25.4.17

Testemunho de uma noite mágica



[Em 2012, na véspera do 25 de Abril, publiquei aqui o texto abaixo. Volto a publicar, porque é um texto que vale a pena voltar a ler num 25 de Abril.]


A Júlia Matos Silva teve a enorme amabilidade de me dar a ler este seu "testemunho de uma noite mágica", a noite de 24 para 25 de Abril de 1974. Um testemunho na primeira pessoa, de uma gente e de um tempo em que a "primeira pessoa" era sempre uma enorme partilha com outras pessoas. Gostei do texto, achei-o relevante e bonito, apeteceu-me que fosse partilhado - e a sua autora, gentilmente, autorizou que aqui o publicasse. Faço da prenda de 25 de Abril, que a Júlia me endereçou, a vossa e nossa prenda de Abril, graças à Júlia Matos Silva. Daqui lhe agradecemos, Júlia - e passo-lhe imediatamente a palavra.

***  

TESTEMUNHO DE UMA NOITE MÁGICA


A minha noite de 24 para 25 de Abril de 1974 foi «a noite mais bela de todas as noites que me aconteceram», citando Ary dos Santos. A par dos muitos e outros deslumbramentos da minha vida, eu tive o privilégio de viver uma noite inigualável, na qual eu pude conjugar os valores da exigência utópica com o exercício fulcral da luta contra a ditadura. Esta é a memoria de um jornada particular, incrivelmente única.

Às cinco da tarde, o Fernando, o meu marido e cineasta Fernando Matos Silva, telefonou-me para o emprego e disse: «Júlia, não te esqueças que hoje temos o tal jantar. É muito importante. Convinha que viesses cedo.» Esta era a frase de código que havíamos combinado entre ambos para significar aquilo que ambos sabíamos que iria acontecer nessa noite.

No meu emprego, eu estava a viver uma situação profissional particularmente difícil. Desempenhava uma função, desde o princípio de Abril, que me recusara explicitamente a aceitar no início do ano, quando fora nomeada. Ameaçada de despedimento por desobediência à entidade patronal, eu vi-me forçada a assumir essa função, com uma promessa de ser transferida logo que houvesse um lugar compatível. Entretanto, durante os três meses anteriores, o meu dia-a-dia na empresa multinacional onde trabalhava há oito anos, decorrera de uma forma humilhante: sem função, nem telefone, nem gabinete e secretária, cumpria o horário de trabalho, de uma forma totalmente precária e insultuosa: sentada numa cadeira de uma sala pertencente a outra divisão. Estava totalmente proibida de entrar nos andares ocupados pela divisão de marketing. Com o ingresso de um novo diretor da divisão de marketing, um português torna-viagem vindo do Canadá, fora nomeada «assistente de marketing», cujo desenho de funções significava substituir-me ao serviço de pessoal e ser «os olhos e os ouvidos do rei», segundo as suas palavras. O meu papel seria controlar todos os cartões de ponto e contabilizar todos os minutos e segundos de não cumprimento do horário de trabalho, bem como relatar por escrito todas as conversas telefónicas que não fossem de serviço, ou controlar a produtividade dos vendedores, com critérios absolutamente subjetivos. Tinha ainda a missão de medir a produtividade do novo «pool» de dactilografia (formada por secretárias despromovidas a dactilógrafas), nomeadamente na contagem de linhas dactilografadas por pessoa. «Se for caso disso, quero um relatório da receita do sal e da batatinha e do nome de quem a deu ou o nome de quem anda a «brincar» fora do casamento e com quem», afirmava o diretor, para mim e para as outras duas pessoas que haviam sido nomeadas. No meu caso, nunca ele recebeu qualquer nota. De castigo, passei aos dias a imprimir rótulos com uma máquina de «dymo» para classificar as pastas do arquivo de todos os departamentos de vendas, segundo uma lógica totalmente determinada pela sua assistente pessoal.

Assim, imediatamente a seguir ao telefonema, fechei a minha secretária e abandonei o gabinete que partilhava, sem passar cavaco a ninguém. Naquele preciso momento, eu tive a certeza de que nunca mais iria sofrer uma tal humilhação. Saí simplesmente, sem falar com ninguém e ansiosa por chegar a casa.

O Fernando Matos Silva fazia parte de um pequeno círculo de civis, ligado ao MFA, completamente mobilizado para desenvolver várias ações. O centro dessa mobilização passava pelo jornal «República». Na qualidade de cineasta, o seu desígnio seria o de testemunhar e registar de câmara na mão, desde a primeira hora, todos os acontecimentos que se iriam suceder – e foram muitos de sua autoria. Admitia-se, no entanto, em várias reuniões clandestinas, a possibilidade de o Fernando e outros terem que ir para a televisão, no caso de os oficiais do MFA responsáveis pela ocupação da televisão, virem a enfrentar uma total resistência dos profissionais nucleares que nela trabalhavam (o que felizmente não aconteceu, embora as equipas de televisão só tivessem começado a sair na manhã do dia 25 de Abril.)

Quando cheguei a casa, já lá estavam o Fernando Matos Silva e dois importantes jornalistas do Jornal «República»: o Álvaro Guerra e o José Martins Garcia. E assim, fiquei a conhecer toda a cronologia de acontecimentos militares que iriam desencadear-se, a partir de uma determinada hora. Num outro prédio, numa rua perpendicular à nossa casa, estavam o cineasta João Matos Silva e uma equipa, juntamente com todos os equipamentos necessários.

Então, o cenário em minha casa, simultaneamente ansioso e temerário, era composto por quatro adultos, absolutamente convictos e dispostos a arriscar a alma e o físico. Para além deles, estavam os meus pais, dois antifascistas convictos que haviam vindo a Lisboa para uma consulta médica e um bebé de onze meses, a minha filha Cristina.

Na sala, que era, ao mesmo tempo de estar e de jantar, sentámo-nos à volta da mesa onde comemos bastante cedo, de uma forma rápida e nervosa. Quase ninguém comeu e quase ninguém falou, porque no meio de nós estavam dois adultos que não deviam ser envolvidos, por razões óbvias.

«Então não se pode ligar a televisão?», perguntou o meu pai, muito surpreso, por não se ouvir o telejornal. «Hoje não, pai! Eles precisam de trabalhar. Têm uma reunião.»

Levantámos a mesa rapidamente e no centro dela, foi posto um rádio ligado, perfeitamente sintonizado e pronto a fazer soar as surpreendentes senhas musicais. Entretanto, sentámo-nos à volta da mesa, embora, cada um de nós, com o nervosismo, se levantasse e sentasse repetidamente. Fumavam-se cigarros, uns atrás dos outros e pouco se falava, para que os meus pais não fossem envolvidos.

Antes da hora marcada, a campainha da porta tocou por duas vezes, com a diferença de alguns minutos. Naquele preciso momento e sem se conhecerem mutuamente, visitavam-nos dois amigos, totalmente estranhos ao que estava a suceder: o publicitário António Reis, com quem o Fernando estava a fazer um filme de publicidade e o meu primo Vicente Trindade, bailarino no Teatro S. Carlos. Nenhum deles percebeu o que acontecia, nem foi, envolvido de qualquer maneira. Guardou-se total segredo, porquanto tinham que ser protegidos de algo que não se sabia ainda como iria acabar. No dia seguinte, cada um deles manifestou a forma como tinham ficado surpreendidos com o facto de ninguém ter desenvolvido uma conversa de jeito e de terem achado estranho que um rádio a tocar dominasse a atenção de todos nós.

Assim, à hora marcada, os quatro adultos implicados, ouviram, num silêncio de bronze e sem poderem manifestar-se, o som gritante da 1ª senha. Para dar início às operações militares a desencadear pelo Movimento das Forças Armada. João Paulo Dinis, aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa dizia:
«Faltam cinco minutos para as vinte e três horas. Convosco, Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74, “E Depois do Adeus...”».
E assim, a voz de Paulo de Carvalho inundou a sala e dominou os olhares, a voz contida e o frio na espinha de todos aqueles que a aguardavam, sofregamente, como um banho de luz no meio da maior escuridão.

Felizmente que os dois visitantes decidiram ir-se embora. Quando ficámos sós, entre abraços e sorrisos, saltámos todos num desconcerto. Havia que saborear aquela imensa alegria tão contida. E, excitados, ali ficámos todos, debruçados sobre o rádio, aguardando a hora da 2ª senha.

Sinalizando a continuidade das ações militares do MFA, no programa Limite da Rádio Renascença, ouviu-se a canção Grândola, Vila Morena, de José Afonso, gravada por Manuel Tomás e posta no ar por Leite de Vasconcelos. À meia-noite e vinte, Leite de Vasconcelos lê a primeira quadra da Grândola Vila Morena, marcando a leitura com o som dos passos arrastados que iniciam a canção: «Grândola, vila morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade. //»

E o timbre inconfundível e arrebatador de Zeca Afonso espraiou-se naquelas quatro paredes, desarrumando os gestos daqueles que a aguardavam como o signo de todas as liberdades. Já não pudemos ouvir com atenção a leitura de poemas que se seguiu da autoria do jornalista da República Carlos Albino, que era colaborador naquele programa e que, a pedido de Álvaro Guerra e do Comandante Almada Contreiras, havia sido desafiado a enviar mais e prodigiosos sinais.

Naquela altura, era vital avisar outras pessoas significantes do Jornal República. Foi decidido que seríamos eu e o Fernando a fazê-lo. Antes de sair e muito seriamente, o Fernando dirigiu-se ao meu pai e à minha mãe – que já tinham, entretanto, sido informados de tudo o que estava a acontecer – e explicou o que íamos fazer.

«Pai Barata, Mãe Amélia, nós vamos avisar umas pessoas. Se nos acontecer alguma coisa tomem bem conta da nossa filha.»

E aqueles dois avós, antissalazaristas e antifascistas ferrenhos, ali ficaram calma e generosamente aguardando os factos, ao mesmo tampo que uma criança dormia serenamente, no quarto ao lado.

Quais namorados (ah! e tão amantes verdadeiramente!) saímos os dois num carro que não era o nosso, para cumprir um trajeto pré-definido: num prédio nas Amoreiras, avisámos o jornalista Alberto Arons de Carvalho; num outro prédio, na Av. Duque de Ávila, à porta do qual estava estacionado um carro, com dois homens com um ar pidesco, entrámos abraçados num longo beijo, para avisar o Belo Marques, responsável comercial do Jornal República; terminámos a ronda, num andar alto de um prédio na Avenida de Roma, onde morava o jornalista José Jorge Letria.

Destas investidas aventurosas, ficou-me a lembrança de uma noite anormalmente deserta e árida, como se a cidade numa paralisia excruciante estivesse já a pressentir o som áspero e cavernoso da queda do regime.

Quando regressámos a casa, sobraram, em todos nós, as horas sonâmbulas de uma expetativa insana. O telefone de casa já tinha sido cortado. Multiplicando-se em gestos e olhares e tremendamente ansiosos, cada um de nós aguardava, nervosamente, o grande sinal, simultaneamente pacificador e significativo de que o golpe vingava.

E às 04:20 da madrugada do 25 de Abril, fomos tocados pelo alcance de uma voz séria e ritmada, que significava, para todos nós, ou o início de todos os perigos ou o princípio da redenção:

«Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas.
As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma. Esperamos sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal para o que apelamos para o bom senso dos comandos das forças militarizadas no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as Forças Armadas. Tal confronto, além de desnecessário, só poderá conduzir a sérios prejuízos individuais que enlutariam e criariam divisões entre os portugueses, o que há que evitar a todo o custo. Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português, apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica, esperando a sua ocorrência aos hospitais, a fim de prestar a sua eventual colaboração que se deseja, sinceramente, desnecessária.»

E assim na madrugada desse dia «inteiro e limpo», tal como o cantou a poeta Sophia, cada um de nós viveu as mais intensas e rútilas memórias da sua geração.

Pouco tempo depois, os jornalistas Álvaro Guerra e José Martins Garcia partiram para o Jornal República cumprindo a sua missão nuclear: dar vida à voz da liberdade. O Fernando Matos Silva e a equipa partiram pelas ruas de Lisboa, captando as imagens grandiosas da expressão generosa de uma aliança entre as armas e o povo. E são muitas dessas imagens que ainda hoje prevalecem para documentar o gesto grandioso de um país que venceu a ditadura, sem lágrimas de sangue. O olhar e a câmara do Fernando Matos Silva – que tinha visto o seu primeiro filme «O Mal-Amado» totalmente proibido pela censura – hão-de ficar indelevelmente livres, testemunhando os atos e as emoções dos militares e do povo.

Eu, perdi-me nas ruas do bairro, batendo às portas dos amigos, a maior parte deles convencidos que era um golpe do Kaúlza de Arriaga. Nem o relato da minha noite os conseguiu convencer totalmente sobre o que estava em andamento!

Teixeira de Pascoais dizia que «a saudade é a velha lembrança gerando um novo desejo». E da saudade que eu tenho desse tempo, só me resta o desejo de que o povo português se mantenha fiel à liberdade que conquistou no 25 de Abril. Nesta terrível liquefação dos valores vinculativos e estruturantes das sociedades democráticas do pós-guerra, aqui e na Europa, regressam os vampiros como se fosse uma festa!

Júlia Matos Silva


24.4.17

Macron vs. Le Pen

09:56


Os meus apontamentos ontem à noite (FB), depois de conhecidas as primeiras estimativas de resultado da primeira volta das presidenciais francesas:

«França: sempre estou para ver se alguma força de esquerda se escusa a apelar ao voto contra a extrema-direita.»

«França: há apenas uns meses todos julgavam que o vencedor sairia da extrema-direita ou da direita republicana. O que entretanto aconteceu deve ser julgado à luz desse cenário.»

«Desvalorizar o perigo Le Pen? Dizer que é mais ou menos o mesmo que Macron?! Estou um bocadinho cansado de malta de esquerda que adora lixar os outros a partir do seu sofá e do seu síndrome de comentador.»

«A França e nós. Hoje é dia de lembrar a inteligência política de Álvaro Cunhal nas presidenciais de 1986. E, já agora, de lembrar que muitos não aprenderam nada com isso.»

«Para que conste, não sou admirador de Macron. Por variadas razões, especialmente, porque desconfio de programas "modernizadores" que "não são nem de direita nem de esquerda". (De qualquer modo, cabe dizer que há muitos anos não voto por entusiasmo excessivo por este ou aquele: em geral voto com base no cálculo das consequências.) Contudo, é indubitável que Macron tem capacidade de mobilização por valores cívicos positivos (o que é bom, mesmo que isso não produza automaticamente um bom programa). De qualquer modo, mesmo que o homem seja neoliberal (e tem propostas que permitem suspeitar que assim seja), isso está a milhas de ser um espécime de fascista. Isto teria, sem dúvida, peso no meu voto se fosse eleitor francês.»

«Mélenchon está a falar e faz uma amálgama entre Le Pen e Macron. E não dá indicação de voto. De momento.»

«O PSF também pasokou (para já indirectamente, numas eleições não legislativas). Mas tenham calma: a crise da social-democracia europeia não atinge só os partidos que piscaram o olho à direita. Sanchez e Corbyn não estão nesse caso e não são exemplos de grande saúde política para os seus partidos (e isto não é, sequer, uma avaliação do seu valor próprio, mas do que conseguiram). Isto para dizer que não vale a pena tentar respostas simples para uma situação tão complexa.»


«Regressou a esquerda que não distingue entre o fascismo e o capitalismo democrático? Isso obriga-me lembrar os fundamentos: para mim, ser de esquerda não é separável de ser democrata. Mais: primeiro vem a democracia, é mais importante ser democrata do que ser de esquerda. E, sim, pode ser-se democrata sem ser de esquerda. Quem, em nome de qualquer ideia de esquerda, concede que o fascismo não é assim tão mau que mereça uma condenação inequívoca, não me merece consideração nenhuma. Dizer que Le Pen e Macron "venha o diabo e escolha", faz-me lembrar o pior.»

«José Manuel Fernandes também fala de Macron como um banqueiro. Que coincidência...»

«Outro derrotado das presidenciais francesas: as primárias. Nenhum dos candidatos saído de primárias passou à segunda volta. (Só para fazer pensar os que gostam de soluções simples e universais em política.)»

«Talvez agora se perceba a razão de ter havido dúvidas entre os comunistas quanto a renovar o apoio a Mélenchon.»

«O Partido Comunista Francês apela a barrar Le Pen na segunda volta, usando o boletim de voto. Algo que Mélenchon não foi capaz de fazer.»

«Capa do jornal dos comunistas franceses esta noite. [Imagem lá acima.] Há quem saiba quando não podemos hesitar.»

24 de Abril de 2017

19.4.17

L’important c’est la rose

15:02



Aproximam-se as eleições presidenciais francesas de 2017: no próximo Domingo, 23 de Abril, a primeira volta; a 7 de Maio, a segunda volta.

Está muita coisa em aberto e as lições do passado recente aconselham que evitemos certezas: nunca digas que Le Pen nunca ganhará, porque esta extrema-direita assenta em fenómenos populares muito concretos e que correspondem a problemas reais. Há uma parte do programa tradicional da social-democracia (e uma parte da sua base de apoio) que foi captada pela extrema-direita. E, já agora, no caso específico da França, também há uma parte da antiga base social de apoio do comunismo que levou o mesmo caminho. Portanto, a política está sempre em aberto. Mas essa abertura essencial do jogo político não tem que correr sempre contra as nossas ideias: há menos de um ano a convicção dominante era que esta batalha eleitoral se resolveria entre a direita e a extrema-direita, ficando a esquerda inevitavelmente de fora de uma segunda volta. Hoje, apesar de tudo, estamos num pé diferente.

Não serve este texto para tentar uma interpretação global da actual cena política francesa rumo às presidenciais. Serve apenas para explicitar um ponto muito específico, embora genérico, sobre a vida da social-democracia e do socialismo democrático na Europa, aplicando-o a França. O ponto é este: os socialistas só conseguem ter uma voz na condução dos seus países e na mobilização das suas sociedades quando são plurais, quando conseguem fazer a síntese de diferentes correntes presentes no seu espectro de representação. Pelo contrário, quando o sectarismo suplanta a capacidade federadora, os socialistas perdem.

Mencionemos apenas exemplos. Em Itália, a capacidade de juntar diferentes correntes da esquerda democrática, incluindo os que vieram do Partido Comunista, tem tido altos e baixos – e desses altos e baixos se alimenta a incerteza quanto à capacidade para constituir uma força coerente e suficientemente poderosa para aliar progresso social e reforma das instituições. Tem sido pouco noticiado, mas um sector significativo dos ex-comunistas retomou recentemente uma via própria, afastando-se de Renzi e seus aliados. Veremos no que isso dá, mas é uma ferida numa reunião de famílias que foi possível, embora de modo parcial, com o desaparecimento do eurocomunista Partido Comunista Italiano. Em Espanha, a crise do PSOE traduz-se na dificuldade em traçar uma orientação política que una os socialistas em torno de objectivos políticos imediatos e que, ao mesmo tempo, traduzam uma conduta compreensível para o conjunto da sociedade espanhola. A crise do PSOE só estará verdadeiramente ultrapassada quando serenar em torno da questão do seu papel no quadro das demais forças políticas da esquerda e do centro. Já o caso português mostra um PS que, no essencial, é capaz de fazer sínteses programáticas mesmo quando as rivalidades grupais ameaçam pontualmente o exercício. (Note-se como o PS absorveu o trauma que conduziu às primárias que levaram Seguro e trouxeram Costa.) Estes partidos, como outros, mostram flutuações: fases de ímpeto federador acrescentam capacidade (inclusivamente, acrescentam capacidade de diálogo e cooperação políticas com outros sectores da esquerda); fases de maior sectarismo, por sua vez, aumentam o isolamento e retiram eficácia política.

O Partido Socialista Francês tem sido, neste ponto, excepcionalmente persistente: há longos anos que o sectarismo entre correntes se acentua e as diversas tendências concorrem para a lógica de facção que torna camaradas em inimigos. As acusações múltiplas de “traição”, que foram sendo proferidas no caminho para as candidaturas presidenciais saídas do espaço do reinado de Hollande são, a esse título, perfeitamente esclarecedoras. O facto de Valls ter ido às primárias e, perdendo-as, renegar o processo (apoiando primeiro e depois desapoiando o vencedor), é mais um sinal de desagregração do PSF como instrumento político. É difícil encontrar um sinal mais claro do “vale tudo” em política. Aliás, a própria recusa de Macron em ir às primárias já antecipou este processo de “salve-se quem puder”.

Depois, que o candidato vencedor das primárias dos socialistas e dos ecologistas tenha sido abandonado por largas camadas dos seus “eleitores cativos” de uma primeira volta, mostra como o PSF deixou de cumprir a sua função de federador (função federadora que, há muitas décadas, estava na essência necessária da sua função política). A fraqueza do candidato dos socialistas, resultante da incapacidade para federar o campo do socialismo democrático, torna-se ainda mais gritante quando se somou a uma tentativa canhestra de substituir eleitoralmente outros sectores da esquerda – com o resultado de que, sendo o original preferível à cópia, Mélenchon engordou à custa dessa distorção. Não ser Mélenchon e querer vestir um fato parecido, em vez de valorizar a complementaridade entre diferentes formas de ser esquerda, só podia dar mau resultado. (É precisamente por essa razão que, apoiando eu claramente a actual fórmula de poder em Portugal, continuo convencido da justeza de o PS nunca trair a sua identidade – e de ser exactamente a partir da sua identidade que se torna indispensável a uma maioria de esquerda plural.)

Na perspectiva em que nos colocamos (a capacidade federadora dos partidos da família do socialismo democrático), um caso que merece atenção é o Partido Trabalhista britânico. Para um socialista português, habituado a que o partido funcione basicamente no esquema “a cada militante um voto”, e achando que esse é esquema democrático fundador (sem prejuízo de uma importante autonomia do grupo parlamentar), é por vezes difícil compreender o facto de as divisões actuais no Labour passarem em grande medida pela questão fundamental da própria natureza e orgânica do partido. (E, neste caso, a natureza do partido e a orgânica do partido são duas questões intimamente ligadas.) Já passou o tempo do predomínio, político e orgânico, dos sindicatos na vida do Labour. Agora há uma batalha entre o “partido parlamentar” e o “partido dos activistas” – entre, por um lado, os que privilegiam o peso dos deputados na escolha da liderança (e da linha política), argumentando que quem o povo escolheu para o representar ao nível do país é que tem legitimidade política acrescida para pesar na orientação do partido, e, por outro lado, os que defendem que os activistas (ou os militantes) é que ligam o partido às pessoas e, portanto, a capacidade do partido responder aos novos desafios passa por colocar aí a fonte essencial do poder. Como é bom de ver, a oposição entre as duas lógicas é fatal para um partido que tem de estar quer no parlamento quer na sociedade. Nem faz sentido ter um partido de costas voltadas para as instituições de representação democrática, nem faz sentido ter um partido desligado da participação cidadã democrática – tal como não faz sentido pensar que “os militantes” representam toda a diversidade da sociedade, quando muitas vezes deixam de fora todos os que têm uma ligação mais distante com a decisão política. Que esses “dois partidos” (dentro do Labour) estejam em choque frontal neste momento, é bem um sinal da profunda crise da capacidade de federar grupos e perspectivas diferentes – e isso, eleitoralmente, vai, provavelmente, pagar-se caro (como May e os Conservadores perceberam de forma tacticamente perfeita).

Dito tudo isto (um longo intróito), o que dizer sobre o PSF no que vem aí na França pós-Presidenciais 2017? Duas coisas.

Primeira, já muitos o disseram, o Partido Socialista Francês vai sair deste processo à beira da exaustão. Política e orgânica. Corre o risco de passar a ser apenas mais um no concerto da esquerda: Mélenchon joga tudo em passar à frente de Hamon, querendo ficar com o mesmo tipo de trunfo que o Podemos tentou em Espanha face ao PSOE. Nessa circunstância, o PSF terá muitas contas internas a ajustar. E, em qualquer cenário, um longo calvário a percorrer.

Segunda, e é esse o meu ponto, o PSF tem de reaprender a capacidade para ser uma força federadora na esquerda democrática francesa. E isso inclui (comecem a preparar-se para rasgar as vestes!) a capacidade do PSF para dialogar com Macron e o seu movimento. Aos que clamam “mas Macron nem sequer é de esquerda”, eu digo: essa tentativa de sermos nós a traçar as fronteiras de quem é e de quem não é de esquerda é uma tentação perigosa. Se Le Pen representa uma extrema-direita “social” muito perigosa (porque muito enganadora), a candidatura de Fillon representa uma versão marcadamente reaccionária da direita tradicional. Perante esses desafios, a esquerda democrática tem de saber criar pontes com todos os que podem contribuir para uma alternativa de progresso – incluindo, em França, Emmanuel Macron. Se Macron está, em muitos aspectos, tentado pela sereia neoliberal? Provavelmente estará – mas ele representa, do ponto de vista da mobilização cívica, uma fonte de energia que não pode ser desperdiçada. Não pode ser acolhida acriticamente, mas não pode ser desperdiçada. Ao mesmo tempo, creio que o PSF tem de ser capaz de retomar o diálogo com a esquerda da esquerda francesa – mas, para isso, tem de abandonar a tentação de a imitar. Tal como, em Portugal, defendo a colaboração do PS à sua esquerda, defendo, em França, a necessidade de o PSF dialogar tanto ao centro como à esquerda. Porque, insisto, o papel político do socialismo democrático na Europa passa, hoje, necessariamente, pelo exercício da capacidade federadora.

França é, agora, a próxima etapa do “caminho das pedras” do socialismo democrático na Europa. Não há forma de resistir ao domínio político e ideológico do neoliberalismo e do conservadorismo social que não passe por abandonar todo o sectarismo de facção e promover um espaço político federador à esquerda, que umas vezes vá mais longe e outras vezes tenha de se contentar com metas mais modestas, mas que actue politicamente sempre no interesse dos “muitos” e não ao serviço dos “poucos”. Poucas circunstâncias políticas exemplificarão isto melhor do que a actual situação em França. E para sabermos isto não precisamos de esperar pelo resultado das eleições.


19 de Abril de 2017