Para um ser racional, capaz de distinguir entre factos e alucinações e capaz de pesar a qualidade dos argumentos, Kamala venceu claramente o debate. Trump fartou-se de mentir e, mais do que isso, de inventar completos disparates.
A questão é saber se isso serve de muito.
De alguma coisa serve: se Kamala tivesse mostrado impreparação, ou se tivesse descambado em assuntos melindrosos para a sua base de apoio potencial (como a situação em Israel e em Gaza), o seu eleitorado desmobilizaria em alguma medida.
Mas este tipo de debate, com aquele eleitorado neste contexto, não é decisivo. Para distinguir entre um facto e uma bizarria, é preciso ter algum conhecimento dos factos. Para distinguir entre um bom argumento e um pseudo-argumento sem lógica nenhuma, é preciso ter um certo grau de racionalidade em operação. Mais: para ter uma avaliação democrática é preciso ser um democrata: os que continuam a aplaudir a recusa de Trump em aceitar o resultado das anteriores eleições não se chocam nada com a insistência nessa loucura. A questão é que o eleitorado de Trump tem mais disto do que o eleitorado de Kamala (nenhum dos eleitorados é homogéneo, nenhum é puro e santo, nem nos EUA nem em lado nenhum, é uma questão de proporção).
Não vale a pena rasgarmos as vestes, contudo.
No imediato, porque Kamala pode perfeitamente vencer, até com o apoio dos republicanos racionais e democratas que percebem o perigo para a democracia e vêm no trumpismo a destruição do Partido Republicano tradicional. O debate contribuiu para esse caminho.
Por outro lado, porque, embora em graus diferentes, esta fragilidade é característica das democracias representativas tal como elas realmente existem: a falta de mecanismos para os cidadãos terem maior poder real na decisão política, mais quotidianamente e não apenas de quatro em quatro anos, promove o desconhecimento dos factos e das consequências das políticas seguidas. Por não terem considerado devidamente o problema do afastamento entre representantes e representados, as chamadas "democracias ocidentais" ficaram mais vulneráveis à demagogia e à manipulação.
É melhor viver nestas democracias imperfeitas do que em sociedades esmagadas por ditaduras, como acontece na Rússia, na China, na Arábia Saudita, ... (a lista é imensa). Mas corremos o risco de perder essa vantagem se não corrigirmos os nossos defeitos fundamentais. Que a "democracia representativa real" não acabe como o "socialismo real"...
Porfírio Silva, 11 de setembro de 2024