(O texto que se segue foi publicado na edição de 14/04/1985 do Diário de Notícias - há mais de 30 anos, portanto - e era subscrito na qualidade de membro da Comissão Nacional do Partido Socialista. Referia-se à recepção entusiasta de Alvin Toffler, que acabara de publicar A Terceira Vaga. Nesse entusiasmo estavam envolvidos nomes importantes do PS de então. Republico por ocasião do passamento de Toffler. Nem tudo perdeu actualidade desde então...)
OS SOCIALISTAS E OS TOFFLERS
Nos últimos tempos, e particularmente em dias recentes, temos sido invadidos por uma verdadeira encenação toffleriana, que incluiu a vinda a Portugal do "profeta" americano. Talvez não fosse mau reflectir um pouco sobre o fenómeno - e o fenómeno não se circunscreve, nem é, se calhar, essencialmente apenas o discurso do próprio Toffler, mas inclui também a sua divulgação e massificação entre nós.
Futuro: um discurso neutro?
A primeira coisa que se nos oferece à reflexão é a aparente neutralidade do discurso toffleriano. Fala-se de futuro, de modernização, de transformações - como se todos estivéssemos sintonizados quanto ao conteúdo e significado desses termos: mais, como se esses termos não tivessem conteúdo e significado potencialmente conflitual.
Ora, tal não e, simplesmente, possível. O futuro - a nossa visão do futuro - depende antes de mais do nosso presente. Se o nosso presente é feito dos nossos circunstancialismos, as nossas aspirações e as nossas opções - e elas são diversas e contrastantes -, como podem os "nossos futuros" ser os mesmos?
A pretendida neutralidade do discurso toffleriano insere-se na estratégia da "morte das ideologias", que é para nós uma estratégia reaccionária. Se ideologias no seu sentido lato - percepção e acareamento com o mundo - as há diversas, ideologias em sentido restrito - racionalização da forma de agir em resposta ao mundo - tem de as haver também. E existem. Portanto, neutralidade e morte das ideologias como estratégia reaccionária, já que consiste em mascarar a existência e o valor dos diversos quadros éticos e optativos, com o objectivo de impor a ideologia dominante.
E a táctica actual da ideologia dominante consiste em fazer crer que o futuro é só um e não depende de opções que nós possamos tomar - para que as nossas opções não interfiram nesse tipo de futuro que nos querem "oferecer".
Um novo optimismo histórico
O discurso toffleriano acerca do futuro corporiza um novo optimismo histórico, pós-marxista mas fatalista como o marxismo.
O marxismo, e particularmente as suas versões panfletárias e militantes, ofereceram a várias gerações a garantia da necessidade histórica do socialismo - o socialismo, pela própria lógica do destino, teria de vir. A história encarada de forma fatalista, o fatalismo visto de forma positiva.
Toffler & Cª também inventaram um futuro para nós, mas não se limitaram a dizer-nos que ele há-de vir; intimam-nos a trabalhar para isso. E não são brandos: toffleriano futuro ou nada, sem terceira opção. Ou futuro informático, em berços de novas tecnologias, ou passadistas e retrógrados, fósseis e acabados.
Como se em cabos de fibras ópticas viesse uma nova sociedade; em botões de computador, novas mentalidades; em écrans repletos de informação, a igualdade de oportunidades e o direito à diferença.
O que os toflerianos nos não dizem - e escondem - é quem nos vende a tecnologia e quanto ganha com ela. Como não nos dizem que os microcomputadores instalados em nossa casa nunca terão acesso ao computador do Pentágono; nem nos explicam o porquê da espionagem tecnológica entre Leste e Oeste; nem prevêem daqui a quantos anos um camponês moçambicano terá o seu microcomputador... e em que é que isso contribui para evitar que morra de fome.
É que os novos produtores de felicidade - tal como todos os anteriores - vão vendê-la caro.
Socialismo, para quê?
Sem querer, de forma simplista, bater na tecla da intervenção social, da participação e do militantismo, não podemos deixar de sublinhar que toda esta encenação toffleriana assenta e potencia toda uma apologia do individualismo. Nesse aspecto, retoma os erros dos que anteriormente estabeleceram um esquema de raciocínio assente no binómio colectivismo/individualismo, como termos que se excluíssem. E nisso o individualismo não difere radicalmente dos excessos inerentes ao colectivismo. Ambos não percebem quanto a individualidade pode ser solidariedade num contexto de direito à diferença.
O tofflerianismo é a trombeta do fim dos projectos de valorização do homem, que só podem ser o próprio homem lançado na vida e no mundo e nos outros. Combate a tradição, não por ser anticonservador, como pretende fazer crer, mas porque a tradição tem memória das batalhas, das experiências e das pequenas vitórias que já se viveram e que, por amor, se continuam fazendo. Prepara um homem ainda mais anónimo, angustiado, nu e só na praça pública, discursando alto acerca das vantagens do indivíduo contra o social.
Tudo isto com a marca do socialismo partidário português, para consumo dos seus dirigentes e como cábula de um projecto presidencial, enquanto valores da tradição socialista - de que não vemos razão para nos envergonharmos - são claramente negados por estes apóstolos do futuro sem rosto e quimicamente puro. Para eles o socialismo (como, aliás, qual quer outra coisa que devesse ser alternativa) ou não existe ou é inútil, se não adverso.
Caberia então aos socialistas - se o soubessem - não se envergonharem de o ser. Competir-lhes-á (ainda) aceitar os desafios da modernidade: sem dogmatismo e sem sectarismo, mas também sem medos e sem acatamentos passivos, acríticos e consumistas de encomendas alheias.
Porfírio Silva, 14/04/1985, Diário de Notícias