19.4.17

L’important c’est la rose




Aproximam-se as eleições presidenciais francesas de 2017: no próximo Domingo, 23 de Abril, a primeira volta; a 7 de Maio, a segunda volta.

Está muita coisa em aberto e as lições do passado recente aconselham que evitemos certezas: nunca digas que Le Pen nunca ganhará, porque esta extrema-direita assenta em fenómenos populares muito concretos e que correspondem a problemas reais. Há uma parte do programa tradicional da social-democracia (e uma parte da sua base de apoio) que foi captada pela extrema-direita. E, já agora, no caso específico da França, também há uma parte da antiga base social de apoio do comunismo que levou o mesmo caminho. Portanto, a política está sempre em aberto. Mas essa abertura essencial do jogo político não tem que correr sempre contra as nossas ideias: há menos de um ano a convicção dominante era que esta batalha eleitoral se resolveria entre a direita e a extrema-direita, ficando a esquerda inevitavelmente de fora de uma segunda volta. Hoje, apesar de tudo, estamos num pé diferente.

Não serve este texto para tentar uma interpretação global da actual cena política francesa rumo às presidenciais. Serve apenas para explicitar um ponto muito específico, embora genérico, sobre a vida da social-democracia e do socialismo democrático na Europa, aplicando-o a França. O ponto é este: os socialistas só conseguem ter uma voz na condução dos seus países e na mobilização das suas sociedades quando são plurais, quando conseguem fazer a síntese de diferentes correntes presentes no seu espectro de representação. Pelo contrário, quando o sectarismo suplanta a capacidade federadora, os socialistas perdem.

Mencionemos apenas exemplos. Em Itália, a capacidade de juntar diferentes correntes da esquerda democrática, incluindo os que vieram do Partido Comunista, tem tido altos e baixos – e desses altos e baixos se alimenta a incerteza quanto à capacidade para constituir uma força coerente e suficientemente poderosa para aliar progresso social e reforma das instituições. Tem sido pouco noticiado, mas um sector significativo dos ex-comunistas retomou recentemente uma via própria, afastando-se de Renzi e seus aliados. Veremos no que isso dá, mas é uma ferida numa reunião de famílias que foi possível, embora de modo parcial, com o desaparecimento do eurocomunista Partido Comunista Italiano. Em Espanha, a crise do PSOE traduz-se na dificuldade em traçar uma orientação política que una os socialistas em torno de objectivos políticos imediatos e que, ao mesmo tempo, traduzam uma conduta compreensível para o conjunto da sociedade espanhola. A crise do PSOE só estará verdadeiramente ultrapassada quando serenar em torno da questão do seu papel no quadro das demais forças políticas da esquerda e do centro. Já o caso português mostra um PS que, no essencial, é capaz de fazer sínteses programáticas mesmo quando as rivalidades grupais ameaçam pontualmente o exercício. (Note-se como o PS absorveu o trauma que conduziu às primárias que levaram Seguro e trouxeram Costa.) Estes partidos, como outros, mostram flutuações: fases de ímpeto federador acrescentam capacidade (inclusivamente, acrescentam capacidade de diálogo e cooperação políticas com outros sectores da esquerda); fases de maior sectarismo, por sua vez, aumentam o isolamento e retiram eficácia política.

O Partido Socialista Francês tem sido, neste ponto, excepcionalmente persistente: há longos anos que o sectarismo entre correntes se acentua e as diversas tendências concorrem para a lógica de facção que torna camaradas em inimigos. As acusações múltiplas de “traição”, que foram sendo proferidas no caminho para as candidaturas presidenciais saídas do espaço do reinado de Hollande são, a esse título, perfeitamente esclarecedoras. O facto de Valls ter ido às primárias e, perdendo-as, renegar o processo (apoiando primeiro e depois desapoiando o vencedor), é mais um sinal de desagregração do PSF como instrumento político. É difícil encontrar um sinal mais claro do “vale tudo” em política. Aliás, a própria recusa de Macron em ir às primárias já antecipou este processo de “salve-se quem puder”.

Depois, que o candidato vencedor das primárias dos socialistas e dos ecologistas tenha sido abandonado por largas camadas dos seus “eleitores cativos” de uma primeira volta, mostra como o PSF deixou de cumprir a sua função de federador (função federadora que, há muitas décadas, estava na essência necessária da sua função política). A fraqueza do candidato dos socialistas, resultante da incapacidade para federar o campo do socialismo democrático, torna-se ainda mais gritante quando se somou a uma tentativa canhestra de substituir eleitoralmente outros sectores da esquerda – com o resultado de que, sendo o original preferível à cópia, Mélenchon engordou à custa dessa distorção. Não ser Mélenchon e querer vestir um fato parecido, em vez de valorizar a complementaridade entre diferentes formas de ser esquerda, só podia dar mau resultado. (É precisamente por essa razão que, apoiando eu claramente a actual fórmula de poder em Portugal, continuo convencido da justeza de o PS nunca trair a sua identidade – e de ser exactamente a partir da sua identidade que se torna indispensável a uma maioria de esquerda plural.)

Na perspectiva em que nos colocamos (a capacidade federadora dos partidos da família do socialismo democrático), um caso que merece atenção é o Partido Trabalhista britânico. Para um socialista português, habituado a que o partido funcione basicamente no esquema “a cada militante um voto”, e achando que esse é esquema democrático fundador (sem prejuízo de uma importante autonomia do grupo parlamentar), é por vezes difícil compreender o facto de as divisões actuais no Labour passarem em grande medida pela questão fundamental da própria natureza e orgânica do partido. (E, neste caso, a natureza do partido e a orgânica do partido são duas questões intimamente ligadas.) Já passou o tempo do predomínio, político e orgânico, dos sindicatos na vida do Labour. Agora há uma batalha entre o “partido parlamentar” e o “partido dos activistas” – entre, por um lado, os que privilegiam o peso dos deputados na escolha da liderança (e da linha política), argumentando que quem o povo escolheu para o representar ao nível do país é que tem legitimidade política acrescida para pesar na orientação do partido, e, por outro lado, os que defendem que os activistas (ou os militantes) é que ligam o partido às pessoas e, portanto, a capacidade do partido responder aos novos desafios passa por colocar aí a fonte essencial do poder. Como é bom de ver, a oposição entre as duas lógicas é fatal para um partido que tem de estar quer no parlamento quer na sociedade. Nem faz sentido ter um partido de costas voltadas para as instituições de representação democrática, nem faz sentido ter um partido desligado da participação cidadã democrática – tal como não faz sentido pensar que “os militantes” representam toda a diversidade da sociedade, quando muitas vezes deixam de fora todos os que têm uma ligação mais distante com a decisão política. Que esses “dois partidos” (dentro do Labour) estejam em choque frontal neste momento, é bem um sinal da profunda crise da capacidade de federar grupos e perspectivas diferentes – e isso, eleitoralmente, vai, provavelmente, pagar-se caro (como May e os Conservadores perceberam de forma tacticamente perfeita).

Dito tudo isto (um longo intróito), o que dizer sobre o PSF no que vem aí na França pós-Presidenciais 2017? Duas coisas.

Primeira, já muitos o disseram, o Partido Socialista Francês vai sair deste processo à beira da exaustão. Política e orgânica. Corre o risco de passar a ser apenas mais um no concerto da esquerda: Mélenchon joga tudo em passar à frente de Hamon, querendo ficar com o mesmo tipo de trunfo que o Podemos tentou em Espanha face ao PSOE. Nessa circunstância, o PSF terá muitas contas internas a ajustar. E, em qualquer cenário, um longo calvário a percorrer.

Segunda, e é esse o meu ponto, o PSF tem de reaprender a capacidade para ser uma força federadora na esquerda democrática francesa. E isso inclui (comecem a preparar-se para rasgar as vestes!) a capacidade do PSF para dialogar com Macron e o seu movimento. Aos que clamam “mas Macron nem sequer é de esquerda”, eu digo: essa tentativa de sermos nós a traçar as fronteiras de quem é e de quem não é de esquerda é uma tentação perigosa. Se Le Pen representa uma extrema-direita “social” muito perigosa (porque muito enganadora), a candidatura de Fillon representa uma versão marcadamente reaccionária da direita tradicional. Perante esses desafios, a esquerda democrática tem de saber criar pontes com todos os que podem contribuir para uma alternativa de progresso – incluindo, em França, Emmanuel Macron. Se Macron está, em muitos aspectos, tentado pela sereia neoliberal? Provavelmente estará – mas ele representa, do ponto de vista da mobilização cívica, uma fonte de energia que não pode ser desperdiçada. Não pode ser acolhida acriticamente, mas não pode ser desperdiçada. Ao mesmo tempo, creio que o PSF tem de ser capaz de retomar o diálogo com a esquerda da esquerda francesa – mas, para isso, tem de abandonar a tentação de a imitar. Tal como, em Portugal, defendo a colaboração do PS à sua esquerda, defendo, em França, a necessidade de o PSF dialogar tanto ao centro como à esquerda. Porque, insisto, o papel político do socialismo democrático na Europa passa, hoje, necessariamente, pelo exercício da capacidade federadora.

França é, agora, a próxima etapa do “caminho das pedras” do socialismo democrático na Europa. Não há forma de resistir ao domínio político e ideológico do neoliberalismo e do conservadorismo social que não passe por abandonar todo o sectarismo de facção e promover um espaço político federador à esquerda, que umas vezes vá mais longe e outras vezes tenha de se contentar com metas mais modestas, mas que actue politicamente sempre no interesse dos “muitos” e não ao serviço dos “poucos”. Poucas circunstâncias políticas exemplificarão isto melhor do que a actual situação em França. E para sabermos isto não precisamos de esperar pelo resultado das eleições.


19 de Abril de 2017