22.11.13

correr com eles à paulada.


Fala-se por aí - gente que eu respeito - em "correr com eles à paulada".

A minha questão não é sobre a exequibilidade do "projecto".

A minha questão é outra: se forem corridos à paulada, é porque ninguém soube correr com eles de outra maneira. Por exemplo, ninguém soube correr com eles mostrando uma alternativa que convença o país.

Portanto, deixem as pauladas para quem não sabe mais do que pegar em paus e façam, antes, qualquer coisa que se aproxime de um programa de governo alternativo. Porque, na verdade, os nossos dois governos, o do Pedro e o do Paulo, sobrevivem à conta das encolhas de outros.

Mesmo aqueles que acham que Seguro é o único tosco que por aí anda, não se riam apontando o dedo para o outro: se alguém apresentasse uma alternativa credível, até Seguro era capaz de acordar. (Pelo menos, tenho essa esperança.)

21.11.13

o mistério de receber de volta.


Sir Nicholas Winton organizou o resgate e passagem para a Grã-Bretanha de cerca de 669 crianças, na sua maioria provenientes da comunidade judia da Checoslováquia e cujo destino traçado eram os campos de extermínio nazi (no quadro de uma operação conhecida como Czech Kindertransport, ainda antes da segunda guerra mundial).

Depois da guerra, Nicholas Winton não contou a ninguém o sucedido, nem mesmo à sua esposa Grete. Em 1988, meio século mais tarde, Grete encontrou no sótão um álbum de 1939, com todas as fotos das crianças, uma lista completa de nomes, algumas cartas de pais das crianças para Winton e outros documentos. Ela, finalmente, soube da história e aí começou um pequeno e bonito mistério de regresso do bem feito.

O vídeo mostra um aspecto da ocasião organizada para que Sir Nicholas Winton reencontrasse, de surpresa, alguns dos sobreviventes.



(daqui)

20.11.13

defender a nossa liberdade.

15:13

Pedro Tadeu escreveu ontem um artigo de opinião no Diário de Notícias, intitulado "César das Neves não pode ficar calado", onde, embora declarando partilhar a maior parte das críticas ("mesmo as mais violentas") ao núcleo central das opiniões de JCN, se posicionava contra as movimentações para o "tirar da antena". Concretamente, criticava as iniciativas do tipo abaixo-assinados ou grupos do Facebook que defendem, por exemplo, "Correr com o César das Neves do DN, TV, Rádio e UCP". Uma citação basta para retomar o essencial da tese de Pedro Tadeu: «Recuso alinhar em carneiradas que investem, cegas, contra a liberdade de expressão. Indignam-me estes abaixo-assinados ou grupos no Facebook, cada vez mais frequentes, que pretendem silenciar A, B ou C. A História já ensinou vezes sem conta que quem ganha com isso não são nem os explorados nem os oprimidos.»

Pareceu-me um artigo de básico bom senso, mas, como o bom senso é a coisas mais em falta no mundo (Descartes, pelo menos aí, estava redondamente enganado), decidi partilhar o artigo no Facebook. Fi-lo hoje de manhã, acompanhado de um destaque da conclusão e da declaração de que a subscrevo. E fiquei surpreso com a reacção de alguns amigos: que seria incongruente defender a liberdade de expressão e criticar o respectivo exercício por parte dos que pediam a "erradicação" de JCN.

Decidi trazer para aqui este debate por ele me parecer fundamental e por nele se imiscuirem erros comuns. O tema, do meu ponto de vista pessoal, tem aqui excelente aplicação prática, nomeadamente (i) porque JCN é dos políticos-comentadores que mais volta ao estômago me dão e (ii) porque faz escola numa casa (a UCP) que deu provas muito concretas (comigo pessoalmente) de ter uma concepção de "liberdade de expressão" muito particular (para dizer o menos). Assim sendo, queria aproveitar para clarificar um ou dois pontos do que quero dizer com tudo isto.

Em primeiro lugar, é absolutamente vital que critiquemos o uso da liberdade de expressão para tentar limitar a liberdade de expressão. Usar a liberdade de expressão para pedir que se cale outra opinião? Isso não é o uso de um direito, é tentar usar um direito para dar cabo dele. A polícia é necessária para a segurança, mas não pode ser usada para criar insegurança. Os tribunais são necessários para fazer justiça, mas não podemos deixar que se tornem instrumentos de denegação de justiça. A liberdade implica responsabilidade e a maior irresponsabilidade é usar a liberdade para atacar a liberdade.

Em segundo lugar, precisamos compreender melhor as instituições que fazem da nossa civilização uma civilização. Um aspecto essencial para compreender as sociedades civilizadas é que as instituições têm várias "camadas". Usar a liberdade de expressão (camada = exercer um direito) para tentar limitar a liberdade de expressão (camada = definir os direitos) é jogar o jogo das liberdades para as destruir. Isto não quer dizer que eu gostasse de proibir as opiniões proibicionistas: quer dizer, isso sim, que quero mobilizar a opinião dos cidadãos contra as demandas proibicionistas. Não vejo que Pedro Tadeu peça a proibição dos abaixo-assinados, parece-me que escreve para dar combate ao que eles representam de errado - e parece-me incorrecto confundir isso com qualquer ataque à liberdade de expressão. Defender a liberdade de expressão inclui a responsabilidade de combater os maus usos da liberdade de expressão, designadamente, o dever de combater os que falam para pedir que calem outras opiniões.

Vimos aqui com estas questões básicas - porque a necessidade de defender "os fundamentos" faz parte das urgências de hoje. É por causa de estas coisas básicas não estarem claras para toda a gente que ainda é possível fazer a campanha suja que por aí anda contra a Constituição e o Tribunal Constitucional. Porque falta compreender bem a tal "teoria das camadas" acerca da realidade institucional.


16.11.13

A lista de Bergoglio - ou o Papa Francisco na ditadura argentina.

15:33


Como cidadão, não como católico ou crente (que não sou), tenho-me interessado pelo conjunto da actuação do Papa Francisco. Logo após a sua eleição, estive atento à acusação de que ele teria sido colaborante (pelo menos por omissão) com a brutal perseguição aplicada pela ditadura argentina aos suspeitos de oposição, desde o golpe de Estado de Março de 1976, do qual emergiu a liderança do general Jorge Videla. Não é, pois, de estranhar que me tenha precipitado para a leitura do livro “A lista de Bergoglio”, da autoria do jornalista italiano Nello Scavo, disponível em português desde o passado dia 11 (editora Paulinas).

O livro conta uma investigação, apresenta e enquadra testemunhos e chega a uma tese: há uma “lista de Bergoglio” (um paralelo com a “lista de Schindler”), quer dizer, uma lista de pessoas salvas das garras da ditadura pela acção de Jorge Mario Bergoglio, o então padre provincial da Companhia de Jesus naquele país, que veio a tornar-se papa com o nome do santo de Assis. Há, também uma tese adicional: o Papa pediu aos seus amigos para não se empenharem em dar publicidade a esses factos, logo a seguir à eleição, para não cair no que pareceria uma campanha de marketing do Vaticano.

O então padre Jorge não é apresentado como um revolucionário, um esquerdista ou um activista contra a ditadura. É apresentado como o líder dos jesuítas na Argentina que tomou a seu cargo, desde logo, defender os membros da sua Companhia. Aparentemente, cada líder tratava especificamente de defender os seus: cada bispo tratava dos da sua diocese, cada responsável de uma organização autónoma tratava dos que pertenciam a essa organização. Pelos relatos reunidos, protegia também outras pessoas, nomeadamente jovens, que se dirigiam a ele em situações de aperto, acolhendo-os (escondendo-os) nas suas instalações e preparando-lhes planos de fuga. Dos relatos extraímos ainda outra conclusão: a sua actividade não era meramente reactiva, não se limitava a enfrentar os casos à medida que apareciam. Parece que tinha uma forma sistemática de analisar a situação, compreender o modo de operar dos repressores (tanto legais como ilegais), extraindo daí estratégias para os contornar e conselhos a dar aos que perigavam. Um pragmático: aspecto importante para perceber o actual Papa, julgo eu. Um aspecto a que dou muita importância: sendo um razoável conservador do ponto de vista teológico, não terá nunca tentado mudar a opinião ou a acção daqueles que eram perseguidos por causa das suas opções mais radicais. Protegia as pessoas sem esperar em troca que elas deixassem de ser quem eram. Por exemplo, dava conselhos sobre como fazer chegar artigos ao estrangeiro a pessoas que escreviam numa linha teológica que não era a dele.

Há vários aspectos específicos que ressaltam do livro e acho útil sublinhar.

Em primeiro lugar, o então Arcebispo de Buenos Aires compareceu como testemunha perante um tribunal argentino criado expressamente para investigar crimes da ditadura. Foi interrogado, nomeadamente, pelos advogados de activistas dos direitos humanos. Importa saber que a justiça argentina, considerada a mais diligente do subcontinente na reparação dos crimes das ditaduras, nunca julgou ter encontrado mancha no comportamento de Bergoglio. Importa saber isto, porque há sempre quem ache que as suas opiniões privadas são mais argutas do que o funcionamento da Justiça. (O livro contém uma transcrição parcial do interrogatório.)

Em segundo lugar, o caso que alimentou as acusações ao Papa logo após a sua eleição, o caso dos padres Jalics e Yorio, foi averiguado e desmontado. O sobrevivente Jalics (Yorio já faleceu) desmente qualquer acusação ao então Provincial dos Jesuítas. E, analisando a origem das acusações, é razoável acreditar que alguns terão caído na conversa dos próprios militares para desacreditar Bergoglio (“pistas” insidiosas deixadas cair para “sugerir” suspeitas). Os que originalmente deram essas notícias tiveram muito eco – mas, sabe-se lá por quê, tiveram menos eco as notícias de que o balão tinha esvaziado.

Em terceiro lugar, é impressionante a relevância dos testemunhos recolhidos – que convergem, todos, na defesa do papel desempenhado naqueles tempos negros por Bergoglio. Desde o prémio Novel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, até uma juíza não crente perseguida pelo seu empenho na defesa dos direitos humanos, passando por um sindicalista de esquerda uruguaio, um jornalista, uma ministra de Cristina Kirchner e, claro, também religiosos e religiosas – não estamos a falar de pobres diabos facilmente manipuláveis, mas de testemunhas qualificadas e responsáveis.

Em quarto lugar, o livro contém boas indicações de que Bergoglio usava os seus contactos internacionais (os ramos da Companhia de Jesus noutros países da região e na Europa) para dar solidez e continuidade à sua acção na Argentina (quando os perseguidos só encontravam descanso no exterior).

Em quinto lugar, cabe notar que a posição de Bergoglio não era a única no seio da Igreja Católica argentina: havia cúmplices activos da repressão, como foi demonstrado em tribunal. Não se trata, portanto, de meter tudo no mesmo saco (guiados por simpatias ou antipatias ideológicas), mas de fazer justiça a cada situação pelo que ela realmente foi.

Enfim, isto é apenas uma recensão escrita ao correr da pena. Quem se interesse verdadeiramente pelo assunto deve ler o livro. O livro, além de ser esclarecedor sobre este assunto em concreto, tem outra valia: dá um contributo para compreender a personalidade do actual Papa como homem da Igreja Católica. A leitura consolidou a minha opinião geral: teologicamente conservador, não fará grandes revoluções doutrinárias – mas, com base nas suas preocupações pastorais, tenderá a ver de modo muito mais aberta (pragmática, descontraída) a relação entre as igrejas e os crentes que se tenham desviado das suas orientações. Para quem está de fora (como eu) isso pode parecer pouco; para quem tem fé católica e procura outra forma de vida na comunidade dos crentes, isso pode ser de grande valia existencial. Mas, sobre isto, escreverei noutra altura.

ménage à trois.



Era um curioso par de senhoras.

Uma, que em certo sentido era a linha da frente desse pequeno conjunto, era super controlada. Podia perfeitamente esconder o que lhe ia na alma retirando-o da sua expressão na face, podia perfeitamente sorrir quando queria chorar, podia perfeitamente chorar quando queria sorrir, podia perfeitamente mostrar desinteresse quando estava interessada, podia perfeitamente mostrar desinteresse quando estava distraída, e o desinteresse e a distracção são coisas diferentes, podia perfeitamente mostrar simpatia quando apenas sentia pena, e a simpatia e a pena são coisas diferentes, podia portanto mostrar deliberadamente uma aparência não coincidente com o seu real estado de espírito. Essa senhora era a linha da frente, a vanguarda, desse pequeno conjunto de duas senhoras.

A fraqueza da camuflagem desse pequeno grupo de duas senhoras era a outra senhora. Era a senhora que constituía a retaguarda. Na melhor das hipóteses, o grosso da coluna, por assim dizer. Essa segunda senhora era mesmo a senhora segunda: nunca por ela mesma tinha interesse e, portanto, nunca por ela mesma não mostrava o seu interesse. Nem tão-pouco desinteresse. Nunca por ela mesma sentia hostilidade face aos outros, e portanto também não mostrava hostilidade. Nem sentia inveja e portanto não mostrava inveja. Nem sentia desejo e portanto não mostrava desejo. Por ela mesma nada mostrava e camuflava perfeitamente, porque não tinha nada para camuflar, porque nada sentia por si mesma, para si mesma, em relação aos outros. Ou, ao menos, tinha aprendido a esquecer esses desvarios.

Mas quando este pequeno conjunto de duas senhoras, constituído por uma vanguarda e por uma retaguarda (ou por uma vanguarda e o grosso da coluna, e em todos os casos é sempre o grosso que suporta o mundo) – dizíamos, quando este conjunto de duas senhoras era exposto ao sexo oposto, esta dupla perfeita funcionava maravilhosamente mal. Porque a senhora de vanguarda não mostrava nada do que não queria mostrar e mostrava só aquilo que queria que se visse, mas a senhora de retaguarda era um espelho, um espelho límpido, não da sua própria alma, que não tinha, mas da alma da sua vanguarda. Como ela sabia o que a sua vanguarda, a outra senhora, queria, saber que lhe advinha do constante convívio amigável, ela reagia, de forma completamente despudorada, isto é, sem qualquer protecção, sem qualquer disfarce, sem qualquer filtro, ela reagia de acordo com o que sabia serem os interesses profundos da sua vanguarda, da outra senhora. Se a outra senhora estava perante um homem que ela queria hostilizar, essa senhora da vanguarda podia não o hostilizar, mas a outra senhora, a senhora segunda, hostilizava mesmo sem querer, porque expressava com todo o seu ser tudo aquilo que ia na alma que ela conhecia, a alma da senhora primeira, a única que verdadeiramente dispunha de uma alma. Se a senhora primeira estava perdidamente apaixonada pelo homem que tinha em frente, mas queria, por subtileza, por táctica, por estratégia, por decoro, por educação, por pudor, queria evitar mostrar a sua louca paixão por aquele homem que tinham em frente, a senhora segunda, completamente consciente da louca paixão, mas paixão com pudor, da primeira senhora, a segunda senhora mostrava-a à transparência. Não mostrava a sua própria alma, mostrava a alma da senhora primeira. A senhora segunda não mostrava a alma da segunda senhora. A senhora segunda mostrava a alma que tinha, a alma da primeira senhora, completamente reflectida nas suas águas. Se o homem pelo qual a primeira senhora se sentia ora apaixonada aparecia e as olhava, a segunda senhora não sentia nada por esse olhar, mas mostrava em toda a largueza da sua face, em toda a liberdade da sua boca, na evidência dos seus gestos corporais, o que sabia estar na alma da senhora primeira. Essa paixão. Nesse sentido, neste pequeno conjunto de senhoras, de suas senhoras, uma vanguarda e uma retaguarda, uma estava permanentemente traída, a primeira, enquanto outra estava permanentemente traidora, a segunda. Porque a primeira senhora escondia tudo, maravilhosamente, isto é, com uma eficácia admirável, e só deixava transparecer aquilo que queria que entrasse na sua verdade oficial, e normalmente queria que a verdade oficial estivesse para a verdade como a razão de Estado está para a razão. Mas a segunda senhora, que não aspirava nem deixava de aspirar a transmitir de seu o que quer que fosse, por si própria não encontrando dentro nada de assinalável, ignorando com valentia o problema do reflexo facial do mundo interno de dramas íntimos que não reconhecia, espelhava inteiramente o interior da outra senhora na sua própria face.

E perante este cenário, sendo eu o terceiro nesta relação desigual, sendo eu o homem à conversa com aquele conjunto de duas senhoras, eu falava com a senhora da vanguarda com os olhos postos na cara da senhora da retaguarda, guiando os meus passos exploratórios, os meus avanços e recuos, dispondo as minhas interpretações e recolhendo as minhas pistas, não pela cara, pela fala ou pela disposição corporal da senhora que me interessava compreender, mas pela cara, face e disposição corporal da acompanhante. Porque a acompanhante me mostrava, em toda a magnífica transparência da sua candura, se as minhas recentíssimas falas à primeira senhora eram do seu agrado ou não eram. E isso eu via-o na cara da segunda senhora. Se uma frase minha tivesse tocado a carne da primeira senhora, que era a senhora que eu queria tocar, eu podia avaliar o alcance desse toque ou o seu fracasso, não na cara da carne tocada, mas na cara da carne intocada. Involuntariamente assustando o carácter incerto da primeira senhora, obtinha uma retracção no corpo da segunda senhora, e pura impassibilidade em toda a região da primeira senhora. Obtinha medo na intocada, e intocabilidade na assustada, numa perfeita correspondência entre uma alma e um corpo, embora de dois seres diferentes.

(Os nomes das personagens são fictícios.)