8.3.21

O segundo mandato de MRS e a direita miguelista



 
O início do segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República é marcado pelo desafio da recuperação face à crise social e económica provocada pela pandemia, cada órgão de soberania no seu papel próprio. Contudo, é marcado, também, por um desafio de fundo ao sistema democrático consagrado na Constituição da República Portuguesa, a qual o PR jurará respeitar, fazer respeitar e defender.
 
Há um problema novo para o Presidente no início do segundo mandato, que não existia no início do primeiro mandato. Assistimos ao regresso da direita miguelista, que toma a esquerda (antes eram os liberais), não como adversários políticos numa sociedade plural, mas como seres moralmente perversos, ímpios, a própria encarnação do mal, com os quais não há conciliação possível. O discurso dos "portugueses de bem" tem essa raíz.
 
Essa corrente da direita portuguesa, que vem de longe nas nossas tradições políticas (por isso lhe chamo direita miguelista), toma a democracia como uma construção artificial, anti-natural e, portanto, daninha. É assim que a direita miguelista justifica a violência contra os seus adversários políticos (a violência verbal é, frequentemente, um aperitivo para a violência material). A violência é tomada como um instrumento normal de combate político contra a personificação do mal - o que, historicamente, já envolveu o recurso à guerra civil.Depois de muitos anos em zonas cinzentas da nossa sociedade, esta direita miguelista procura, de novo, o seu lugar ao sol. É, por isso, importante, ter a noção do seu papel histórico.

E, no plano estritamente político, importa saber se a direita tradicional (tradicional na história desta democracia de Abril), onde prevalece o PSD e o CDS, é capaz de preservar a sua autonomia estratégica ou se deixa subordinar a sua prática política ao cânone da direita miguelista. A questão da autonomia estratégica da direita tradicional coloca-se deste modo: o PSD e o CDS fazem aquilo que acham que devem fazer, em função das suas análises do país e dos seus programas políticos, ou o PSD e o CDS fazem aquilo que o discurso da direita miguelista os obriga a fazer, por táctica eleitoral, por medo do impacto do apelo do discurso extremado do miguelismo do século XXI, por quererem os seus votos nesta assembleia legislativa regional ou naquela câmara municipal?
 
O problema da autonomia estratégica da direita tradicional é uma questão fulcral para o futuro imediato do país. Se a direita miguelista meter no bolso as correntes democráticas da direita, temos um problema para a democracia - e, portanto, arriscamos recuos no plano social. Na véspera do início do segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, que, sendo Presidente de todos os portugueses, nunca esquece a sua família política e, mesmo que discretamente, não deixa de ter o seu plano para essa mesma família política, paira um grande ponto de interrogação: será o Presidente Marcelo capaz de encontrar um caminho para a direita democrática que trave a direita miguelista? 
 
Não acredito em presidentes alheios à dinâmica partidária, por muito independente que seja a sua actuação institucional. E, em boa verdade, defender a Constituição da República Portuguesa passa por travar a direita miguelista. Marcelo Rebelo de Sousa, na única situação em que foi confrontado institucionalmente com esta questão (formação do novo Governo dos Açores), laborou, entre silêncios e palavras, numa grande trapalhada. Será MRS capaz, no segundo mandato, de construir uma abordagem mais eficiente a este desafio?
 
 
Porfírio Silva, 8 de Março de 2021 
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