20.6.20

Tem a filosofia alguma coisa a ver com a pandemia? Utilitarismo e imunidade de rebanho



As conceções filosóficas sobre a política e a moral podem influenciar as concretas orientações das políticas públicas. Não se pense que isto diz respeito apenas à influência das ideias explicitamente políticas, no sentido mais imediato do termo, sobre as escolhas governamentais: parece evidente que o presidente chinês, o presidente americano e o presidente francês respondem à pandemia com base em conceções diferentes da ação política e que isso dita decisões distintas entre si. Mas há mais: conceções mais latas sobre a vida em sociedade, conceções de natureza filosófica raramente explicitadas no debate político corrente, podem influenciar a orientação geral das escolhas de políticas públicas. Será particularmente importante considerar esta influência em grandes encruzilhadas da vida coletiva, como é a presente pandemia.

Neste texto vamos considerar o que pode ter sido a influência do paradigma utilitarista nas decisões tomadas por alguns países europeus quanto à estratégia para enfrentar a pandemia de Covid-19. Primeiro, investimos alguns parágrafos a introduzir algumas noções básicas sobre utilitarismo. Assim preparados, trataremos da nossa questão concreta.

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O filósofo Pedro Galvão assinala três traços essenciais do utilitarismo. Primeiro, o utilitarista adota um consequencialismo: para avaliar o que é ou não melhor (comparando, digamos, atos ou práticas), devemos considerar apenas as respetivas consequências. Segundo, para o utilitarista, o único valor a promover é o bem-estar. Terceiro, o utilitarista considera que a avaliação das consequências de um ato ou prática se realiza de forma agregada, considerando a totalidade das consequências verificadas para todos os indivíduos abrangidos no raciocínio, sendo insensível à distribuição do bem-estar. Vamos observar um pouco mais de perto cada um destes traços do utilitarismo.

Comecemos pelo último dos traços mencionados, o cálculo agregado das consequências. Para o utilitarismo, o que importa considerar é o somatório do bem-estar (positivo ou negativo) que determinado estado do mundo provoca em cada indivíduo de um dado coletivo que seja o nosso universo em consideração. Se seguirmos um determinado curso de ação e medirmos numa escala o valor daquilo que consideramos o bem-estar dos indivíduos, calculamos que esse curso de ação vai provocar um certo aumento do bem-estar de um certo número de indivíduos e uma diminuição do bem-estar de outros indivíduos. Para saber qual o estado do mundo que devemos querer atingir, temos de somar a intensidade do aumento de bem-estar em cada um dos indivíduos que beneficiarão desse efeito e a intensidade de diminuição do bem-estar em cada dos indivíduos que sentirão um efeito adverso. Depois, devemos optar por seguir o rumo que nos leve ao maior aumento agregado de bem-estar. Este traço do utilitarismo é, à primeira vista, interessante – especialmente do ponto de vista das políticas públicas: privilegia a avaliação do impacto das opções tomadas no bem-estar agregado de todos os indivíduos, contrariando qualquer orientação geral das políticas públicas para satisfazer apenas certos grupos, contrariando políticas públicas orientadas por preconceitos infundados ou avessas a uma avaliação das suas consequências (exageradamente ideológicas, diria).

Quanto ao consequencialismo, o primeiro dos traços elencados acima, consistente em avaliar uma linha de ação apenas pelas consequências que ela arrasta quanto ao estado do mundo. Uma forma de entender o que está em causa no consequencialismo do utilitarismo é comparar este com o deontologismo. Numa perspetiva de deontologia, há restrições gerais aos nossos atos, independentemente de qualquer cálculo das suas consequências: matar ou torturar outra pessoa é inadmissível, mesmo que isso pudesse evitar outro mal (não posso torturar uma pessoa com a justificação de que isso vai evitar que várias outras pessoas sejam torturadas). Não posso fazer cálculos sobre o prazer que promovo ou a dor que evito com a tortura desta pessoa: simplesmente não posso torturar. Como não posso matar uma pessoa para salvar cinco pessoas doentes com transplante dos órgãos do sacrificado. A deontologia também prevê obrigações especiais, que, em vez de dizerem respeito aos efeitos agregados no coletivo dos indivíduos, dizem respeito, de forma diferenciada, a certos indivíduos com quem temos certas relações: por exemplo, a obrigação dos pais cuidarem dos seus filhos (e não, indiferentemente, de quaisquer filhos). Uma perspetiva deontológica também contempla prerrogativas: não somos obrigados a tudo o que pudesse ser benéfico para os outros, porque há limites aos que temos de sofrer para obter boas consequências gerais.

As dificuldades resultantes desta comparação entre consequencialismo e deontologismo podem encontrar resposta numa variante de consequencialismo: o consequencialismo das regras. Não devemos racionar perante cada decisão particular que leve a um determinado ato, devemos raciocinar face a conjuntos de regras, as quais depois orientam os atos particulares. São esses códigos morais, como um todo, que devem ser avaliados pelas suas consequências. Compatibiliza-se, assim, um certo consequencialismo com um certo deontologismo. Resta saber se o impulso inicial do utilitarismo ainda de salva nesta versão.

Claro que, para entender para onde vai exatamente um utilitarista, importa conhecer a sua conceção de bem-estar – uma vez que o traço essencial desse paradigma que falta considerar é, precisamente, que, para o utilitarista, o único valor a promover é o bem-estar. Diga-se, de imediato, que é errado pretender que o utilitarista só considera a promoção dos ganhos materiais Os utilitaristas clássicos eram hedonistas: o que queremos é ter experiências de prazer e evitar experiências de dor. Autores como Robert Nozick mostraram uma enorme fragilidade deste hedonismo: quereríamos estar ligados a uma máquina de realidade virtual para ter constantes experiências prazerosas, embora totalmente irrelevantes para o mundo real? Outros utilitaristas sofisticaram mais a conceção de bem-estar, como satisfação de preferências, cabendo muitas coisas nas preferências dos indivíduos, incluindo a virtude e o conhecimento. Cruzando aqui dois tópicos, o que teríamos se a maioria dos indivíduos numa sociedade tivesse preferências com consequências terríveis, por exemplo, a preferência por exterminar uma minoria? Quando os utilitaristas começam a modificar a matriz básica do paradigma para bloquear esses caminhos, na realidade o próprio paradigma utilitarista começa a desvanecer-se. Já para não mencionar quão irrealista seria pretender que somos em geral capazes de estabelecer uma lista de preferências e ordenar bem essas preferências (é altamente improvável que cada um de nós seja capaz de fazer uma lista de todas as coisas a que podemos atribuir valor, dar a cada uma e a todas essas coisas um valor numa lista ordenada, quantificando as relações de preferência entre todas essas coisas – e seria altamente improvável, também, que todo esse exercício fosse estável).

Dado este enquadramento, podemos explicar-nos quanto ao que isto tem a ver com as estratégias de combate à pandemia.

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Vamos, agora, explorar o que consideramos a principal dificuldade da abordagem utilitarista aplicada ao mundo das decisões reais em contextos complexos. É o problema do cálculo das consequências. Se o utilitarismo decide em função das consequências futuras das linhas de ação disponíveis, como se calculam essas consequências? Essa dificuldade é central para apreciar a importância desta questão no atual contexto pandémico. Diferentes países seguiram diferentes estratégias de resposta à pandemia. Como é que podemos calcular, no momento da decisão, as consequências futuras, para o conjunto dos indivíduos a considerar, em termos de prazer e de dor? Esta questão é interessante na apreciação do utilitarismo, porque os utilitaristas clássicos viam mais a questão do ponto de vista das políticas públicas do que do ponto de vista das práticas morais dos indivíduos. Tratar-se-ia de ponderar os efeitos das políticas no coletivo dos indivíduos, considerando todos os indivíduos em vez de privilegiar este ou aquele grupo, esta ou aquela preferência.

Em texto anterior, intitulado “Epistemologia do social em tempos de Covid-19”, discutimos a estratégia inicial do Reino Unido face à pandemia. Essa estratégia, embora tivesse uma sobreposição parcial com a estratégia de outros países europeus (Portugal incluído), continha um elemento distintivo: orientava-se para conseguir atingir a imunidade de rebanho (ou imunidade de grupo). Como? Deixando que o vírus se espalhasse na população. Enquanto vários países (entre os quais Portugal) partiram para estratégias fortes de contenção do coronavírus, incluindo encerramento de escolas e proibição de ajuntamentos, o Reino Unido começou por evitar quaisquer medidas desse género. Só no dia 12 de março, quando Portugal já estava a caminho de tentar fechar a maioria da população em casa, ainda antes de ter sequer uma vítima mortal, é que o Reino Unido aconselhou as pessoas a ficarem em casa se tivessem tosse. O objetivo dessa estratégia era que os recuperados ganhassem imunidade e passassem a funcionar como barreira à posterior contaminação. Entretanto, o sistema de saúde trataria de se concentrar em cuidar dos mais vulneráveis. O ponto estava em que, com a imunidade de grupo, a imunidade de uns protege outros de serem atingidos, ao diminuir as vias de transmissão.

A estratégia da imunidade de grupo, que foi seguida inicialmente também por outros países, acabou por ser abandonada, porque os sacrifícios que ela consentiria (em vidas humanas e doença) eram insuportáveis, não se aceitando que fossem justificados por uma imunidade de grupo que até poderia não acontecer (por exemplo, porque se concluiu não ser certo que um recuperado estava livre de voltar a ser infetado).

Ora, e este é o ponto da questão que aqui propomos, há quem tenha indicado que a estratégia dos países que começaram por tentar a via da imunidade de grupo foi uma estratégia inspirada numa visão utilitarista das políticas públicas, no sentido descrito acima. Põe-se assim a questão: alguns sofreriam a doença, poderiam até morrer, o que seria negativo para o seu bem-estar, mas muitos mais beneficiariam da proteção fornecida pela imunidade de rebanho. Somando as perdas para alguns e os ganhos para muitos mais, valeria a pena seguir esse caminho.

Gerard Delanty, da School of Law, Politics and Sociology da Universidade de Sussex, no Reino Unido, propõe esta leitura. E faz mais: mostra como este cenário real indica fragilidades fundamentais para a aplicação do utilitarismo. O ponto que, para nós, é determinante no seu argumento é o seguinte: para conhecer as consequências dessa estratégia – para conhecer as consequências de qualquer estratégia e comparar essas consequências – era preciso ter um conhecimento do vírus e da dinâmica da pandemia que não estava (e não está) disponível. Muitas vezes é impossível ter, a tempo, o conhecimento necessário para tomar decisões inspiradas pela estratégia do utilitarismo (calcular pelas consequências). Foi o caso. Não perceber isso, e ter um quadro filosófico utilitarista, ditou o fracasso da estratégia inicial do Reino Unido e o seu abandono.

Já agora: continuamos basicamente a enfrentar a mesma incerteza. Ainda há muita coisa que não sabemos acerca do vírus e a dinâmica da pandemia. Portanto, ainda não é possível saber se, afinal, a imunidade de rebanho não teria, mesmo, sido a melhor estratégia. Podemos vir, mais à frente, a concluir isso – a concluir que as estratégias de confinamento são erradas a longo prazo. De qualquer modo, mesmo isso não afeta a nossa conclusão principal: o consequencialismo, típico do utilitarismo, falha completamente em situações de grande incerteza, de conhecimento incompleto.

Outra questão seria saber se estamos, geralmente, em modo de incerteza. Na complexidade do mundo real em que vivemos, é razoável estimar que estaremos, sempre que se trate de decidir que caminho tomar em grandes encruzilhadas, em modo de incerteza. E, aí, o utilitarismo falha como orientação. Porque a incerteza séria atrapalha decisivamente o cálculo das consequências.


(Referências. A menção a Pedro Galvão remete para o seu capítulo “Utilitarismo” na obra coletiva, organizada por João Cardoso Rosas, “Manual de Filosofia Política”, Almedina, Coimbra, 2013, 2ª edição, revista e aumentada. A menção a Gerard Delanty remete para o seu texto “Six political philosophies in search of a virus: Critical perspectives on the coronavirus pandemic”, na London School of Economics Europe in Question Series, Paper nº 156, de Maio 2020.)





Porfírio Silva, 20 de Junho de 2020
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