18.11.14

sai um prémio para o enviesamento.



Muito haveria a dizer sobre a miséria de muitos comentários que têm sido feitos por "analistas" às propostas apresentadas por António Costa. Mas a matéria é vasta e a má-fé de certas "análises" não nos aguça o apetite. De qualquer modo, surge sempre, ao virar da esquina, uma qualquer pepita comentarista que, pelo grau de pureza com que apresenta o seu enviesamento intelectual e político, acaba por justificar que gastemos cinco minutos a observá-la. É o caso deste artigo: Desresponsabilização.

O autor desse artigo (PBT) procura convencer-nos de que a moção de António Costa ao congresso do PS desresponsabiliza a governação de Portugal pelas nossas dificuldades. E, para isso, cita a frase que afirma que o PS "não aceita a perspetiva de que as dificuldades que enfrentamos sejam responsabilidade de Portugal e dos portugueses". Ora, lendo apenas a mesma página onde pescou essa citação, o autor teria compreendido que tal afirmação aparece enquadrada num ponto de reflexão sobre a evolução da economia portuguesa no contexto da economia mundial, mostrando como o contexto internacional afectou a economia portuguesa por tocar nas nossas debilidades mais profundas. Claro que seria grave se a moção declarasse, em algum momento, que não devemos, como país, fazer nada para ultrapassar essas debilidades. Mas, pelo contrário, a moção e a Agenda da Década dirigem-se precisamente para a ultrapassagem dessas debilidades. Se a moção tivesse o sentido político que PBT lhe dá, a moção teria a mensagem "vamos ficar quietos à espera que nos alimentem" - mas, manifestamente, não é nada disso que a moção diz ou significa. Apesar de PBT.
Na mesma página onde está a frase citada por PBT, diz-se muito claramente que certas dinâmicas de mudança necessária na economia portuguesa (diversificação do tecido exportador e reconversão dos setores tradicionais; recuperação do atraso nacional na qualificação de recursos humanos; aceleração do investimento e dos resultados do I&D empresarial) não chegaram ao ponto suficiente de desenvolvimento para nos defenderem melhor das adversidades do mercado internacional. E é também para apostar em retomar essas dinâmicas de mudança que o PS quer governar. Porque já o fez antes e é disso que o país precisa. Mas isso PBT não leu ou não quis ler.

Se PBT tivesse lido, ou compreendido, veria muito bem que o que a moção de António Costa recusa - e bem - é a narrativa simplista e falsa segundo a qual a crise do euro nos afectou por exclusiva ou principal culpa nossa. Que essa narrativa é simplista e falsa é reconhecido, em todo o mundo, por muitos que não têm as mãos sujas pela (ir)responsabilidade de não ter enfrentado as crises internacionais nas suas causas, tendo preferido inventar bodes expiatórios.

O autor do artigo faz por demonstrar que está errado apontar o contexto da economia internacional como influência decisiva para as dificuldades da nossa economia em anos recentes. Não foi o choque do euro, porque, escreve PBT, "a criação do euro foi estabelecida no Tratado de Maastricht, em 1992". Não foi o alargamento da UE ao Leste europeu, porque isso começou "com a queda do muro de Berlim em 1989". Não foi a integração da China no comércio mundial, porque "a adesão da China à globalização começou com as reformas conduzidas por Deng Xiaoping, desde 1978". Portanto, PBT confunde a implementação concreta das mudanças de contexto internacional com as suas origens remotas, como se os efeitos de uma decisão na economia mundial fossem instantâneos. Talvez um cristão suficientemente capaz de entender as escrituras sagradas tivesse obrigação de precaver tudo isso desde a origem do universo - ou, pelo menos, desde a criação da Terra... o que, para os efeitos práticos da responsabilização político-partidária de António Costa, não anda muito longe do tal ano de 1978 citado por PBT.
Podemos fazer de conta que não sabemos que a análise do contexto mundial, que lemos na moção de António Costa, é uma análise corrente em autores das mais diversas perspectivas de análise económica, independentemente das diferentes ilações políticas que daí se possam retirar. É esse "fazer de conta" que permite que PBT labore nesta linha retórica. O que já é excessivo, mesmo para um texto de combate político, é que, para atacar António Costa se recue até 1978 - e, depois, em tão alargado período de escrutínio, PBT só se lembre de dois socialistas: "as responsabilidades são, no essencial, dos governos do PS, liderados por António Guterres e José Sócrates". É caso para dizer que quando se estreita demais o escopo da análise, se descobre a careca da intenção propagandística mal escondida.

O debate acerca do futuro de Portugal merece uma reflexão crítica sobre as estratégias de desenvolvimento prosseguidas nestas décadas de democracia. Essa reflexão deverá, certamente, incidir sobre algumas miopias colectivas, a maior parte delas partilhadas por todos nós, outras mais afectas a sectores específicos da política nacional. Essa reflexão é necessária para avançar. O que não é nada necessário é continuar a insistir em poluir o debate com falácias. Eu compreendo: é mais fácil ler dois ou três parágrafos de um texto e escrever qualquer coisa que apele ao primarismo de facção do que ler as muitas propostas constantes da Agenda da Década e discutir racionalmente se elas são adequadas ou não à governação do país. Compreendo esse facilitismo, mas não o posso aprovar.