25.10.15

«A esquerda só não é plural nas ditaduras.»

16:11

Confesso que estou já um bocado cansado de quantos insistem que o PS não disse X antes das eleições - quando o PS efectivamente disse X - ou, em alternativa, insistem que o PS disse Y - quando o PS efectivamente não disse Y. Concretizando: não é verdade que o PS tenha escondido a sua abertura aos outros partidos de esquerda, não é verdade que o PS tenha negado a possibilidade de se entender com a outra esquerda. Há já suficientes republicações de pertinentes declarações de António Costa sobre a matéria, mas hoje venho relembrar uma entrevista que dei ao DN, em Junho, exclusivamente sobre o tema das nossas relações com a esquerda. Aqueles que estão habituados a usar a mentira como método político, façam um esforço para entender que alguns políticos fazem o que dizem e dizem o que fazem.



Desafio socialista ao PCP e ao BE: “Façam uma coligação".

Entrevista a João Pedro Henriques, Diário de Notícias, 19 de Junho de 2015.

A conversa foi marcada com um único tópico na agenda: o diálogo – ou falta dele – entre o PS e os partidos à sua esquerda. Porfírio Silva, dirigente nacional do PS com o pelouro da Comunicação, apela para que se deixe de lado a “retórica da agressividade”. E sugere ao PCP e ao BE que se coliguem para não competirem entre si “a ver quem bate mais no PS”.


Bloqueios identificáveis no diálogo do PS à sua esquerda?

Há um bloqueio de base que tem que ver com a própria noção de que a esquerda é plural. A esquerda só não é plural nas ditaduras. Ou porque está no poder e suprime as outras esquerdas ou porque está sob ditadura na oposição e acaba por não haver espaço para a diversidade. Em todos os países democráticos onde há esquerda, a esquerda é plural. António Costa expôs um entendimento novo da democracia representativa em Portugal contra a ideia de arco da governação, ou seja, contra a ideia de que o acesso ao poder está limitado a certos partidos. Todos os partidos que estão no Parlamento representam eleitores e têm dignidade para participar nas mais diversas soluções políticas. Isto até dizendo que empobrece a democracia portuguesa que haja vastos setores do eleitorado que nunca tenham tido oportunidade de participar numa responsabilidade governativa. O estranho é que, sendo esta uma mensagem de clara rutura com as razões históricas que explicam diferenças dentro da esquerda, isto não foi entendido assim. Temos manifestações com efigies de António Costa ao lado de Passos Coelho e de Paulo Portas. É inadmissível, não corresponde à verdade.

Essa é uma forma de estar mais vincada no PCP do que no BE, em sua opinião?
Poderia fazer uma análise partido a partido. Mas quando nos dirigimos a este partido ou aquele partido pode parecer que estamos a ser agressivos e eu não quero parecer isso. É verdade que o PS diz que quer maioria absoluta e é verdade que alguns partidos de esquerda veem isso como um problema Mas há uma razão para querermos maioria absoluta: porque o Presidente da República que temos fará tudo até ao fim para beneficiar a direita; e o único seguro que podemos ter para saber que o Presidente da República não pode bloquear uma situação governativa do PS é termos uma maioria absoluta. Mas entendemos a maioria absoluta como uma oportunidade – e isso sempre foi dito – para o diálogo político, designadamente com os partidos à esquerda. O sectarismo à esquerda não dificulta só o diálogo político, também dificulta o diálogo social. Queremos outro papel dos sindicatos, das confederações sindicais, queremos relançar a negociação coletiva e o diálogo social e o bloqueio à esquerda também tem um efeito negativo sobre o diálogo social.

Aparentemente, o bloqueio mais identificável é a relação com o Tratado Orçamental. Que passos podem ser dados para o romper?
Não me ponho na posição sobranceira de estar a dar lições aos outros partidos de esquerda. Não gosto que os outros partidos nos deem lições e também não quero dar lições. O que digo é que temos de nos concentrar no que verdadeiramente importa para o país. Uma questão essencial: o Estado social. Os outros partidos de esquerda dizem que se batem pelo Estado social – e ao mesmo tempo atacam o PS. Há qualquer coisa de bizarro nisto. Quem foi o principal obreiro do Serviço Nacional de Saúde? Quem foi o principal obreiro da escola pública para todos? Quem foi o principal obreiro da Segurança Social pública? Quem criou o rendimento mínimo garantido? Quem generalizou a educação pré-escolar? Quem criou uma política de ciência progressista em Portugal? É um bocadinho difícil compreender que partidos que dizem defender o Estado social ao mesmo tempo ataquem mais o principal obreiro do Estado social do que os partidos da direita. Temos um objetivo que é melhorar e defender o Estado social, torná-lo mais forte e mais útil para os portugueses e vamos trabalhar nisso. Certamente que o BE, o PCP e outros partidos que entretanto surgiram têm opiniões diferentes das nossas e isso é perfeitamente normal - mas temos de encontrar uma forma construtiva de trabalhar.

Parece estar quase a propor uma espécie de não-agressão entre os partidos de esquerda. Como que a dizer que há ideias diferentes mas era importante, para diálogos futuros, que se tirasse a agressividade da retórica…
Aí está um bom ponto, tirar a retórica da agressividade de cima da mesa Dou um exemplo. Uma das questões mais importantes dos próximos anos é a da sustentabilidade da Segurança Social. Uma das propostas mais estruturantes do PS é alargar a base de incidência das empresas para a Segurança Social: não contribuírem só com base na massa salarial, que tem que ver com quantas pessoas empregam, mas também com base nos lucros que geram. Isso é uma solução amiga do emprego, porque se tira um pouco às empresas que criam mais emprego e pede-se mais às empresas que dão mais lucro. Ora, tirando alguns detalhes técnicos, o BE já propôs isto no Parlamento. O PCP votou a favor. A CGTP há vários anos que, tirando detalhes técnicos, defende uma solução que é basicamente a mesma. E quando o PS a apresenta vêm dizer que isto é de direita. É incompreensível. Eliminar a retórica de agressividade na esquerda era um bom princípio.

A ideia com que se fica é que o PS já descartou a possibilidade de entendimentos permanentes à esquerda e já só aposta em entendimentos parciais…
Pessoalmente, não descarto nada Mas a vantagem da maioria absoluta é que permitiria entendimentos de geometria variável. Se precisamos de um entendimento firme para garantir um governo, temos um tipo de obrigação; mas se a base mínima estiver garantida, isso até permitirá aos outros partidos uma maior liberdade. Para começar a pensar no leque de possibilidades é preciso acabar com a tal retórica de agressividade. Porque parece que há uma espécie de campeonato à esquerda a ver quem ataca melhor o PS. É estranho, mas até certo ponto compreensível: quer o PCP quer o BE têm receio de dar um passo no diálogo com o PS – e depois serem atacados pelo outro, acusados de trair ou fraquejar. Mas se o problema é esse, então façam qualquer coisa juntos, uma coligação, uma frente, um acordo, e depois, como já não têm medo da concorrência entre si, então depois, se calhar, conseguem falar connosco mais facilmente. Agora, esta situação em que o campeonato é para ver quem bate mais no PS já deu maus resultados no passado e a direita é que beneficiou muito com esta má relação entre diferentes partidos de esquerda.




20.10.15

um antigo partido social-democrata e um antigo partido democrata-cristão.

17:54


1. O processo de consultas que o Partido Socialista promoveu junto de todos os partidos com representação parlamentar, visando apurar as condições de governabilidade existentes no novo quadro político, acabou por conduzir a uma aproximação com os partidos à nossa esquerda e confirmar um afastamento dos partidos à nossa direita. A meu ver, isso resulta, por um lado, dos compromissos que o PS assumiu publicamente antes das eleições e, por outro lado, da insistência do PSD e do CDS em tentarem fazer do PS uma muleta da direita. E, claro, dos movimentos que fizeram PCP e BE. Passos Coelho queixou-se, em carta a António Costa, de que o PS tinha feitos propostas (para um eventual entendimento) com base no nosso programa eleitoral – mas, pergunto: poderia ser de outro modo? O mandato dos deputados não será, basicamente, o de defenderem o programa que apresentaram aos eleitores? O PSD e o CDS mostraram não ter percebido os resultados das eleições de 4 de Outubro, pensando que bastava conversarem entre si para decidir o rumo da governação. Passaram ao lado deste facto simples: perderam a maioria no país e perderam a maioria no parlamento, tendo, assim, perdido a base mínima para a sua postura arrogante.

2. O PS está, pois, à procura de uma maioria à esquerda para viabilizar um governo estável, sólido e duradouro. Isso é importante para o PS, já que nos comprometemos a não bloquear um governo da direita se não houver uma alternativa. Parece-nos prejudicial para o país que esta coligação de direita continue a governar e, por isso, temos o dever de procurar uma alternativa. É o que estamos a fazer – e ninguém deveria surpreender-se com isto. Nunca o voto do PS viabilizou a investidura de um governo liderado pela direita; nunca houve um governo minoritário (de esquerda ou de direita) sem que o respectivo campo político fosse maioritário no Parlamento. Porque deveria desta vez ser diferente? Haveria o PS de deixar de ser o partido de esquerda que é? Haveria o PS de tornar-se a “ala esquerda” da direita? Isso, sim, seria alienar a nossa memória e a nossa história. Avançar para uma democracia completa, onde a governação pode envolver qualquer um dos partidos escolhidos pelos portugueses para o parlamento, é apenas mais uma contribuição desta esquerda democrática que somos para o aprofundamento da democracia portuguesa. E esse aprofundamento pode ser importante para combater o crescente afastamento dos portugueses face à política.

3. Entretanto, o debate público pós-eleitoral tornou evidente algo que talvez ainda não fosse claro para todos. Não são só as reacções destemperadas à hipótese de participação do PCP e do BE no governo ou na maioria parlamentar; não é apenas a qualificação dessa solução constitucional em termos excessivos e inaceitáveis, inclusivamente dando-a como um golpe de Estado; não se trata só do regresso de uma linguagem quente, ao estilo mais extremo do que se ouviu no PREC, à boca de políticos, articulistas e comentadores de direita, tratando uma maioria parlamentar conforme às regras como se ela fosse uma “usurpação” dos “direitos adquiridos” da Coligação PàF. Não é só isso, porque isso nunca deixou de existir em certos círculos ultraminoritários, designadamente nas páginas de algum jornal de nicho. O que é novo é que esse discurso radical, extremista, incendiário, provocador, passou a ser um discurso acolhido nas hostes da direita mais oficial. Aquele discurso extremista da direita, um discurso do tempo da Guerra Fria, é agora um discurso que muita direita “oficial” passou a admitir como boa táctica política. Ora, esse retrocesso é preocupante. Porque, não me sendo indiferente a existência de uma direita democrática e civilizada (ela é necessária), temos de preocupar-nos com este fenómeno recente: uma certa direita extrema, que tenta excluir da democracia representativa certas forças políticas de esquerda representadas no parlamento, essa direita radical alojou-se nas hostes da direita democrática e torna-se aí cada vez mais preponderante. Não há ninguém na direita que entenda isto e levante a sua voz contra a colonização de um antigo partido social-democrata e de um antigo partido democrata-cristão pelas vozes e pelas tácticas da direita extremista e radical?


18.10.15

ainda bem que não fui à Cornucópia este sábado.


(foto de Luís Santos)

Ontem, sábado, foi a última representação da actual série de espectáculos em que a companhia Teatro da Cornucópia apresentava na sua casa, o Teatro do Bairro Alto, o Hamlet de Shakespeare, encenado por Cintra, usando a tradução de Sophia. Havia a habitual conversa com o público e eu queria ir, mas não foi possível. Estava triste por não ter podido ir. Afinal, ainda bem que não fui.

Leio na imprensa que, nessa ocasião, Luís Miguel Cintra anunciou a despedida dos palcos no palco da sua vida: a Cornucópia.

Ainda bem que não fui, porque não sei bem como teria recebido o choque. Perder um mundo é, sempre, um grande choque. Limito-me, tentando não ser lamechas, a assinalar que Cintra nos deu muito a todos. E a mim me deu uma das experiências mais sublimes que tive em toda a minha vida.

Para não desgastar demasiado as palavras, deixo apenas um poema que lhe dediquei em 2014.



«o mundo é um brinquedo sem dono»



(para o Luis Miguel Cintra, com Lorca ao fundo)


não é o dono, Federico, que complica:
que as cheias devastem as habitações
enquanto corpos secos povoam as terras,
que os animais do campo escrevam os contos edificantes
esquecidos pelos bichos das repúblicas,
que deve isso ao dono ou à sua ausência?
quem viu, Federico, que a ferida estava no brinquedo,
no próprio brincar sem folguedo, foi o Luis Miguel,
com peças várias da tua herança,
esquecendo por momentos a teologia do dono,
arriscando mesmo um certo panteísmo
para mostrar a diversidade dos jeitos,
a pluralidade dos modos em que somos
brinquedos quebrados, sim,
mas tão-somente das mãos e juízos uns dos outros.

é terrível a vida simples:
o mundo é um brinquedo sem o conforto do dono,
mas contigo nós atravessámos a cidade como navios do deserto
transportando a água que calou por momentos os calvários dentro de nós.



(9 de Março de 2014, dia das últimas representações de “Ilusão”, no Teatro da Cornucópia.)


***

Mais sobre o projecto: http://maquinaespeculativa.blogspot.pt/2014/02/uma-ilusao-na-cornucopia.html.
Mais sobre o espectáculo: http://maquinaespeculativa.blogspot.pt/2014/02/ilusao-na-cornucopia-varios-lorcas-um.html)





16.10.15

O arco da responsabilidade.

21:00

Solipsis VII, 2013, escultura de Wim Botha (África do Sul) fotografada por Porfírio Silva


(O meu artigo de hoje no Público.)

1. A iniciativa do PS, ao encetar contactos com todos os partidos com representação parlamentar, visando mapear as condições de governabilidade no novo quadro político, sem excluir a formação de uma maioria de esquerda no Parlamento que seja capaz de apoiar de forma sólida e duradoura um novo governo, ressuscitou o debate político em Portugal. A parte desse debate que mais me interessa não é a que diz respeito aos ganhos que este ou aquele partido pode ou não obter em cada um dos cenários, mas, isso sim, o que pode a democracia representativa ganhar neste processo.

2. Sim, a democracia representativa não sobrevive apenas por efeito da inércia política; ela carece da renovação contínua do laço representados/representantes. E há muitos indicadores da premência dessa renovação.

Em Portugal, nas últimas eleições legislativas, mais de 4 milhões de eleitores abstiveram-se, 200 mil votaram branco ou nulo, 300 mil votaram em partidos que não chegaram a eleger qualquer deputado. Quase metade dos eleitores pode não se sentir representada pelo atual parlamento ou até não se rever na forma corrente de fazer política.

Na Europa, cresce a influência de forças extremistas, que menosprezam o progresso dentro do quadro institucional democrático e desestabilizam a comunidade política com o incitamento à rutura social (por exemplo, em bases racistas ou xenófobas).

Estes sinais exigem ação para melhorar a qualidade da democracia representativa. Não sou revolucionário, não defendo a transformação violenta da sociedade, nem a modificação da ordem política pela força; sou partidário de uma democracia representativa melhorada com mais participação cidadã. Como podemos fazer isso? Não havendo respostas milagrosas, há caminhos viáveis.

3. Um dos caminhos para melhorar a democracia representativa é trazer mais pessoas para a partilha de responsabilidades inerentes à governação. Uma crítica que muitos fizemos ao PCP e ao BE foi a de serem apenas partidos de protesto, encontrando em exigências maximalistas e na diabolização do compromisso o álibi para não levar suficientemente a sério os constrangimentos da ação imediata. A moção política aprovada pelo PS no XX Congresso Nacional, além de recusar a teoria do arco da governação como fórmula para excluir sistematicamente certos partidos das soluções de governo, punha o dedo nessa ferida: “O facto de sectores significativos do eleitorado não se envolverem na partilha de responsabilidades de governar representa um empobrecimento da democracia.” Além do diagnóstico, um caminho: “O momento do país exige da representação democrática, na pluralidade dos seus atores, uma capacidade para compromissos alargados, transparentes e assumidos – até para estimular e acompanhar o indispensável compromisso social.” Não valerá a pena percorrer este caminho para trazer um milhão de eleitores para o “arco da responsabilidade”, libertando-os do impasse do protesto sem consequência?

4. E a Europa, espaço de respiração da nossa democracia?

PSD e CDS evocam um “arco europeu”. Mas ele é tudo menos homogéneo, como demonstrou a direita ao alinhar na opção europeia pela austeridade pró-cíclica e ao impor a submissão como linha comportamental na UE, cortina das suas próprias preferências ideológicas. Já o PS tem-se empenhado na procura de alternativas capazes de atacar as causas estruturais do prolongamento da crise, ligadas a uma união monetária que descurou os mecanismos de coesão.

PCP e BE têm partilhado mais desconfiança do que empenhamento na construção europeia. Por aí tem passado uma divergência fundamental com o PS. Querendo contribuir para uma reorientação da política europeia, o PS recusa abordagens confrontacionais ou unilaterais, preferindo a identificação de aliados e de convergências que, sem enjeitar os nossos compromissos, alarguem o espaço dos interesses nacionais na UE. Com a estratégia Um Novo Impulso para a Convergência na Europa, proposta pelo PS e pelo PSOE e acolhida pelo Partido Socialista Europeu, rompemos com a ladainha das “reformas estruturais” da direita, sempre viradas para cortar nos direitos sociais, e escolhemos investir em reformas estruturais progressistas: a correção do défice histórico de qualificações; a modernização do Estado; a renovação urbana inteligente e a eficiência energética; a inovação empresarial; a desalavancagem sustentada da economia. Estará a esquerda da esquerda disposta a tentar esta abordagem exigente mas construtiva? Seria um feito democrático chegarmos a esse ponto.

5. Historicamente, o PS deu ao país, além de componentes centrais do Estado social, dois pilares essenciais da nossa democracia: a certeza de que o apego à liberdade se sobrepõe a qualquer outro ponto programático; a pertença à Europa num mundo onde a prosperidade é incompatível com o isolamento. Se a iniciativa do PS aprofundar a democracia representativa e alargar a frente do empenhamento na construção europeia, terá valido a pena. Não só para o PS. Para Portugal. Para os portugueses.

Porfírio Silva
Secretário Nacional do PS

Pílulas contra a amnésia política.

15:32

Um excerto do As Palavras e os Atos de ontem.




14.10.15

Defender a democracia representativa.

17:47



O resultado das eleições legislativas de 4 de Outubro deixou o PS no centro da vida política nacional, com as responsabilidades que só se reconhecem a um grande partido com capacidade para dialogar com todas as forças com representação parlamentar.

Outros estarão acantonados na posição fácil de quererem olhar só para um aspecto do problema, esquecendo, contudo, que esta situação complexa tem de ser vista de vários ângulos. O PSD e o CDS, embora constituindo a candidatura que teve mais votos, esquecem que mais de 60% dos votantes escolheram candidaturas que se opõem claramente à política de austeridade violenta que prosseguiram nestes últimos quatro anos. O PCP e o BE, embora reclamando com razão que o prosseguimento da política de empobrecimento não obteve uma maioria suficiente para governar, não podem ignorar que o país não pode satisfazer-se com uma maioria negativa, ou de bloqueio, porque não podemos somar a uma crise económica e social uma crise política. O PS não pode ignorar nenhum dos lados do problema – e, precisamente por isso, tomou a iniciativa de conversar com todos os demais partidos parlamentares para averiguar das condições de governabilidade no novo quadro político.

Nenhuma das soluções possíveis é fácil, errará quem deposite certezas absolutas em qualquer uma das saídas. Tudo o que pode ser feito nos momentos de importantes encruzilhadas comporta riscos – mas é obrigação dos políticos a sério correr riscos. Não em nome das pequenas glórias transitórias, de cargos ou de facilidades, mas a pensar no país e na evolução da democracia representativa.

Vale a pena correr riscos para impedir a captura do nosso sistema democrático por aqueles que querem sobrepor critérios oportunistas em prejuízo do quadro constitucional. E, aqui, é uma causa nobre dar combate ao argumento central da Direita para tentar impugnar a legitimidade de um governo assente num entendimento à esquerda (entre PS, PCP e BE). O argumento é que o PS não colocou essa questão a debate antes das eleições. Esta teoria já foi abundantemente desmontada por quantos lembraram que António Costa e o PS repetidamente escreveram e disseram, em discurso direto e em textos programáticos (principalmente, a Moção Política sobre as Grandes Opções de Governo apresentada às Primárias do PS e a Moção Política aprovada no XX Congresso Nacional) que recusamos a teoria do arco da governação. Isto é, afirmamos há muito não haver justificação para excluir sistematicamente certos partidos da responsabilidade de governar, e que o afastamento prolongado de sectores significativos do eleitorado da partilha de responsabilidades de governar representa um empobrecimento da democracia. A afirmação de que não governaríamos “com esta direita” foi repetida em vários formatos, teve grande destaque mediático e foi mesmo objecto de campanha dos nossos adversários. Não se pode dizer que o PS tenha escondido a sua abertura a soluções como as que agora estão a ser ponderadas, pelo que este argumento da ilegitimidade é, claramente, insustentável.

Vale a pena correr riscos para trazer um milhão de eleitores para o “arco da responsabilidade”. Se tantas vezes criticámos o PCP e o BE por se comportarem como meros partidos de protesto, e essa crítica era razoável, temos, assim, a noção clara de quão importante seria trazer os eleitores desses partidos para uma partilha de responsabilidades mais exigentes – as responsabilidades inerentes a pensar, já não apenas do ponto de vistas da oposição a certas políticas, mas do ponto de vista da construção de soluções capazes de enfrentar com sucesso o choque da realidade governativa.

Ao longo da sua história, o PS já deu muito à democracia portuguesa. Valeria a pena correr riscos para, quarenta e tal anos depois do 25 de Abril, alargar o “arco da responsabilidade” para além de um “arco da governação” desprovido de qualquer lógica à luz da Constituição e das exigências de uma democracia representativa completa.


(publicado antes no Acção Socialista Digital)


13.10.15

memórias da vida democrática.

16:40


Antes das eleições legislativas de 2011, o jornalista David Dinis escrevia no Diário de Notícias uma peça intitulada “Partido que tiver mais votos pode desta vez não governar”. Deixo alguns excertos dessa peça, para reflexão.

“E se o partido que tiver mais votos nas legislativas não governar? A questão não é nova em muitos países, mas coloca-se pela primeira vez em Portugal. (…) Sobretudo se o PS vencer, depois de Passos Coelho e Paulo Portas terem dito que não querem integrar um governo que tenha José Sócrates à frente.
A questão já passou da discussão teórica para a política. Na terça-feira à noite, Nuno Morais Sarmento disse na Renascença que Cavaco Silva não deve “dar posse ao partido mais votado” se este não assegurar um governo de maioria absoluta – que o próprio Presidente já disse ser necessário a partir de 5 de Junho. Isso abriria a porta a um governo PSD/CDS, se tivessem maioria, mesmo que os sociais-democratas não tenham mais votos nas urnas. (…)”

Vale ainda a pena citar parte de uma caixa junta ao texto principal: “Mesmo que tivesse mais votos e mais deputados, o PS poderia ver-se confrontado com a existência de uma maioria absoluta de direita na Assembleia da República. E aí, ou convence o CDS a entrar no seu governo ou arrisca-se a ver a direita juntar-se e chumbar o seu programa de governo – oferecendo-se ao Presidente da República para fazer um governo de coligação.”

Isto era em 2011. O que mudou?


10.10.15

Coerência. Recusar a "teoria do arco da governação".

17:28



António Costa no encerramento do XX Congresso Nacional do PS

Na "Moção Política sobre as Grandes Opções de Governo", apresentada por António Costa em Agosto 2014 para as Primárias do PS que tiveram lugar em Setembro, lê-se o seguinte, a concluir o capítulo intitulado "A responsabilidade do PS":

O tão abusado conceito de "arco da governação" não pode servir para justificar a exclusão sistemática de certos partidos da responsabilidade de governar. É na sua pluralidade que o Parlamento representa o país e não há qualquer razão para o PS ignorar as aspirações dos eleitores representados pelos partidos à sua esquerda. Os apelos ao consenso e ao compromisso não podem ser instrumentalizados, como já foram, para tentar proteger as políticas do atual governo para lá de futuras eleições. O país não precisa de consensos artificiais e opacos para que tudo fique na mesma. O que o país precisa é de compromissos transparentes e assumidos, onde as diferenças são o ponto de partida para convergências sólidas e relevantes, em torno de uma estratégia que vá para além de uma legislatura.
Há um problema de governabilidade à esquerda, com raízes históricas e ideológicas profundas, que tem dado uma inaceitável vantagem estratégica à direita. A gravidade do momento presente obriga a enfrentar esse problema. Que uma parte significativa do eleitorado há décadas não se envolva em nenhuma solução de governo, representa um empobrecimento da democracia. Só por si, a contestação e a oposição não resolvem os problemas dos portugueses. A esquerda que
no Parlamento se senta à esquerda do PS não pode voltar a enganar-se de adversário
, porque no passado cometeu erros de avaliação que foram determinantes para eleger o atual governo PSD/CDS.
A necessidade da alternativa não permite deixar os portugueses na incerteza da governabilidade. Por isso, o PS assume a responsabilidade de construir uma nova maioria para um novo ciclo.

Depois, o XX Congresso Nacional, na Moção Política então aprovada, reafirma a recusa da teoria do arco da governação:

É na sua pluralidade que o Parlamento representa o país. Nenhum conceito que vise limitar o alcance da representação democrática, como o conceito de "arco da governação", pode servir para excluir sistematicamente certos partidos das soluções de governo. Ao mesmo tempo, o facto de sectores significativos do eleitorado não se envolverem na partilha de responsabilidades de governar, representa um empobrecimento da democracia. O momento do país exige da representação democrática, na pluralidade dos seus atores, uma capacidade para compromissos alargados, transparentes e assumidos – até para estimular e acompanhar o indispensável compromisso social.

Alguns políticos dizem o que lhes convém em cada momento. Não é o caso de António Costa, não é o caso da sua determinação em fazer com que a democracia portuguesa seja para todos.




9.10.15

Está-me a parecer que há partidos que estão a levar a sério as palavras do Presidente...

09:00


No dia 6 de Outubro, o Presidente da República disse ao País o que entendia sobre o pós-legislativas de 4 de Outubro. O excerto seguinte da sua comunicação deve merecer uns minutos do nosso tempo:

Por isso, é fundamental que, tendo os portugueses feito as suas escolhas nas eleições de domingo, seja agora formado um governo estável e duradouro.
Como acontece em todas as democracias europeias, cabe aos partidos políticos que elegeram deputados à Assembleia da República revelar abertura para um compromisso que, com sentido de responsabilidade, assegure uma solução governativa consistente.
Que fique claro: nos termos da Constituição, o Presidente da República não pode substituir-se aos partidos no processo de formação do governo e eu não o farei.
Recordo que, até ao mês de abril do próximo ano, o Presidente da República não dispõe da faculdade de dissolver o Parlamento, devendo entretanto entrar em funções o novo Governo e ser aprovado o Orçamento de Estado para 2016, instrumento decisivo para a estabilidade financeira do País.
Portugal necessita, neste momento da nossa história, de um governo com solidez e estabilidade. Este é o tempo do compromisso. O País tem à sua frente um novo ciclo político, em que a cultura do diálogo e da negociação deve estar sempre presente.
Confio que as forças partidárias vão colocar em primeiro lugar o superior interesse de Portugal.

Até estou de acordo.

Não estou de acordo que só tenha consultado o presidente do seu próprio partido para verificar as condições de governabilidade.

Não estou de acordo que (numa parte que não citei) tenha feito exigências políticas que não lhe competem determinar.

Mas estou de acordo que é necessário um governo estável e duradouro. (Já o PSD parece que não está de acordo, uma vez que o dirigente do PSD José Matos Correia quer ver a Direita no governo, mas não quer ver o PS no governo com a Direita...)

Estou de acordo que este é o tempo do compromisso.

Está-me a parecer que há partidos que estão a levar a sério as palavras do Presidente, mas que não são os partidos com que o Presidente estava a contar...

7.10.15

E agora, Esquerda?

09:00


1. Os partidos também morrem. Ou por perderem internamente as condições de identidade e coesão que são indispensáveis a qualquer estrutura dinâmica ou por deixarem de cumprir externamente as suas funções no ambiente social e político em que se inserem. Uma forma de deixar um Partido morrer simultaneamente por razões internas e por razões externas é deixar que o Partido perca a sua autonomia estratégica, a sua capacidade para prosseguir os seus próprios fins nos seus próprios termos, nos tempos ditados pela vida política real.

2. Uma forma clássica de matar um partido é permitir que ele deixe de representar aqueles que prometeu representar.
Ora, nas eleições de domingo passado, nenhum eleitor votou no PS para dar continuidade a este governo.
Demos sinais suficientes de que, pelo menos com este PSD e com este CDS, a nossa função é ser alternativa. Foi isso que dissemos: se nos propomos mudar a política que eles fazem, não é com eles que isso pode ser feito.
Se o PS for dolosamente responsável pela continuação deste governo, o prognóstico é duro mas é claro: o PS vai “pasokar”. Seremos reduzidos à insignificância dos partidos que se separam dos seus eleitores e que, enredando-se em justificações mais ou menos artificiosas para tentar esconder a sua deslealdade aos que prometeram representar, são descartados como inúteis. A nossa única glória será linguística: introduzir na língua portuguesa um novo verbo: Pasokar. Mas o PS não existe para inovar linguisticamente, existe para representar os portugueses que se identificam com a esquerda democrática e com as soluções social-democratas para a crise que vivemos.

3. No actual quadro parlamentar, só vejo uma forma de fazer isto. Devemos verificar as condições de um governo sem PSD e sem CDS, não vamos deixar o Bloco e o PCP a fazerem de conta que querem apoiar um governo do PS se apenas estiveram a carregar munições para a sua retórica futura, vamos verificar o que eles querem efectivamente dizer e fazer, vamos testar aquilo a que estão dispostos. E digo: vamos fazer esse teste publicamente. O meu entendimento é que o PS deve promover reuniões formais, ao mais alto nível, com o propósito declarado de verificar as condições de um governo liderado pelo PS em que o PCP e o Bloco assumam as responsabilidades a que até hoje fugiram.
Sou de opinião que devemos fazer isso imediatamente. Quando um indigitado primeiro-ministro da direita aparecer no Parlamento com o seu programa de governo, o PS deve estar, já nessa altura, de posse de todos os dados que lhe permitam saber se tem alguma utilidade política apresentar uma moção de rejeição que tenha o carácter de uma moção de censura construtiva, na medida em que contenha as linhas fundamentais de um governo alternativo capaz de reunir apoio coerente e responsável na Assembleia da República. Já temos, aliás, o essencial do caderno de encargos, que são os quatro objetivos essenciais enunciados pelo Secretário-Geral do PS, António Costa, na noite das eleições:
• Virar de página na política de austeridade e na estratégia de empobrecimento, consagrando um novo modelo de desenvolvimento e uma nova estratégia de consolidação das contas públicas, assente no crescimento e no emprego, no aumento do rendimento das famílias e na criação de condições de investimento pelas empresas.
• A defesa do Estado Social e dos serviços públicos, na segurança social, na educação e na saúde, para um combate sério à pobreza e às desigualdades;
• Relançar o investimento na ciência e na inovação, na educação, na formação e na cultura, desenvolvendo ao país uma visão de futuro na economia global do século XXI;
• O respeito pelos compromissos europeus e internacionais de Portugal, e a defesa dos interesses de Portugal e da economia portuguesa na UE, por uma política reforçada de convergência e coesão, que permitam o crescimento sustentável e o desenvolvimento do país.
Se, em vez de encetarmos este caminho, fizermos o que os “comentadores” nos pedem, deixaremos nas mãos de outros, no momento em que seja pior para nós, a vitimização do governo, eleições antecipadas e nova maioria absoluta da direita.

4. Claro que há sempre o argumento do centro.
Ainda agora há camaradas que escrevem que o problema é que o PS nestas eleições não conquistou o centro flutuante. Mas eu pergunto: qual centro flutuante? Se estamos a falar de centro flutuante, só podemos estar a falar dos que votam ora na direita ora no PS. Então, se olharmos para os resultados eleitorais de 4 de Outubro, e se os compararmos com o histórico de resultados eleitorais em legislativas desde o 25 de Abril, temos de concluir que não ficou nada do centro flutuante na Coligação. Portanto, não havia lá nenhum stock de votos que o PS pudesse ter ido buscar e não foi buscar. Nós perdemos foi para a Esquerda, nomeadamente para o Bloco, e perdemos também para o desânimo, o que torna completamente falaciosa a ideia de que devíamos ter tido um discurso mais moderado para captar o centro flutuante – até porque o nosso discurso nunca deixou de ser moderado.
Aliás, como Partido temos de compreender algo muito importante. Somos um partido moderado e o nosso eleitorado é tradicionalmente um eleitorado moderado, e temos de agir com a moderação que nos é própria e que mantém o nosso lugar charneira no sistema político. Mas, precisamente, um dos nossos problemas é que os anos de crise radicalizaram uma parte do nosso eleitorado; as pessoas que, sentindo-se próximas do PS, foram mais violentadas pelas políticas da direita no governo, querem que o PS seja mais vociferante contra a situação. Temos de saber, mantendo embora a nossa matriz ideológica e cultural, dar resposta também a essas pessoas e não descolarmos dessas pessoas em nome de um centro flutuante que nestas eleições já abandonou a Coligação e partiu para outros voos.

5. O PS disse aos quatro ventos durante a campanha “Há outro caminho.” Não podemos desistir de trilhar esse caminho. Mais exactamente: temos de construir esse caminho, assumindo o esforço. O PS rejeitou, em moção aprovada no último Congresso Nacional, a teoria do arco da governação. Rejeitou – e bem. Porque o “arco da governação” é uma invenção da Direita para retirar a uma parte do eleitorado os seus direitos democráticos e condicionar o PS.
Está na altura de nos libertarmos desse condicionamento, assumindo que todos os votos de todos os eleitores são igualmente legítimos e que todos os partidos com representação parlamentar têm responsabilidades face à governação do país. Os eleitores dos partidos à esquerda do PS valem tanto como os eleitores dos demais partidos, os deputados do BE e do PCP são tão legítimos representantes do povo como os deputados do PS ou de outros partidos. E compreender isto é essencial para compreender o que há a fazer neste momento, para que os mais de 60% dos votos expressos contra este governo não valham menos do que a minoria que votou pela continuidade da Coligação de direita radical. Ainda por cima quando o "Presidente da República" se comporta cada vez mais ostensivamente como um mandatário do chefe do seu partido.


Porfírio Silva

(Escrevo assumindo a minha condição de Secretário Nacional do Partido Socialista e fazendo deste texto uma espécie de “declaração de voto” a favor da posição tomada nesta madrugada pela Comissão Política Nacional do PS, que mandatou o Secretário-Geral para desenvolver no quadro parlamentar diligências que permitam concretizar os quatro objectivos essenciais que o PS definiu para esta fase da vida nacional, acima enunciados.)


4.10.15

um dia poético.

13:30

Hoje é dia de eleições e não venho falar de eleições. Venho falar de uma das minhas outras vidas, de eventos dos últimos dias que não tive tempo para partilhar convosco. Coisas das minhas actividades poéticas.


A revista "folhas, letras & outros ofícios", do Grupo Poético de Aveiro, acaba de aparecer no seu nº 14, contendo dois poemas meus: "As mães" e "O insecto da sombra". Antes de passar a outra notícia, aqui vos deixo esses dois poemas de minha autoria.




A outra novidade é que o poeta Luís Quintais me deu a honra e o prazer de publicar uma recensão dos meus "Monstros Antigos" no nº 190 da "Colóquio Letras" (revista da Fundação Calouste Gulbenkian), dirigida por Nuno Júdice.


Aqui vos deixo a recensão.

***



Porfírio Silva, Monstros Antigos, Lisboa, Esfera do Caos, 2013.

A poesia hoje poderá ser um eco disso, uma simulação disso. A poesia poderá e será hoje não o género literário claro, delimitado que foi um dia - e que deve muito a uma determinada aceção do que é a prosódia, a síntese e a intensidade -, mas outra coisa que se define por uma determinada aceção do fazer linguagem. A poesia será aquilo que da linguagem nos é alheio, será, se quisermos, a alteridade ou a diferença que subsiste, que teima em subsistir, na linguagem que julgámos nossa, e, nesse sentido, habitável.

Tudo isto a propósito de «Monstros Antigos», um livro de poemas de Porfírio Silva. Sendo um filósofo da ciência com um trabalho considerável no domínio, com textos importantes sobre Paul Feyerabend, a cibernética, e o artificial, o autor parece convocar no seu livro uma forma de escrita que é, até pelas suas declinações de carácter mais meta-representacional e ecfrástico, uma extensão das suas preocupações de filósofo e estudioso da ciência.

Não é comum encontrar poetas no cânone português que se tenham consagrado a pensar a ciência e a relação que ela estabelece com a nossa condição moderna. Teria a poesia portuguesa ignorado esse dado civilizacional e cultural básico que marcou e marca tão profundamente o nosso quotidiano? Raríssimos nomes escreveram a partir dessa experiência dilacerante que se prende com o modo como a ciência destronou certezas e convicções. O conjunto de nomes não nos permitiria fazer uma antologia de vulto e interesse. Poderíamos citar Vitorino Nemésio, António Gedeão, ou, mais recentemente, Manuel António Pina. Poderíamos, lá atrás, convocar a figura de Pessoa, em particular o seu heterónimo Álvaro de Campos. Mas não há antologia nenhuma da poesia portuguesa do século XX - que é o século da ciência, diga-se o que se disser, dadas as suas figurações mais trágicas e inquietantes -, que não exija ou não seja perpassada pela presença ou ausência de Pessoa. Porém, a densidade e dimensão de tal antologia seria quase irrelevante.

A pergunta, com tonalidades sociológicas óbvias, será afinal esta: porquê? Não responderei aqui a ela. Mas é manifestamente sintomático que a poesia possa ser assimilada ao monstruoso em declínio, a uma certa pulsão arcaica, tribal, antecedente, talvez perigosa porque remissível para o não categorizável, para aquilo que escapa, para a fluidez mercurial do texto e dos seus desígnios (também eles de aferição improvável). Continuamos a fazer essa associação, e é essa associação a algo agónico que nos seduz tanto em poetas como Herberto Helder, justamente porque, em Herberto, encontramos essa pulsão vital por algo que transborda, que não é modelável pelos regimes de classificação e mobilização que a ciência e o desencantamento do mundo moderno trouxeram. Se Hölderlin se despede ainda à beira do Neckar desse mundo em que os deuses recuam, é também porque, num poeta como Herberto Helder, a despedida se reatualiza e se ritualiza através de uma perspetiva sobre a linguagem e sobre o tempo que tememos ter perdido irreversivelmente. Atravessámos a fronteira do respirável, poderíamos dizer num idioma próximo ao de Hölderlin.

Atravessámos há muito essa fronteira, e foi a ciência e os seus híbridos que nos mostraram como não podemos voltar para trás - isto a aceitar que o projeto moderno se esgotou, o que não é assim tao claro como a minha escrita poderá aqui sugerir. A poesia é o eco desse tempo já mudo, o eco de um canto, o símile de uma demora que atravessa a má- consciência do presente. Num livro como aquele que me proponho recensear, essa sensibilidade parece percorrer os seus melhores momentos. Porfírio Silva escreve poemas que vêm depois da Razão e da sua trágica inscrição no mundo, e fá-lo como quem sabe que poderá estar a trilhar um caminho improvável, de onde a poesia portuguesa se parece ter eximido. A ousadia estará porventura numa vontade em libertar-nos de um certo sono dogmático que se prende, afinal, com o modo como permanecemos distantes do mundo secularizado que a ciência nos legou, no qual a poesia se assemelha a uma inconsequente resposta, a uma hipótese de sentido não inteiramente esgotada, mas pouco recetiva a presentismos ou afirmações de contemporaneiade que não sejam aquelas que a disforia permite.

O poeta é aquele que, usando a metáfora arqueológica, pressente uma morfologia de cidades escondidas ou subterrâneas jazendo sob a tranquila rotina do seu escritório: «Há trinta e três cidades subterrâneas / no meu escritório / de casa. // Não resulta tão certo número de cidades subterrâneas / da idade exacta de qualquer deus / na terra» (p. 13). Mas mais que esse labor subterrâneo, esse resgate de cidades invisíveis ou incompletas, dir-se-ia que a linguagem procurada é antes o limite do que pode ser explicado. Não se trata tanto de nomeação (o que não pode ser nomeado), mas antes de explicação e seus limites. Assim, logo após o poema «Cidades Subterrâneas», Porfírio Silva faz incluir no seu livro um outro que se intitula «A explicação do mundo», onde escreve: «Se o axioma da conservação da continuidade explicasse o mundo / e o demónio de Laplace conhecesse os estados iniciais / de todas as partículas e todas as forças / de que é composto o universo, / então os modelos de funções analíticas explicariam / a génese e mutação das formas / o nascimento e a morte dos alicerces / o gérmen de fissura nas caves da construção / a multiplicação dos exércitos de um homem só / as crianças com uma face que ri e outra que chora / e os lagos como o de Balkashe: metade é salgado, metade é doce / os peixes de água doce na metade salgada / os peixes de água salgada na metade doce. / Mas não explica» (p. 14). É neste «não explica» que estará porventura essa alteridade ou diferença que a poesia procurará fazer reverberar.

«Monstros Antigos» não é assim um livro de poesia sobre os efeitos cognitivos ou políticos que a ciência nos legou, mas um livro sobre o que está nos limites ou nos interstícios desses efeitos. É sobre a «clareira da ausência» (p. 15) que parece abrir-se a cada passo neste mundo secularizado e ateu (a primeira civilização ateia de que há memória). Trata-se de um lugar onde a poesia só pode assumir a função de uma metafísica secular, como nos diria certamente Wallace Stevens.

Este mundo que forças históricas obscuras ergueram, onde ninguém «dorme debaixo da metafísica» (p. 32), e onde o humano se degrada como possibilidade, sentido ou expectativa, a poesia é o topos do que talvez já não possa acontecer. Uma negatividade que é, porém, uma afirmação, ainda que toldada pela melancolia e pela constatação de que todas as línguas se sujaram, ou que, no limite, agonizam ou estão mortas: «E afinal todas as línguas humanas são já línguas mortas» (p. 33). Toda a poesia que ainda resta revolve-se sobre um magma de coisas feitas, ditas, acabadas, esquecidas. Uma representação sobre outra representação, sobre outra representação ainda. Toda a poesia, hoje, é fundamentalmente ecfrástica, procurando encontrar o contra-campo e o fora-de-campo nesse território de imagens que ameaçam o tempo e o espaço com uma promessa de transparência. Assim é este «Monstros Antigos». Poemas como «Retrato da Princesa Joana Santa» (pp. 8-9), «Capelas imperfeitas» (pp. 50-51) ou «De seus labirintos digo» (p. 56), denunciam esta procura meta-representacional que parece atravessar todo o livro de Porfírio Silva.

Uma das implicações mais notórias desta dimensão ecfrástica e meta-representacional é de cariz político. Como fazer a linguagem e a pólis (elas são mutuamente constitutivas) num tempo de esgotamentos e premissas contaminadas pelo desastre da história? O autor não responde à pergunta, mas ergue parábolas, analogias, incursões onde articula o self com uma lei moral que parece, em todo o caso, ausente. Sintomático disso mesmo é um poema como «Da prudência», onde a phrónesis aristotélica é também uma restituição do valor da palavra: «desde que a palavra chegou à cidade / e nada nunca mais da dureza do mundo lhe foi indiferente» (p. 46). Sintomático disso mesmo é a inarticulação entre emoção e razão, sangue e território, que se traduz em poemas como o que cito aqui em toda a sua extensão: «Que interessa o meu medo? / O meu medo não é assunto da cidade. / Da cidade é a palavra / porque as linguagens privadas não existem / e os muros, becos e pontes / essas estruturas basilares dos locais / andaimes do que é inteiramente público / só tem uma matéria: palavra. / Não cuides do meu medo / o meu medo é uma lavoura da casa / e não devem plantar-se em terra / bacelos de videiras marinhas» (p. 38). A referência implícita a Wittgenstein é decisiva: toda a linguagem é pública. A pólis é o seu lugar, e a inversa também é verdadeira: a linguagem é o lugar da pólis. Não haverá poesia senão aquela que essa dimensão pública consentir. Não haverá outra coisa senão poemas políticos, mesmo quando as ilusões da pessoalidade se parecem querer sobrepor aos desígnios da cidade. É Seamus Heaney que nos sugere algures - e cito de memória - que o fim da arte é a paz. Porfírio Silva poderia subscrever esta afirmação, dizendo-nos o mesmo mas de outro modo: o fim da arte é a cidade, essa ecologia da palavra e da poesia.


Luís Quintais