21.1.21

Tomadas de posse de presidentes dos EUA

Não passaram ainda muitas horas sobre a tomada de posse de Biden como presidente dos EUA. Aproveito para lembrar um episódio curioso que aconteceu aquando da tomada de posse de Obama (primeiro mandato).

O texto faz parte do meu livro "Podemos matar um sinal de trânsito?", no qual faço uma viagem pelos enigmas da vida institucional dos humanos. (É o "parágrafo" 123 do livro.)

O livro saiu em 2012 e teve nova edição em 2020. Foi prejudicado pela pandemia, mas pode ser encontrado nas boas livrarias agora fechadas e nos livreiros online.





O mundo institucional é complexo. Até para o presidente dos Estados Unidos da América. Espantados?

No dia 20 de Janeiro de 2009, Barack Obama tomou posse como 44º presidente dos Estados Unidos da América. Essas tomadas de posse realizam-se, nos termos constitucionais, com o presidente eleito a jurar pela forma leal como desempenhará o cargo. Uma multidão sem precedente (talvez na ordem dos dois milhões de pessoas) encontrou-se em Washington para presenciar o primeiro negro a ter oportunidade de jurar sobre a Bíblia como presidente dos Estados Unidos. As inúmeras cerimónias e festas, mais oficiais ou mais populares, que costumam fazer parte da ementa destes dias, foram ainda mais e ainda mais entusiastas do que é costume. Contudo, foi suscitada a hipótese de que, depois de tanta festa, talvez Obama ainda não fosse presidente dos Estados Unidos em boa e devida forma. Estranho? Minudências institucionais, como passo a explicar.

 

O juramento presidencial foi conduzido por John Roberts, presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Normalmente, a pessoa que administra o juramento vai dizendo, pouco a pouco, a fórmula que deve ser correcta e integralmente pronunciada pela pessoa que presta juramento. Desta vez houve alguma atrapalhação. O juramento para presidente dos EUA faz-se segundo uma fórmula exacta prevista na Constituição, com apenas 35 palavras – mas a grande tensão do momento baralhou tudo. Eis a transcrição do que realmente foi dito:

 

Roberts: I, Barack Hussein Obama … 
Obama: I, Barack … 
Roberts: … do solemnly swear … 
Obama: I, Barack Hussein Obama, do solemnly swear … 
Roberts: … that I will execute the office of president to the United States faithfully … 
Obama: … that I will execute …
Roberts: … the off — faithfully the pres — the office of president of the United States … 
Obama (ao mesmo tempo): … the office of president of the United States faithfully …

 

Pela leitura desta transcrição parcial é fácil verificar que é altamente duvidoso que Obama tenha efectivamente pronunciado na íntegra e em boa ordem a fórmula correcta, que reza assim: “I do solemnly swear that I will faithfully execute the Office of President of the United States, and will to the best of my ability, preserve, protect and defend the Constitution of the United States.” O erro concentra-se numa palavra que terá sido dita fora de sítio (“faithfully”) e noutra palavra que terá sido omitida, ou pelo menos pronunciada separadamente da frase a que pertencia (“execute”). Que o ajuramentado tenha dito duas vezes “I, Barack” não parece que tenha sido considerado problemático. A questão começou logo a ser suscitada: o homem Obama não tinha jurado como presidente de acordo com as prescrições constitucionais, pelo que não se teria transformado em presidente Obama. A primeira reacção foi negar que houvesse qualquer problema. Mas logo começou a antever-se o cenário perturbador de um posterior ataque à legitimidade do presidente com base nessa falha, o que não era de descartar dados os ódios radicais que a presença de um negro (e, segundo alguns, ainda por cima “socialista”, credo) na Casa Branca manifestamente provocava. Foi, então, decidido repetir o juramento logo no dia seguinte.


A segunda cerimónia foi realizada já no edifício sede do poder executivo, perante uma pequena assistência de nove pessoas, entre assessores presidenciais, alguns jornalistas e um fotógrafo oficial. Um contraste tremendo com as centenas de milhões de pessoas que testemunharam, ao vivo ou pela televisão, a cerimónia da véspera. A “segunda via” do juramento durou uns trinta segundos. Curiosamente, não foi a primeira vez que o juramento presidencial foi repetido nos Estados Unidos. Calvin Coolidge, que assumiu o cargo em 1923 após a morte do presidente Warren G. Harding, foi ajuramentado pelo seu pai, que era notário. As dúvidas quanto ao apropriado dessa situação fizeram-no repetir o juramento, à segunda vez perante um juiz federal. Aparentemente, não há nenhuma regra contra a repetição do juramento.

 

Obama parece ser uma produtiva fonte de episódios ricos em interpretações institucionais. Ele foi o alvo de outro episódio que colocava em jogo toda a maquinaria das instituições para lhe causar dificuldades. A questão era a de saber se ele teria ou não nascido em território nacional. Nos Estados Unidos, não basta ser cidadão americano para poder candidatar-se, ser eleito e tornar-se presidente do país. Um naturalizado não pode nunca ser o chefe do executivo. É preciso ter nascido em território americano. O que incluiu, como em muitos outros países, território que só é pátrio debaixo de um critério institucional. Por exemplo, um navio de guerra americano a navegar no Índico (ou em qualquer outro mar) é território americano. A embaixada americana em Lisboa (ou em qualquer outro país) é território americano. Assim, quem tenha nascido no meio do Índico (mas num navio de guerra americano), ou em Lisboa (mas na embaixada americana), pode ser presidente dos EUA. Ora, durante algum tempo, um grupo de entusiastas das teorias da conspiração pugnavam pelo reconhecimento da tese de que a informação oficial acerca do nascimento de Obama era uma falsificação. Ele não teria nascido em Honululu, a 4 de Agosto de 1961, pelas 19h24m, mas algures… talvez em África, onde tem ascendência. Se fosse esse o caso, Obama não só não poderia ser presidente, como deveria ser preso e julgado por ter agido de forma fraudulenta contra o sistema constitucional americano…

 

Afinal, que significado poderia ter tido o facto de Obama não ter pronunciado as palavras previstas na Constituição exactamente na ordem prescrita pela lei fundamental? Parece que, no essencial, só havia uma palavra fora da ordem correcta na forma como Obama pronunciou o juramento. No entanto, a “cerimónia da repetição” só foi anunciada depois de ter terminado. Muitas cautelas para tão pouco? Será? Nada do que é institucional é natural. Que eu agora esteja com fome não depende nada de que eu o diga. Que o Monte Everest tenha 8.850 metros de altura não depende nada do que eu diga, ou faça, ou sequer de que eu saiba ou não saiba que isso é verdade, nem depende do que qualquer outra pessoa diga, ou faça, ou saiba. Esses são factos brutos. Mas há outro tipo de factos: os factos institucionais dependem do que nós fazemos, do que nós dizemos, do que nós sabemos.

 

(Isso não quer dizer que os factos institucionais sejam subjectivos. O pedaço de papel que tenho na carteira é uma nota de dez euros; esse facto não é um facto natural, é um facto institucional, que depende do que muitas pessoas dizem e fazem, tanto no uso dessa nota, como na sua produção; mas eu não tenho o poder pessoal de desfazer esse facto. Se eu não quiser reconhecer aquela nota como uma nota, aquele papel não deixa de ser uma nota por causa do meu querer ou do meu agir individual. Até posso fazer certas coisas como se o papel tivesse deixado de ser uma nota: posso deitá-la para o lixo, como se não valesse nada – mas, mesmo assim, esse é um poder ilusório, porque eu perdi mesmo dez euros por ter deitado esse papel para o lixo. Não é região do mundo onde a minha subjectividade, agindo individualmente, tenha mais importância do que teria a minha ignorância sobre a altitude do pico mais alto do Everest, sobre o verdadeiro número de metros a que ele está acima do nível do mar.)

 

Ora, sendo os factos institucionais dependentes do que nós, colectivamente, fazemos (podemos acabar com o sistema monetário que faz com que aquele pedaço de papel seja uma nota de dez euros, se colectivamente agirmos nesse sentido), então, o que andamos a fazer neste mundo interessa à questão de saber o que existe e o que não existe em termos de realidade institucional. Daí que Obama tenha sentido necessidade de agir de forma a tornar indisputável que ele tinha efectivamente jurado como se deve jurar para ser presidente dos Estados Unidos. Já pensaram na responsabilidade que temos, na medida em que, deixando de fazer a nossa parte nos procedimentos institucionais, ou fazendo-a de forma defeituosa, podemos avariar as instituições da nossa vida comum?

 
 

 

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