1. Sou sincero: tenho pena que tenha sido necessário lutar por uma maioria absoluta do PS para garantir que a esquerda seja capaz de dar uma estabilidade progressista à governação de Portugal. A esquerda da esquerda, fazendo do governo do PS o bombo da festa, no meio de uma pandemia sem precedentes nas nossas vidas e de uma crise económica e social gravíssima, perdeu a noção da realidade e, com isso, deu uma oportunidade à direita. A esquerda da esquerda deu ao PSD um bónus (poder argumentar que a esquerda foi incapaz de garantir a governabilidade e acenar com a alternativa de um bloco central assumido ou implícito) e deu ao partido do protofascista uma janela de oportunidade que não teria daqui a dois anos, se a legislatura não tivesse sido interrompida. Eu, que desde o início deste “ciclo António Costa” me bati pela maioria da Esquerda Plural, que sempre reconheci que o PCP e o BE deram contributos positivos a esta governação do PS, que nunca aconselhei o pedido de maioria absoluta, que sou um convicto defensor de governações com apoio parlamentar maioritário suportado em acordos escritos onde os compromissos mútuos sejam explicitados, devo reconhecer que hoje a esquerda plural… está no PS. E que a maioria do PS era, neste momento, a única possibilidade de garantir que podemos prosseguir uma política progressista num horizonte de estabilidade política, que a dificuldade do momento exige. Por mérito do PS e porque o PCP e o BE perderam (espero que apenas momentaneamente) a noção da realidade, esquecendo que não há qualquer “maioria de esquerda” em Portugal sem o PS.
2. O Secretário-Geral do PS disse ontem o essencial: a maioria dá-nos uma enorme responsabilidade. A responsabilidade do diálogo, da concertação, da mobilização de olhos postos no futuro. Uma maioria para cuidar do longo prazo. Para evitarmos absolutamente que nos possa acontecer secar com a arrogância ou com a auto-suficiência. Como todos os outros, também o nosso ciclo há-de terminar, mas temos de saber fazer este caminho atentos à diversidade do país, amigos da diferença, promotores da pluralidade. Uma maioria amiga da democracia e do desenvolvimento, que é a democracia concreta. Valorizando as nossas diferenças positivas: fazemos um equilíbrio entre o público, o social e o privado que mais nenhuma força política em Portugal promove; pugnamos por um equilíbrio entre legislação e concertação social que não é querida nem da direita nem da outra esquerda; temos uma visão da integração europeia – europeístas entusiastas, mas sem dogma; europeístas, mas conscientes do que há a corrigir no edifício da UE – que nos distingue quer da direita quer da outra esquerda. Continuando a trabalhar para uma melhor democracia: representativa, participativa e deliberativa. E sabendo que precisamos ultrapassar os conservadorismos bolorentos, que também os há à esquerda.
3. Estamos, agora definitivamente, num ciclo político longo (depois de seis anos de governo, uma maioria absoluta com o horizonte padrão de quatro anos… e sabe-se lá o quê mais). Os ciclos políticos longos têm os seus próprios escolhos e alçapões. O problema básico dos ciclos políticos longos é a tendência deslizante para a concentração do poder no topo da pirâmide e o deslaçamento do enraizamento na base (seja em relação à base de apoio popular, seja em relação à base institucional que organiza o conjunto). Ao ser um líder extremamente forte e bem preparado, António Costa correria todos os riscos de lhe servirem de bandeja essa concentração de poder, se ele a pretendesse. Ainda por cima, a força das circunstâncias da gestão da pandemia concorre para essa concentração de poder. Creio, no entanto, que a liderança socialista tem a noção completa desse risco e quererá combatê-lo com método. Não é preciso inventar: promover que o grupo parlamentar do PS expresse a pluralidade do país e a diversidade do nosso eleitorado, sem temer que isso prejudique a liderança executiva do governo; assumir o parlamento como um lugar de verdadeira deliberação, usando mais a arma da argumentação, da negociação e do compromisso interpartidário do que a arma da maioria dos votos, procurando mais convencer do que vencer; apostar ainda mais na concertação social, a todos os níveis, procurando que todos os parceiros entendam – e sintam no concreto – que vale mais negociar do que ficar de fora; avançar na descentralização, para aproximar a cidadania das instituições; e, por último mas não menos importante, valorizar o partido, todo o partido, a militância, como instituição onde tem voz o povo anónimo que é socialista sem ocupar cargos ou funções públicas, investir no partido como instituição de pertença dos socialistas à comunidade política nacional. Estas não são questões menores, nem laterais: são decisivas para o desafio de aproveitar ao máximo as energias positivas de uma maioria.
4. Palavras breves sobre outras forças políticas. Rui Rio viu bem a necessidade de ter um partido de centro-direita que se libertasse do radicalismo do “ir além da troika”, mas não teve a coragem política de ser consequente. Queria ser de centro e, ao mesmo tempo, amigável para o protofascista, até ao ponto de vir, à última hora da campanha, sugerir uma geringonça de direita, desdizendo tudo o que vinha anunciando há semanas como o seu compromisso político. Escreveu um programa tosco, incompetente em muitas áreas (na educação, por exemplo), envergonhado noutras. Tentou ser engraçado, em vez de ser sério e consistente. Em hora tão séria, os eleitores não estiveram para brincadeiras, assunto arrumado.
5. Há dois partidos radicais que tiveram grande sucesso nestas eleições: o partido do protofascista e o partido dos “liberais”. Nada a acrescentar sobre o protofascista: é preciso trabalhar para eliminar a motivação socioeconómica de uma parte da sua base de apoio, mas também é preciso combater sem tibiezas todos aqueles que realmente desprezam a democracia e desprezam a igualdade e que constituem, também, uma parte importante do seu eleitorado. Quanto aos nossos “liberais”, é preciso fazer um trabalho mais rigoroso no debate ideológico com a IL: não deixar que este partido se aproprie, para dourar a pílula de propostas políticas que só servem grupos privilegiados, das coisas boas que a inspiração filosófica do liberalismo teve na evolução do pensamento da humanidade; obrigar a IL a sair dos chavões e a posicionar-se perante as diversas questões que cindem o campo alargado do liberalismo (não esquecer que a “tradição liberal” em política vai desde a escola de economistas que suportou o facínora Pinochet até aos liberais que estão no governo com o SPD na Alemanha); ir mais a fundo no debate e escrutínio das propostas da IL (felizmente apresentaram um programa eleitoral bastante detalhado, onde, provavelmente, vamos encontrar motivos para os obrigar a voltar atrás em propostas como a que previa que os estudantes do ensino superior pagassem as suas propinas); responder às exigências dos jovens qualificados que precisam de ter vida e têm a ilusão de que viveriam melhor com um Estado mínimo. Da tarefa de combater estes radicalismos não pode o PS dispensar-se, nem achar que isso é problema de outros: o país precisa de uma direita democrática, de uma direita social, de uma direita que não se esgote no individualismo egoísta que a tem dominado há demasiado tempo – e os dois partidos radicais que passam a ter grupo parlamentar são inimigos da direita democrática e social que poderia ser útil ao país, razão pela qual são também inimigos da sociedade mais justa por que trabalhamos.
6. O voto é a arma do povo. Os socialistas sentem-se muito bem num regime democrático estruturado nessa base. Trata-se, agora, mais uma vez, de assumir as inerentes responsabilidades.