3.4.15

enterrar os vivos.



Enterrar os vivos.


À volta do teu corpo frio corre agora
sem decoro um rio de aplauso unânime.
Tocam o cadáver recente com as mãos besuntadas
de um conhecimento vulgar, indecente, da tua obra:
cada um, prestimoso, cobra os créditos do copo de água
que te beberam do cântaro num dia de estio,
todos escrutinam esplendorosamente o génio; o engenho
do defunto é como se se colasse às bocas dos que o elogiam
e isso explica talvez a profusão de orações fúnebres
recitadas por estes dias por tantos que deitaram à fome
e ao desprezo os que amassavam os adobes dos teus edifícios.
Como vem sendo habitual nestes concursos, pobre panteão,
querem meter o panteão dentro de ti e atafulhar-te com honrarias
até todas as tuas imagens se afogarem no mar escuro das convenções.
Os mortos tratam, afanosamente, de enterrar-te.