O perigo, em situações como a desta eleição presidencial em França, é que muitos eleitores cansados de esperar pelos benefícios da ordem democrática prefiram tentar a sua sorte numa possibilidade de destruição do sistema – ou, pelo menos, de apear os seus símbolos para castigar a elite política. Apear Macron é um objectivo relevante para muita gente que não é fascista nem nada que se pareça – mesmo que, apesar de uma grande arrogância elitista, Macron não mereça esse desprezo. Macron merece crítica política, eu nunca votaria nele numa primeira volta, ele é o grande responsável por um plano desenhado para destruir as famílias políticas que fizeram a França contemporânea, nas suas grandezas e misérias. Todo o plano de Macron, desde o seu tempo de companheiro de estrada dos socialistas, assenta na tese, tipicamente de direita, segundo a qual a distinção entre esquerda e direita não interessa – mas esconde essa tese a cada segunda volta de uma eleição presidencial. Macron é, fora de Portugal, o único líder político europeu que eu veria a verbalizar a doutrina Montenegro, segundo a qual “a vida das pessoas não está melhor, mas o país está muito melhor". Não que eu faça equivaler Macron a Montenegro, mas faço equivaler um grau de insensibilidade política à vida concreta de muitas pessoas que apareceu em momentos graves da gestão de Macron com aquilo que conhecemos do discurso político de Montenegro.
De qualquer modo, contando tudo, nenhum democrata deve ter dúvidas de que, contra a extrema-direita, é preciso votar Macron. Só quem despreze a diferença entre viver em ditadura e viver em democracia (ou ignore como o nazismo fez o seu caminho através dos mecanismos democráticos) é que pode ter dúvidas nesse ponto.
3. Estou, claramente, do lado dos que não hesitam: é preciso que os eleitores de esquerda votem Macron para travar Le Pen. Não posso, no entanto, esquecer outras encruzilhadas – que não são apenas contrafactuais, são encruzilhadas possíveis num futuro não muito distante. Sendo que me coloco, obviamente, na perspectiva da família da social-democracia, do socialismo democrático e do trabalhismo, exemplifiquemos. Dois casos bastam para identificar o meu ponto.
E se Mélanchon, que, num total de quase 36 milhões de votantes, teve apenas cerca de 400 mil votos a menos que Le Pen, tivesse passado à segunda volta, onde se defrontariam Macron e Mélanchon? Há uma maneira simples de resolver a questão: é dizer que Mélanchon é de extrema-esquerda e, portanto, não podemos votar nele. Não me parece brilhante como saída: Mélanchon foi do Partido Socialista Francês, foi ministro de Jospin, não me parece que tenha feito perigar a democracia nessas funções. É um populista? É. Mas isso só mostra que a questão do populismo não está fechada à esquerda e o problema não é só dele. E, nessa circunstância, o ângulo pelo qual Macron seria olhado seria bem diferente: o obreiro da destruição planeada de todo aquele que foi em tempos o vasto campo político agregado pelo socialismo democrático.
E se, um dia, a opção fosse entre Le Pen e Mélanchon? Não descartaria tão rapidamente a possibilidade. Especialmente, não deveriam descartar essa possibilidade aqueles “analistas” que contam Le Pen, Mélanchon e Zemmour num mesmo bloco populista e sublinham que tiveram, em conjunto, 52% dos votos. Sem querer fazer comparações políticas directas, nem equivalências de estatuto, que seriam abusivas, e socorrendo-me apenas de figuras reais que tornem o cenário suficientemente concreto para percebermos a sua dureza, esse cenário, do ponto de vista simbólico, seria algo como termos de escolher por cá entre Ventura e Louçã.
4. Não dou receitas para cozinhados tão espinhosos, mas estas questões, mesmo sem lhes responder, mostram o problema. A antiga extrema-esquerda europeia, que hoje é, quase sem excepção, social-democrata (pelo menos no sentido em que não é revolucionária), tem um problema comum com o socialismo democrático e a social-democracia: gastam demasiadas energias a cavar o fosso do que os divide e estão pouco interessados em tentar perceber aquilo que os aproxima. Não digo que os une, digo que os aproxima. Para aqueles que se escandalizam com a ideia de que exista uma aproximação entre a esquerda radical e a social-democracia, só tenho de perguntar: que a esquerda radical se tenha integrado plenamente na democracia, e tenha deixado de ser revolucionária, não é, em si mesmo, um passo na direção da social-democracia, independentemente de todas as divergências quanto às propostas políticas concretas?
Já escrevi, anteriormente, que, na Europa, a esquerda radical e a social-democracia precisam de repensar as suas relações políticas. Em Portugal, o posicionamento do PS tem evitado o tipo de cenário que vivemos em França – embora muitos tardem em reconhecer o mérito do caminho aberto por António Costa em 2014 (no plano do PS) e em 2015 (no plano da governação do país). Mas, também em Portugal, a evolução de BE e do PCP tem demonstrado uma forte incapacidade estratégica para repensar os novos desafios das esquerdas, ao ponto de (temos de voltar ao chumbo do Orçamento de Estado, quando já estava anunciada a convocação de eleições nesse cenário) terem oferecido ao PS uma maioria absoluta como única possibilidade que o eleitorado tinha para livrar o país da crise política criada à esquerda e, do mesmo passo, terem oferecido às correntes mais radicais da direita um bónus eleitoral muito alargado. Isto dispensa os socialistas de considerarem a questão como um problema? Não dispensa. Mas também não se lhes pode pedir (não se nos pode pedir) que façam (façamos) o nosso trabalho e o dos outros…
Que estes cenários deixem de cabelos arrepiados muitos de nós que prezamos a democracia e as sociedades abertas, e que procuramos ver além do voto imediato, só mostra que há um trabalho político a fazer no campo da esquerda – mas, também, de forma mais ampla, no campo dos democratas, incluindo a direita democrática (que também se desintegrou na voragem de Macron). Só é possível manter a democracia a funcionar com uma combinação adequada de cooperação e de competição: o regime da pluralidade organizada só pode sobreviver se houver escolhas possíveis, mas só é viável se as diferenças e as divergências tiverem como chão um vasto campo de partilha do destino comum.