1. Um proeminente fundador do BE e o seu líder parlamentar revezaram-se recentemente nas páginas do Público debruçando-se sobre o PS. Sendo eu, desde há muitos anos, defensor da cooperação à esquerda, vejo-me questionado pelo que aí leio.
Volvida uma legislatura de esquerda plural com responsabilidades de maioria parlamentar, o BE volta ao velho ódio político ao PS. Os governos do PS são metidos no mesmo saco dos governos de Cavaco Silva. Diz-se que “nada de essencial separa a austeridade dos partidos socialistas no poder da dos governos da direita”. E do lado do BE compra-se a tese, tão cara à direita lusa, de que foi o PS que chamou a troika: já não interessa a crise do capitalismo internacional, parece mesmo que não voltará a haver crises, o que importa é atacar o PS, recriando a tese de Ferreira Leite que em 2008 chamava constipaçãozinha à Grande Recessão mundial. Tudo isto depois de quatro anos de Geringonça.
2. Pelos vistos, esta recaída do BE resulta de António Costa ter feito uma distinção entre os comportamentos políticos do BE e do PCP. Ora, creio que qualquer deputado do PS nesta legislatura que tenha negociado com parlamentares do BE e do PCP partilha a análise de António Costa. Por mim falo: as diferenças políticas nunca me incomodaram, mas distingo os comportamentos concretos. Ir na conversa de movimentos inorgânicos, de discursos anti-políticos e anti-parlamentares, e alinhar com “novos sindicatos” radicalizados (tão anti-sindicatos consolidados como anti-partidos), são opções que separam o BE do resto da esquerda e o aproximam do actual PSD.
Durante toda a legislatura, tudo o que se conseguia fazer era obra da esquerda da esquerda e qualquer coisa que não se conseguisse fazer era culpa da (má) vontade do PS. Fomos ouvindo essa litania com nervos de aço, mas não nos podem pedir para, em tempo de balanço e propositura, calarmos as nossas avaliações. O melindre do BE com as nossas opiniões, públicas e transparentes, é pueril.
3. Importa colocar tudo isto em perspectiva. A histórica agressividade do BE contra o PS tem uma sombra: a vontade que o BE tem de tornar irrelevante o PCP. Isso explica os ataques insidiosos ao PCP que acompanharam esta onda. Os que no BE querem um ajuste de contas histórico com o PCP parecem muito activos e os ataques ao PS servem de cortina.
O PS tem experiência de divergir e de convergir com o PCP. A lealdade institucional do PCP, mais a sua implantação sindical e autárquica, fazem desse partido um factor de exigência política, focado mais nas realizações do que na espuma mediática. O PCP, por exemplo, mostra as suas posições próprias sobre o SNS, mas nunca esqueceu que António Arnaut foi ministro do PS e morreu nosso Presidente Honorário. Estas coisas são importantes, porque uma esquerda plural vive tanto de diversidade como de respeito pelos parceiros. Estratégias tomba-parceiros, mesmo que sejam claramente anti-PS e disfarçadamente anti-PCP, não ajudam nada à esquerda plural.
4. Todos na esquerda temos um passado, incluindo divergências e enfrentamentos. Nada mais natural, nada mais democrático. Também tivemos esse debate no seio do PS, mas soubemos priorizar o futuro. A Geringonça não é uma entidade metafísica: é uma construção política concreta, só viável quando plural. Parece que o BE só acharia o PS frequentável se o PS se tornasse igual ao BE, mas pensamos que isso não seria útil a ninguém. E seria uma perigosa negação da necessária pluralidade da esquerda. Para recorrer mais uma vez ao paralelo grego, lembremos que Portugal beneficiou de o PS não ter seguido o exemplo do PASOK, mas também de não termos aparecido com o programa do Syriza.
Aos que confundem o PS com a direita há que lembrar que somos o partido que construiu e consolidou o SNS, a escola pública, a segurança social pública, o partido da esquerda democrática que deu as contribuições decisivas para o nosso Estado Social de Direito. Sem o PS não é possível a esquerda maior de que o país precisa. Que ninguém se volte a equivocar nesse ponto, porque esse equívoco já uma vez abriu as portas do poder à direita, com as gravíssimas consequências conhecidas. A esquerda plural continua a ser necessária, mas enganam-se os que a julgam possível sem o socialismo democrático.
Porfírio Silva, Deputado e secretário nacional do PS
(publicado no jornal Público de 4 de Setembro de 2019)
Porfírio Silva, 5 de Setembro de 2019