16.8.21

Ken Loach e o resto

A expulsão do realizador Ken Loach do Labour é um assunto que deve merecer reflexão aos socialistas. É uma expulsão que se segue a um lote grande de expulsões recentes, que se dirigiram a apoiantes de Corbyn. É uma situação que merece reflexão, embora essa reflexão não se possa ficar pela pura solidariedade com o expulso mediático. (Loach é o realizador, por exemplo, de I, Daniel Blake, um filme importante para perceber a insensibilidade neoliberal que atingiu os serviços públicos, e nem só por culpa dos conservadores.)
 
No Labour existe, tradicionalmente, um sector, que se auto-entende como esquerda do partido, que age com organização própria (ao estilo tendências organizadas), em parte com organização paralela (ou mesmo exterior) às estruturas normais do partido. Não tenho acompanhado nos últimos anos essas organizações, mas elas representaram em certos momentos no Labour a ponta de lança do entrismo de inspiração em certas correntes do trotskismo - sendo que eu entendo o entrismo (um grupo de pessoas entrar num partido especificamente com o objectivo deliberado para o tomar por dentro, sem assumir perante o colectivo que estão lá, em grupo, para isso) como uma deslealdade organizada. Creio que um partido democrático tem o direito de se defender do entrismo, ou seja, de se defender de um "clube secreto" que age com segundas intenções sem se mostrar lealmente ao colectivo. Provavelmente, uma parte do que se está a passar tem a ver com isso. (Loach militou antes em partidos normalmente considerados radicais à esquerda do Labour, mas voltou e acompanhou o projecto de Corbyn.)
 
No entanto, sem pretender ser juiz em causa alheia (não conheço suficientemente a situação para uma pronúncia explícita sobre o caso concreto), preocupa-me o que isto significa sobre o estado da esquerda socialista democrática. O PS português também já teve casos de entrismo e acabou mesmo por expulsar um pequeno grupo de militantes, já lá vão uns largos anos. Mas, no geral, temos uma situação bastante equilibrada: não são permitidas tendências organizadas, mas há uma larguíssima liberdade de expressão de divergências e alternativas. Na verdade, o partido português mais plural é o PS: e ainda bem, apesar de alguns, de quando em vez, abrirem a boca para dizer que este ou aquele militante está cá a mais. Em balanço, o PS não é, de modo nenhum, um partido monolítico, não restringe a expressão de opiniões divergentes (nem interna, nem externamente) e tem sabido fazer da pluralidade uma força, em vez de uma fraqueza, mas parte do princípio que as estruturas partidárias são o local apropriado para contribuir para a formação do pensamento desse colectivo. 
 
O ponto que quero aqui sublinhar vai, porém, um pouco além da circunstância. A história da esquerda europeia (para restringir aqui o campo) tem sido uma história de confrontação. O combate entre socialistas (de diversas tendências) e comunistas (de diversas tendências) foi, em muitos países e durante muito tempo, a face mais visível de uma tendência acentuada para o sectarismo, que o próprio Marx já praticava como método político e que foi central na configuração da revolução bolchevique. Esse sectarismo, contudo, não é completamente simétrico: a prática de governos comunistas reprimirem partidos e militantes socialistas é muitíssimo mais frequente do que o oposto. De qualquer modo, dada a pressão exercida hoje por todo o mundo por parte de forças retrógradas contra os que se batem por maior igualdade e pelos direitos humanos, julgo que é tempo de encontrar métodos de trabalho político à esquerda que atirem o sectarismo para o caixote do lixo da história. Se esse for o caminho, não é só a relação entre diversos partidos à esquerda que tem de ser repensada, a favor de uma maior capacidade de nos focarmos em resultados progressistas, mais do que em retóricas vanguardistas. É também a própria capacidade de cada partido de esquerda para melhorar os seus métodos de trabalho (interno e externo) para dar mais produtividade à diversidade – única maneira de se ser verdadeiramente um partido do povo: do povo na sua diversidade.
 
Nesta perspectiva, sem querer fazer de Ken Loach, nem das várias tendências “esquerdistas” do Labour, uns santinhos, o que se pode dizer é que é triste ver hoje um partido da grande família da social-democracia, do socialismo democrático e do trabalhismo a passar por mais um processo onde o divisionismo e as expulsões se tornaram um método político a que se recorre em vez do debate profícuo. Para não chegar aí, um partido democrático tem de evitar a todo o custo a diabolização de umas correntes pelas outras e tem de investir mais na construção do maior denominador comum em cada momento político concreto. Valorizar os partidos e a sua vida democrática é, cada vez mais, decisivo para a saúde da própria democracia e para podermos continuar a obter resultados no progresso social, nas liberdades e nos direitos humanos. 
 
 
Porfírio Silva, 16 de Agosto de 2021
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