Li no Facebook a seguinte pergunta: e se os votos nulos e em branco começassem a ser representados por cadeiras vazias na AR?
E dei, lá nesse mesmo espaço, a seguinte resposta.
As cadeiras vazias não fazem audições de cidadãos e de instituições, não fiscalizam o governo, não fazem inquéritos, não debatem orçamentos, não fazem propostas. Se a ideia é melhorar o parlamento, não será certamente com cadeiras vazias. E não será por acaso que em alguns países o voto é obrigatório - mas, por cá, não há muita gente com coragem para penalizar os que não cumprem o seu dever cívico.
Esta resposta suscitou algumas objecções. Algumas dessas objecções atiraram ao lado e a essas não vou responder (por exemplo, não propus a penalização de quem não vota, apenas a mencionei como elemento – existente em outros países - de uma equação que não pressupõe apenas direitos, mas também virtudes cívicas). Outras objecções são, realmente, algum tipo de resposta ao meu argumento, mesmo quando laterais. Sobre essas vou tentar elaborar aqui um pouco mais (mas apenas um pouco).
Há sugestões que subscrevo inteiramente. Desde logo, melhorar a acessibilidade ao voto, facilitar o acto de votar. De acordo. É preciso modernizar o modo de aproveitar os novos meios (designadamente electrónicos) sem deformar o essencial.
Outras sugestões repetem velhas ideias, mas sem as analisar. Por exemplo: há deputados a mais. A primeira resposta, estando a discutir a representação, é basicamente a mesma que está no argumento original: com menos deputados haverá menos gente para fazer o trabalho que o parlamento tem de fazer. Até há quem diga: assim poupa-se dinheiro. Pois é: a democracia custa dinheiro. Mas a ditadura custa mais, e não só dinheiro. E, pela enésima vez: com menos deputados, seria difícil não distorcer ainda mais a representação. Porque a transposição de votos em mandatos, com um sistema de múltiplos círculos, favorece os maiores partidos e prejudica os mais pequenos – e com menos deputados essa distorção seria ainda maior, basta fazer as contas. E, com um único círculo nacional, a ligação aos territórios ficaria ainda mais comprometida, o que também prejudicaria a representação. Quanto à ideia de haver círculos uninominais: concordo, desde que seja numa combinação de círculos uninominais com círculos plurinominais, preservando pelos menos a proporcionalidade existente (nunca a diminuindo, porque acredito que o sistema político precisa de diversidade). Porque é que não concordo que haja apenas círculos uninominais? Porque nem todas as pessoas que são necessárias têm jeito ou vontade de serem políticos de tribuna, o que dificulta a sua eleição em candidatura uninominal. Mário Centeno teria sido eleito num formato desses? Provavelmente não – e seria pena. (Eu também não seria – mas isso já seria menos grave…)
Ainda há outro argumento acusativo para os deputados: há demasiados deputados-família. Não acho. Aliás, entre os poucos deputados-família que há, neste momento, no parlamento português, estamos eu e a minha mulher. E não tenho nenhuma dúvida em afirmar o seguinte: que eu seja deputado nada tem a ver com o facto de eu ser casado com quem sou, que ela seja deputada nada tem a ver com o facto de ser casada comigo. Acho que ela tem excelentes habilitações, de todo o tipo, para ser parlamentar; acho que eu também não faço assim tão mal o meu trabalho. Posto isto, pergunto: porque é que eu havia de deixar de ser deputado por ela também ser? Ou, porque é que ela não poderia ser deputada ao mesmo tempo que eu?
Outra das objecções apresentadas é a que milita pela multiplicação de referendos como substituto da democracia representativa – ou, vá lá, como complemento. Um exemplo insistente é a Suíça. Quanto à exemplaridade da Suíça, não vou alongar-me. Mas vale a pena apelar a que as pessoas pensem nas razões de não haver assim tantas suíças por aí. Talvez não seja só porque os suíços são os melhores do mundo e, no demais, sejamos todos obtusos.
Mas olhemos para a questão referendária em geral. Um dos exemplos dados é que as privatizações da EDP e dos CTT poderiam ter sido referendadas. Não concordo. Eu conto-me entre os que criticam essas privatizações, mas não acho que o problema se resolva passando a referendar caso a caso decisões desse tipo. O que as sociedades democráticas precisam é de melhores mecanismos para estudar melhor, com antecedência, essas decisões. E também precisamos de aprender a descartar os preconceitos ideológicos que, multiplicados até à náusea por uma comunicação social ideologicamente rendida ao liberalismo extremo, impediu a seu tempo uma apreciação política equilibrada dessas decisões. Nada disso se consegue fazer melhor com referendos. Aliás, basta ver o insucesso dos referendos nacionais em Portugal, dominados pela tal abstenção que motiva, em alguns, o desejo da via referendária. Por este andar, quererão antes mudar o povo… Precisamos de maior conteúdo na nossa política, melhor representação, melhor prestação de contas, melhor deliberação – mas isso não se consegue resumindo tudo ao voto, que é afinal a receita referendária.
Já agora, para quem aprecia a via referendária como cura para todos os males, sugiro o estudo de alguns problemas detectados pela investigação. Veja-se, por exemplo, o chamado “dilema discursivo” para situações em que indivíduos pertencentes a um colectivo participam em séries de decisões desse colectivo ao longo do tempo, na presença de constrangimentos e do requisito de consistência da série de decisões colectivas. O que é essencial é que o “dilema discursivo” pode ocorrer em muitas situações de decisão colectiva lidando com questões racionalmente ligadas, de tal modo que possam formar-se sucessivas maiorias incoerentes. No limite, pode ser impossível a partir de um dado momento tomar qualquer decisão coerente com a série antecedente — mesmo que todas as decisões individuais tenham sido, enquanto tal, perfeitamente racionais. O que importa aqui é que a racionalidade da decisão colectiva não emerge espontaneamente da racionalidade da decisão individual – e esse é um dos problema dos que sugerem a via referendária radical. (Apresentei sumariamente esta questão no meu texto “Intencionalidade: Mecanismo e Interacção”, publicado em Principia - An International Journal of Epistemology, em 2010, disponível na minha página académica.)
Outra objecção é posta assim: “E então o que fazer quando não nos sentimos representados ? Voto nulo?”. Tenho dois níveis de resposta a essa questão. Primeiro, não pode haver um partido para cada pessoa. Há muitas decisões colectivas que não passam (nem devem passar) pelos partidos, há outros mecanismos de formação de vontades colectivas, há decisões que não devem ser tomadas pela política nacional mas noutras instâncias – e tem de haver aí muita margem de manobra para pessoas e organizações. Quanto às questões que realmente devem ser decididas pelo parlamento: sim, defendo que temos de escolher um espaço com o qual temos afinidades fundamentais, mantendo a liberdade de pensamento e de acção, quer quando convergimos quer quando divergimos, porque a acção colectiva é mais do que a soma das acções individuais. Acho que precisamos de entrar em dinâmicas colectivas onde nem sempre concordamos com tudo, porque nós somos livres e os outros também são livres. Eu também não estou sempre de acordo com os grupos em que sou filiado – mas isso não me faz pensar que só estaria bem se tivesse um partido que tivesse sempre as mesmas ideias que eu. Sim, porque é essa exigência que subjaz a quem quer um partido com que esteja sempre de acordo: é querer que um colectivo de dezenas de milhares de pessoas esteja sempre de acordo consigo! Mas que ideia tão individualista, e ao mesmo tempo tão imperialista! Segundo nível de resposta: se acham que não há partido nenhum onde possam viver, com as concordâncias e discordâncias, criem um partido novo: mexam-se! Sim, porque o sofá como ponto de análise é demasiado fácil.
Uma última palavra para a objecção representada pelas seguintes frases: “O não votar chama-se direito ao pensamento livre” ou “não votar, ou votar em branco, é a última manifestação de liberdade”. Sobre isso, só tenho a dizer duas coisas simples. Primeiro, não sou contra a liberdade de não votar, embora deplore a facilidade com que as pessoas descartam a sua responsabilidade pessoal em momentos cívicos essenciais. Segundo, a liberdade não é só pensar, também é agir: se a abstenção é a melhor maneira de agir em liberdade, tenho pena de que a liberdade seja tão fina (em duplo sentido: tão aristocrática e tão pouco densa).
Porfírio Silva, 4 de Janeiro de 2018