendências para matar a UE, que persistem numa certa esquerda (e, em França, numa certa extrema-direita) e o europeísmo dos socialistas. Assinar um acordo para marcar, preto no branco, que há uma enorme separação entre ambas as partes num vector estratégico fundamental para toda a governação, é bizarro. A dificuldade existe em toda a esquerda europeia, incluindo em Portugal: é já histórica a radical incapacidade das esquerdas para, na sua pluralidade, encontrarem uma abordagem partilhada, minimamente consistente e articulada, para a luta política a fazer, dentro da UE, para mudar a UE para uma orientação mais progressista. Sim, a UE precisa de mudanças; não, as mudanças na UE não se farão pela ameaça unilateral de romper as regras.
Aliás, aos olhos de um português salta imediatamente à vista, no texto do acordo, um sinal da pobreza política com que aquelas partes da esquerda francesa abordam a questão europeia. No ponto sobre as questões europeias e internacionais, às tantas enuncia-se a necessidade de "não respeitar certas regras" da UE e, logo de seguida, são dados exemplos (supostos exemplos). Portugal é dado como exemplo de situações passadas onde "aspetos económicos e orçamentais" das regras europeias teriam sido desrespeitadas. Ora, isso é completamente falso: dizer isso é, aliás, alinhar na conversa desviada que uma certa direita teve sobre o governo português no pós-2015. A estratégia portuguesa, com esta governação do PS, sempre foi trabalhar para melhorar as regras (ou a sua aplicação) sem cair na armadilha de as desrespeitar unilateralmente, que era mesmo o que a direita europeia queria para nos tramar. Infelizmente, este acordo mostra que a LFI e o PSF não perceberam a diferença entre a estratégia europeia de Varoufakis e a estratégia europeia dos governos de António Costa - e, assim, teme-se que tão pouco tenham percebido a diferença entre os resultado de uma e de outra. Para quem quer governar a França, isso é preocupante.

Há vários aspectos da dinâmica política em apreço que vão muito para além do que consta no acordo entre a France Insoumise e o PSF, mas isso ficará para outra altura.


Porfírio Silva, 16 de Maio de 2022
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9.5.22

A geringonça francesa

Face aos resultados das recentes eleições presidenciais, há uma movimentação em alguns sectores da esquerda francesa para criar uma alternativa eleitoralmente viável ao partido centrista (e cada vez mais englobando sectores da direita) de Macron. A France Insoumise, de Mélanchon, é o agente agregador desse dispositivo, que passa pelo experimentado esquema de candidaturas combinadas nas centenas de círculos eleitorais (entre os que fazem o acordo combinam-se os círculos onde concorrem candidatos de cada força, nesse círculo não se apresentando os demais partidos). O Partido Socialista Francês, cuja candidata presidencial obteve menos de 2% na contenda, entrou nessa movimentação, que se chamará Nova União Popular Ecológica e Social. O dispositivo realiza-se politicamente por acordos das diferentes formações com a France Insoumise, que se assume como líder da candidatura e como putativo primeiro-ministro. Há uma reflexão a fazer acerca do que tudo isto significa, mas começamos, para já, por disponibilizar o acordo que o PSF celebrou com LFI. Considerando que, pelo menos nas novas gerações, o domínio da língua francesa é pouco abundante, deixamos uma versão traduzida livremente para português, com alguns comentários destinados apenas a facilitar a leitura. (O original pode ser lido no sítio do PSF, seguindo este link.) Viremos, posteriormente, a alguma reflexão sobre tudo isto.
 
 
 

Acordo entre a França Insoumise e o Partido Socialista

 para as próximas eleições legislativas

 4 de maio de 2022

 
 
 

A France Insoumise e o Partido Socialista reuniram-se na quarta-feira 4 de Maio no quadro da preparação das próximas eleições legislativas. Chegámos aos seguintes pontos de acordo na continuidade das trocas de pontos de vista que tiveram lugar nas últimas duas semanas entre as nossas duas formações.

 

1. Queremos eleger deputados na maioria dos círculos eleitorais, para impedir Emmanuel Macron de prosseguir as suas políticas injustas e brutais (RSA sob condição de trabalho livre e reforma aos 65 anos) e para derrotar a extrema-direita. Propomos ao povo francês que a 12 e 19 de Junho realizemos uma grande convergência de votos, com base nos resultados das eleições presidenciais, abrindo caminho para uma maioria na Assembleia Nacional. Nesta perspectiva, de acordo com a tradição republicana, o Primeiro-Ministro sairia do maior grupo na Assembleia Nacional, ou seja, Jean-Luc Mélenchon.

[Nota: RSA: Revenu de Solidarité Active, Rendimento de Solidariedade Ativa, prestação que proporciona um nível mínimo de rendimento para pessoas sem recursos que varia de acordo com a composição do agregado familiar.]

 

2. Para tornar isto possível, queremos federar, com base num programa ambicioso, todas as forças que o partilham, respeitando a sua pluralidade e a sua autonomia. Por uma questão de clareza, queremos fazê-lo sob uma bandeira comum "Nova união popular ecológica e social"; a fim de dar vida à pluralidade, construiremos um parlamento de campanha que reunirá forças políticas e personalidades dos mundos sindical, associativo, cultural e intelectual. A maioria que queremos constituir será baseada em grupos parlamentares de cada uma das componentes e terá um intergrupo para completar e continuar este trabalho comum após as eleições.

 

3. Partilhamos objetivos programáticos comuns que constituirão a base de um programa de governo partilhado com várias centenas de propostas.

Em particular, iremos defender:

- A revalorização SMIC para 1.400 euros líquidos e a organização de uma conferência social sobre salários, formação, condições de trabalho e pensões; [Nota: SMIC, salaire minimum de croissance, salário mínimo de crescimento, que tem neste momento um valor mensal líquido médio de 1.300 euros, mas cujo valor exacto varia sectorialmente.]

- A criação de uma prestação para autonomia dos jovens e de uma garantia de dignidade;

- O direito à reforma aos 60 anos para todos, com especial atenção às carreiras longas e descontínuas e aos trabalhos árduos;

- O congelamento dos preços dos bens de primeira necessidade;

- O reforço e a generalização da representação dos trabalhadores nos conselhos de administração;

- A revogação da lei El Khomri, das contra-reformas do código do trabalho e do seguro de desemprego e a luta contra a uberização do trabalho com a presunção do estatuto de assalariado para os trabalhadores em plataformas;

[Nota. A lei El Khomri é uma lei de 2016, da iniciativa da Ministra do Trabalho Myriam El Khomri, do governo de Manuel Valls, durante a presidência de François Hollande. A lei, muito contestada, inclusivamente dentro do grupo parlamentar socialista, foi aprovada sem votação no parlamento, recorrendo ao dispositivo previsto na alínea 3 do artigo 49 da Constituição, que permite aprovar uma lei em conselho de ministros sem a submeter ao voto dos deputados, que podem na sequência (no prazo de 24 horas) apresentar uma moção de censura ao governo. Quando estava na oposição, Hollande tinha deste mecanismo a seguinte opinião: "É uma brutalidade. É uma negação da democracia". Em substância, a lei em causa trata-se de uma revisão das leis laborais na linha da “flexibilização” para, supostamente, dinamizar o mercado de trabalho, e, designadamente: reduzia o carácter coletivo da relações laborais, facilitando que empregador e trabalhador façam acordos à margem dos mínimos legais ou do que esteja acordado a nível coletivo, contornando a intervenção sindical;  facilitava os despedimentos, nomeadamente alargando o leque de justificações económicas para os mesmos, tais como a mera quebra de encomendas ou de faturação; facilitava a redução do valor a pagar por trabalho suplementar, permitindo acordos de empresa com esse fim que fixassem valores mais baixos do que os acordos sectoriais.]

- A afirmação de um imperativo de justiça ecológica, que se exprime através de uma abordagem de planeamento, orientada por novos indicadores de progresso humano, bem como pela regra verde; [Nota: a “regra verde” consiste em "não tirar da natureza mais do que ela pode repor".]

- O fim da monarquia presidencial com a 6ª República e o referendo de iniciativa dos cidadãos, e um novo papel para as autoridades locais e os movimentos sociais, sindicais e associativos;

- O desenvolvimento dos serviços públicos, a recusa de os privatizar ou de os abrir à concorrência, a criação de um serviço público para a primeira infância e para os idosos;

- A imposição da igualdade salarial, dedicando mil milhões de euros à luta contra a violência contra as mulheres, prolongando a duração da licença parental, e em particular a licença de paternidade;

- A implementação de um sistema fiscal mais justo, em particular com o restabelecimento do ISF [Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna] e a revogação da flat tax [a flat tax, em inglês no original, refere-se à taxa única sobre todos os rendimentos de capital, em vigor desde 1 de janeiro de 2018];

- A revogação das leis sobre o separatismo e a segurança global que minam as nossas liberdades individuais; [Nota: a referência é para um conjunto alargado de leis promulgadas nos últimos anos, relativas a terrorismo, motins internos com destruição de bens no espaço público, asilo e imigração, informações de segurança sobre atividades associativas, possibilidades de ação policial na manutenção da ordem pública, …, criticadas por sectores da esquerda, e, em alguns casos, também por apoiantes de Macron na sua primeira eleição, como leis restritivas das liberdades de associação, manifestação, crença, opinião.]

- A defesa da República secular e universalista, a proteção da liberdade de consciência e de expressão, a ação resoluta contra o racismo, o antissemitismo e todas as formas de discriminação e a luta contra o comunitarismo e o uso político das religiões;

- A verdadeira igualdade nos territórios ultramarinos, o direito à água e a promoção dos territórios ultramarinos como postos avançados da bifurcação ecológica e solidária;

- A adoção de uma “proteção habitação” para limitar a fatia do rendimento gasto em habitação, em particular através da redução das rendas em todo o país e da produção de habitação social;

- 1% do PIB dedicado à cultura, orçamentos atribuídos para períodos de cinco anos, em todo o país, a fim de dar uma nova ambição às políticas culturais;

- A reconstrução de uma escola global para a igualdade e a emancipação, com a revalorização e o recrutamento de pessoal, uma escola com abandono zero, a abolição da reforma do Bac [diploma de fim do ensino secundário] e do Parcoursup [acesso ao ensino superior], e a mobilização contra o assédio escolar;

- Aumentar a esperança de vida em boa saúde e reduzir as desigualdades: garantir o acesso aos cuidados de saúde, desenvolver ações preventivas, lutar contra os desertos médicos; [A expressão “desertos médicos” refere-se a territórios onde o acesso aos cuidados de saúde, por exemplo por falta de profissionais, não corresponde ao padrão estabelecido.]

- A abertura de novos direitos, tais como o direito de escolher o fim da vida.


4. Sobre questões europeias e internacionais:

A França Insoumise, herdeira do “não” de esquerda ao Tratado Constitucional Europeu em 2005, e o Partido Socialista, ligado à construção europeia e às suas realizações, das quais é um ator-chave, têm histórias diferentes com a construção europeia. Mas partilhamos um objetivo comum: acabar com a orientação liberal e produtivista da União Europeia e construir um novo projeto ao serviço da bifurcação ecológica e solidária.

Se algumas regras europeias são pontos de apoio, todos podem ver hoje em dia até que ponto outras, e não menos importante, estão desfasadas dos imperativos da emergência ecológica e social. Durante a crise sanitária, certas regras orçamentais e de concorrência foram suspensas. Foi assim aberta uma brecha que temos de aproveitar para alcançar mudanças de longo alcance.

Devido às nossas histórias, alguns de nós falam de desobediência, outros de derrogações transitórias, mas temos o mesmo objetivo: sermos capazes de implementar plenamente o programa de governo partilhado e assim respeitar o mandato que nos terá sido dado pelos franceses.

A implementação do nosso programa partilhado conduzirá necessariamente a tensões, a constatar contradições. Teremos de ultrapassar estes bloqueios e estar preparados para não respeitar certas regras, trabalhando ao mesmo tempo para as transformar, em particular as regras económicas, sociais e orçamentais, tais como o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o direito da concorrência, as orientações produtivistas e neoliberais da Política Agrícola Comum, etc.

Não seremos nem os primeiros nem os últimos a fazê-lo, tanto em França como na Europa (Espanha sobre os preços da energia, Alemanha sobre os concursos públicos das empresas de água potável, Portugal sobre os aspetos económicos e orçamentais, etc.). Fá-lo-emos respeitando o Estado de direito e combatendo firmemente os ataques às liberdades fundamentais dos governos de extrema-direita da Hungria e da Polónia.

Como membro fundador da União Europeia, a França assumirá as suas responsabilidades neste quadro. O governo que iremos formar para esta legislatura não pode ter como política a saída da União, nem a sua desintegração, nem o fim da moeda única. O nosso objetivo será arrastar outros Estados connosco, a fim de contribuirmos como governo para a reorientação das políticas europeias e para a modificação duradoura das regras e tratados europeus que são incompatíveis com a nossa ambição social e ecológica legitimada pelo povo.

Finalmente, num contexto internacional de tensão e guerra no continente europeu e face às atrocidades decididas por Vladimir Putin, defendemos a soberania e a liberdade da Ucrânia. Além disso, continuamos a trabalhar nas nossas convergências para encontrar formas e meios de restaurar a paz e preservar a integridade territorial de todos os países. Teremos de iniciar uma cooperação altermundialista para agir por um mundo que respeite os direitos humanos, a democracia e a luta contra as alterações climáticas.

 

5. O Partido Socialista irá realizar um Conselho Nacional nas próximas horas para ratificar este acordo.

Estamos em tempo de nos mobilizarmos para as eleições legislativas e realizaremos um evento conjunto de lançamento no sábado 7 de Maio.

 
 ***
 
Proximamente, voltaremos para incentivar um debate sobre este processo político. Entretanto, a direção alargada do PSF já aprovou o acordo, com os resultados que se mostram na ilustração.
 
 Porfírio Silva, 9 de Maio de 2022
 
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