10.6.20

À crise, uma resposta democrática, não tecnocrática



A democracia nunca esteve suspensa, nem durante o estado de emergência. Deve-se isso, antes de mais, a um Governo que nunca pediu a declaração do estado de exceção e que, não o tendo obstaculizado, aceitou o encargo constitucional de executar o que estava declarado, fazendo dele o uso mais minimalista que se podia. Aliás, estes tempos de exceção, durante e até depois do estado de emergência, foram tempos de um especial esforço de concertação entre órgãos de soberania, entre instituições do Estado e parceiros sociais, envolvendo outras forças relevantes na orientação de grupos importantes da população. Concertação informal, mas concertação. O emblema mais claro desse esforço foi a análise periódica da situação epidemiológica com as autoridades de saúde e os cientistas que as aconselham, num periódico briefing nas instalações do Infarmed, onde, sem nenhuma obrigação formal, se notou um esforço bastante alargado dos dirigentes políticos em evitar passar mensagens desorientadoras à população.

Entretanto, o progressivo alívio das restrições impostas durante uma fase mais crítica da pandemia está a ser acompanhado, e bem, de um alívio do esforço de convergência política. A pluralidade da opinião política deve ser capaz de gerar melhores decisões do que o “consenso”. Embora a capacidade dos principais agentes políticos para baixar o nível de conflitualidade patente tenha sido relevante para uma gestão equilibrada dos primeiros meses desta saga (até porque temos, em modo corrente, um grau excessivo e demasiado permanente de cultivo da divergência), considero desejável que o debate plural das opções constitua a forma normal de apurar a qualidade da decisão. A pluralidade democrática não serve apenas para dar seguimento às nossas liberdades: deve ser, ainda, um bom método de preparação das decisões da comunidade – e, também, um bom meio de propiciar a sua implementação adequada.

Contudo, não nos enganemos. A crise económica e social provocada pela pandemia, mesmo que esta não volte a agravar-se no plano estritamente sanitário, propicia um novo aumento das tensões sociais e, consequentemente, das dificuldades em gerar convergências sustentáveis no plano político acerca dos caminhos apropriados para responder ao aumento das desigualdades sociais. Seria importante que o país fosse capaz de responder com mais inteligência coletiva do que na anterior crise, financeira e das dívidas soberanas, onde uma parte das forças políticas portuguesas trataram de aproveitar as dificuldades para aplicar um programa ideologicamente radical, propagando a necessidade do empobrecimento como saída da crise e defendendo a perda de direitos como estado permanente – tudo resumido no refrão “ir além da troika”.

Uma resposta coletiva mais inteligente passa pelas orientações políticas – recusar a estratégia deliberada de corte de rendimentos das pessoas, de aumento brutal de impostos sobre aqueles que nunca lhes podem fugir, e de destruição dos serviços públicos como expedientes para cortar despesa; apostar no investimento, público e privado, para encarar a economia para além do equilíbrio das finanças públicas (que também não é de desprezar).

Contudo, uma resposta coletiva inteligente também passa pelo reforço da democracia. Designadamente, a resposta à pandemia e à crise social e económica precisa de mais negociação, não menos. Precisa, por exemplo, de um esforço adicional de empregadores e trabalhadores para definir respostas apropriadas ao desafio. Um exemplo evidente: o teletrabalho, que alguns descobrem agora como salvação de tudo e mais alguma coisa.

Os compradores de utopias (ou distopias) baratas e sem certificado de conformidade estão excessivamente excitados com as vantagens do teletrabalho. Mas fazem-no alimentando muitos equívocos. O encerramento do trabalhador em casa, enclausurado num isolamento que nem a uma peça de uma máquina se deseja; a desagregação do coletivo a favor de um espalhamento da força de trabalho por um território indefinido e mal mapeado; a fragilização dos separadores entre vida pessoal, familiar e profissional, a favor de um estado de “sempre em pé” onde qualquer hora do dia ou da noite é boa para solicitar trabalho; as novas barreiras ao exercício concreto dos direitos, numa espécie de universalização do estatuto do freelancer (como já existe na compra e venda de trabalho online) – são riscos que não podem ser ignorados. Não é por acaso que, em lado nenhum do mundo, o teletrabalho se tornou a forma dominante de organização do trabalho.

Ao mesmo tempo, os que querem parar o vento com as mãos nuas fazem parceiros perfeitos dos entusiastas fáceis da mudança radical. Equívoco muito comum por estes dias é a ideia de que devemos optar entre trabalho presencial e teletrabalho. Sim ou não, tudo ou nada, uma forma ou outra. Ou trabalhas nas instalações da empresa ou trabalhas em casa. É, aliás, em larga medida, o equívoco dos que falam do ensino à distância como se ele devesse ser um outro mundo novo para a educação – como se o ensino à distância não tivesse que ser, apenas, uma das múltiplas formas de aprender e ensinar, um recurso, uma possibilidade, mas nunca modalidade exclusiva, nunca única, nunca em tempo algum para substituir a presença, o contacto, a interação, a emoção ao vivo e a cores. Porque essas são dimensões insubstituíveis do aprender e do ensinar. É igualmente bizarro que se pense na generalização do teletrabalho puro, sempre à distância.

Para enfrentar esses problemas temos de negociar. E negociar coletivamente. A negociação coletiva, que tem vindo a ser revalorizada nos últimos anos, é essencial que nesta conjuntura volte a estar na linha da frente. Voltando ao exemplo do teletrabalho: isolar o trabalhador face ao empregador sempre foi a técnica para enfraquecer a parte já de si mais fraca – e isso não pode acontecer na evolução do teletrabalho. Como era, até agora, largamente minoritário, a negociação das condições do teletrabalho era individualizada, mas, se é para ganhar maior expressão, deve ser objeto de negociação coletiva. Para proteção do trabalhador, mas também para ter lógica do ponto de vista do empregador: se, numa organização, a dado momento puderem estar em teletrabalho 15%, ou 20% ou 25% dos trabalhadores, essa realidade tem de ser gerida do ponto de vista da organização do conjunto, não faria sentido que se deixasse cair numa manta de retalhos pensada apenas caso a caso a forma de trabalhar nessas circunstâncias.

Defendo que esse impulso negocial tem de ser dado, porque o teletrabalho parcial (alguns dias na semana, alguns dias no mês, podendo ser mais em certos períodos do ano e menos noutros, combinando com trabalho presencial) pode ser muito favorável aos trabalhadores, poupando tempo em deslocações (tantas vezes esgotantes) e permitindo formas de organização do quotidiano propiciadoras da melhor conciliação entre vida pessoa, familiar e profissional. Como muitos de nós já fazemos, sem invocarmos o teletrabalho…

Estes são, de qualquer modo, apenas exemplos de como a resposta à crise, adaptando as nossas formas de organização, não deverá ser apenas uma resposta tecnocrática. Tem de ser uma resposta democrática. Uma resposta que revalorize a concertação, a negociação, o agir coletivo, o foco no bem comum e no reforço dos instrumentos que servem todos. Uma resposta democrática não seria aquela que tendesse a concentrar poderes, a estreitar ou a desvalorizar a representação – terá de ser uma resposta de ainda maior aposta na participação e na representação plural.

O termo “governança” não é muito bem acolhido na nossa comunidade de língua e de política, porque nunca conseguiu traduzir a ideia de que a democracia (representativa, participativa e deliberativa) pode ser valorizada, em vez de relativizada ou condicionada, por processos vários de formar decisão que vão além dos mecanismos explícitos e formais. É pena, porque a ideia de “governança” devia ser capaz de expressar a ideia de um ambiente de condições fluídas de democratização da decisão em planos que ultrapassam a teoria da democracia na sua dimensão institucional. Por exemplo, não deve ser possível legislar sobre as formas de construir coletivos decisionais onde “a voz do chefe” não seja um incentivo aos bajuladores e aos que vão sempre na onda do momento, nem deve ser possível legislar a favor da capacidade construtiva da crítica e da discordância no seio de coletivos de decisão plurais – mas, embora isso não se legisle, essas são, creio, dimensões importantes para alimentarmos as virtudes democráticas no seio das nossas instituições.

Reforçar a nossa resposta à crise passa por reforçar a democracia. E isso quer dizer tanta coisa! Quer dizer, certamente, que não faremos hoje como se fez na crise anterior, onde se procurou usar o cutelo das dificuldades económicas para cortar nos direitos e na participação. Até na União Europeia se usou a crise para substituir a igualdade entre Estados-Membros por uma hierarquia entre devedores e credores. Deverá querer dizer que precisamos sempre de mais democracia e nunca menos – e que isso importa nos dias difíceis que vivemos e vamos continuar a viver. O que os socialistas têm proposto, no Governo e no Parlamento, tem sido sinal de uma forte consciência da necessidade de continuar a luta por uma sociedade decente – mesmo nesta crise. Confio que nunca perderemos a noção de que isso passa, essencialmente, também pela exigência democrática que tem sido o nosso timbre.




Porfírio Silva, 10 de Junho de 2020
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