17.11.19

Carta aberta a David Justino sobre retenções e sobre responsabilidade em política


Caro Professor David Justino,

1. O CDS e o PSD fizeram, nos últimos dias, um ensaio de dramatização política de uma linha do programa do Governo onde se inscreve o objectivo de “criar um plano de acção de não retenção no ensino básico, trabalhando de forma intensiva e diferenciada com os alunos que revelem mais dificuldades.” Mesmo depois de responsáveis governamentais, incluindo o Ministro da Educação, terem dito muito claramente que a linha de rumo não passa por “passagens administrativas”, e de o Primeiro-Ministro ter reafirmado esses esclarecimentos no debate quinzenal na Assembleia da República, o CDS e o PSD insistem na tecla do facilitismo e na acusação de que o Governo quer que os alunos passem quer saibam quer não saibam.

Isto é: o PSD e o CDS continuam incapazes de entender que facilitismo é desistirmos dos alunos; facilitismo é resignarmo-nos a uma escola que serve aqueles que aprenderiam de qualquer maneira, porque têm uma sólida retaguarda familiar e cultural proporcionada pelas suas condições socioeconómicas; facilitismo é a escola abandonar aqueles que mais precisam dela.

Na realidade, o PSD e o CDS estão a repetir o número de alarmismo e fantasia que já nos proporcionaram há quatro anos, no início da anterior legislatura: quando acabámos com os exames precoces (4º e 6º anos), que não existiam em praticamente nenhum país civilizado, a direita dizia que íamos acabar com os exames todos, com o do 9º ano e, quem sabe, também com o do 12º ano. Não era verdade, mas era um número político destinado a distorcer o que estava a ser feito e a levar o debate para longe da realidade. O PSD e o CDS voltaram agora ao mesmo processo, talvez não devesse ser motivo de espanto – mas, confesso, e este é o motivo desta carta a si dirigida, ainda me espanto com o papel que o David Justino aceita desempenhar nesta peça toda. Explicarei, no que segue, as razões do meu espanto – e acrescentarei um apelo.

2. A verdade é que o país tem um problema que precisa de ser enfrentado. Como mostram os dados, temos uma das mais elevadas taxas de retenção da Europa. Como medida pedagógica, os estudos mostram que a retenção é largamente ineficaz: na esmagadora maioria dos casos não resolve as dificuldades de aprendizagem e, demasiadas vezes, conduz ao abandono escolar, piorando o que era suposto remediar. Além disso, a retenção é uma medida socialmente enviesada, porque atinge principalmente os alunos de famílias de estratos socioeconómicos mais carenciados. Face a isto, há quem trabalhe para resolver o problema e há quem apenas se dedique a tentar prejudicar os passos dados para avançar, não hesitando em recorrer à demagogia em vez de pensar no futuro das nossas crianças e jovens.

No PS, sabemos de que lado estamos: o Governo do PS decidiu enfrentar a situação. Esse trabalho é de continuidade da legislatura anterior. Menciono, por exemplo: o Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar; o apoio tutorial específico aos alunos do 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico que ao longo do seu percurso escolar acumulem duas ou mais retenções (para acompanhamento complementar de pequenos grupos de alunos, apoiando a criação de hábitos de trabalho apropriados a melhores aprendizagens, promovendo o desenvolvimento de competências pessoais e sociais, envolvendo positivamente as famílias no processo de aprendizagem, articulando com os demais docentes a resposta às dificuldades de cada aluno e os respectivos planos de trabalho); o Projecto-Piloto de Inovação Pedagógica, desenvolvido durante três anos por sete Agrupamentos de Escolas, com o objectivo de dar-lhes mais autonomia para tomarem decisões apropriadas à sua realidade concreta, em vários planos, designadamente na constituição das turmas e na sua carga horária, no calendário escolar, na distribuição de serviço docente e na gestão do crédito horário, na gestão da matriz curricular, no apoio ao estudo no 1º ciclo, nas respostas diferenciadas para alunos consoante as necessidades individuais.

Estas diferentes linhas de acção foram avaliadas. A decisão de prosseguir com base nos resultados da acção iniciada pelo Governo no anterior mandato resulta das avaliações, que mostraram que o rumo era correcto e que devia ser prosseguido. Por exemplo, no relatório da avaliação externa do Projecto-Piloto de Inovação Pedagógica, pode ler-se: “Podemos concluir que há ganhos assinaláveis no combate à desistência e retenção escolares, sendo que na grande maioria dos contextos, a tendência aponta para a sustentabilidade destes resultados, associando-se aos mesmos a melhoria da qualidade das aprendizagens. Os Agrupamentos de Escolas que participaram no PPIP dão sinais claros de capacidade de se apropriarem do currículo e de o saberem gerir coerente e articuladamente, investindo na diversificação de práticas de ensino-aprendizagem e de avaliação, bem como envolvendo mais ativamente os alunos nesses processos. De assinalar, ainda, os evidentes benefícios no bem-estar de professores e alunos e o estreitamento das relações com os parceiros e com a comunidade em geral, decorrentes dos processos em que estão envolvidos de inovação e autonomia.”

Na realidade, o que nos propomos fazer nesta legislatura é continuar o rumo iniciado na legislatura anterior. Há razões para isso: o país obteve resultados. As taxas de retenção têm vindo a baixar, embora tenham de baixar mais (especialmente no Secundário, onde são particularmente elevadas). A taxa de abandono escolar precoce atingiu um mínimo histórico em 2018. Mas é preciso continuar o trabalho: aprofundar, melhorar e ampliar as estratégias e as medidas que deram bons resultados.

Será que o PSD e o CDS se querem pôr de fora deste esforço nacional? Seria trágico que, por oportunismo político, a oposição de direita ignorasse este desafio e apostasse na ignorância e no preconceito do “senso comum” avariado como obstáculo à acção determinada e guiada pelo que sabemos sobre estes fenómenos educativos.

3. Há razões para o questionar directamente sobre estas matérias, Professor David Justino. Foi Ministro da Educação, foi Presidente do Conselho Nacional de Educação, é hoje o primeiro vice-presidente do PSD. Tem, portanto, especiais responsabilidades pela forma como o seu partido entra nestes debates. E, em boa verdade, é de recear que a politiquice tenha prevalecido nesta circunstância. Há várias razões para esse receio. Vejamos.

Em primeiro lugar, o programa de não retenção já estava inscrito no programa eleitoral do PS, amplamente debatido e divulgado durante a campanha eleitoral. Se o PSD e o CDS achavam tão grave o que lá estava escrito, deviam tê-lo denunciado e dito em campanha eleitoral que se opunham, permitindo aos eleitores incluírem essa questão na sua decisão de voto. Não o fizeram. Ou só agora descobriram a importância da questão ou escolheram uma forma particularmente grave de distorção do debate político, escondendo dos eleitores uma matéria que consideram tão grave. Receio que só tenham focado agora esta matéria por um banal oportunismo, porque entenderam que dava momentaneamente jeito como bandeira de agitação.

Em segundo lugar, o que o PSD e o CDS criticam agora sobre a necessidade de não abusar do recurso à retenção não é novidade na acção desta equipa governativa, sendo de estranhar que agora se lembrem de gritar pelo lobo como se fosse coisa novidosa. Apenas para princípio de conversa: já o decreto-lei nº 55/2018, de 6 de Julho, assinado pelo actual Ministro da Educação e que estabelece o currículo dos ensinos básico e secundário e os princípios orientadores da avaliação das aprendizagens, determinava que, nos anos não terminais de ciclo, a retenção como medida pedagógica só deve ser tomada a título excepcional. Antes disso, desde 2016 que, por despacho, essa orientação estava reafirmada pelo anterior Governo do PS como linha a seguir. Digo “reafirmada” porque…

Em terceiro lugar, imagine-se, essa mesmíssima orientação já estava contida em legislação publicada pelo Governo de Passos Coelho, com o Ministro Crato: o Decreto-Lei 139/2012, de 5 de Julho, assinado por Passos e Crato, já previa esse carácter excepcional da retenção nos anos não terminais. Afinal, o PSD e o CDS, das três uma: ou se tornaram ainda mais retrógrados em matéria educativa (considerando facilitismo algo que o próprio Nuno Crato tinha legislado), ou legislaram de má-fé e não queriam que se aplicasse a legislação que os próprios produziram… ou não estudam as matérias e ignoram este curso dos acontecimentos – o que é grave, porque a educação merece menos amadorismo, menos improvisação e menos politiquice.

Tenho, portanto, de lhe perguntar, Professor David Justino: o primeiro vice-presidente do PSD não teria obrigação de garantir que o seu partido evita meter as matérias de política educativa nestes becos escuros da demagogia e do desconhecimento?

4. Contudo, Professor David Justino, há ainda outra razão para lhe dirigir esta carta aberta. É que seria de esperar, atendendo a públicas e solenes tomadas de posição suas, que fizesse tudo para evitar a deriva demagógica do seu partido nesta matéria da não retenção.

Como tivemos oportunidade de dizer, o nosso programa de não retenção não tem nada a ver com passagens administrativas, nem com passagens por decreto. Quem não sabe não passa, mas temos de fazer mais para que todos os alunos aprendam mais e melhor e, portanto, o chumbo seja evitado – até porque o chumbo não serve para nada e pode até conduzir o aluno para engrossar as fileiras do abandono. Há uma demonstração muito prática e directa disto que afirmo: nem o já referido Projeto-Piloto de Inovação Pedagógica, que deu autonomia reforçada a um conjunto de agrupamentos de escolas para terem melhores condições para trabalhar em prol da eliminação da retenção, conduziu a uma eliminação absoluta das retenções nas escolas envolvidas. Isto mostra que não está aqui em jogo nada que tenha a ver com passagens administrativas. Tem de fazer-se um esforço maior para o sucesso, mas não se proíbe a retenção. Face a tudo isto, Professor David Justino, julgámos, pelo seu histórico, que estaria de acordo connosco. E ficámos desagradavelmente surpreendidos pela posição do seu partido.

David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação pronunciou-se várias vezes sobre a questão da retenção. Durante o seu mandato, foi aprovada a Recomendação sobre Retenção Escolar no Ensino Básico e Secundário, a qual, por exemplo, considerava que a frequência com que se recorria à repetência não se coadunava com a determinação legal de que essa medida devia ter um carácter excepcional. Claro, isso podia ter acontecido contra a sua vontade e contra o seu voto. Terá sido o caso? Mas, independentemente disso, David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação pronunciou-se sobre a questão na primeira pessoa, de forma formal e enfática. Lembro aqui apenas uma dessas ocasiões.

Na introdução ao relatório “Estado da Educação 2014”, publicado em 2015, David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação identifica “o problema da retenção e do insucesso escolares” como “destruição sistemática de capital humano”, como “reprodução incessante das desigualdades educativas”, como “um problema de ineficiência do sistema educativo” e “um problema de iniquidade pouco compatível com o desenvolvimento social”. Diz, ainda, que se trata de um dos problemas “mais lesivos do desenvolvimento económico, social e cultural dos Portugueses”.

No mesmo texto, David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação acrescenta que “muitas das críticas que foram formuladas à Recomendação do CNE” [sobre Retenção] “expressam de forma mais evidente que existe mesmo uma ‘cultura de retenção” e que a aceitação do princípio da selectividade está profundamente impregnada em alguns sectores da sociedade portuguesa.”

Estamos inteiramente de acordo com estas formulações de David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação sobre o problema da retenção.

Mas, aqui, temos de perguntar: onde está este David Justino? Escondido? Arrependido? Vergado à sua condição de primeiro vice-presidente do PSD? Incapaz de lutar, na política partidária, pelas suas ideias e convicções?

Seja lá como for, temos de fazer-lhe um apelo, Professor David Justino: é importante, para a educação e para a justiça social que precisa tanto da escola pública, que não ignore neste momento as suas responsabilidades. David Justino vice-presidente do PSD tem o dever de explicar ao presidente do PSD tudo aquilo que defendeu enquanto presidente do Conselho Nacional de Educação sobre o problema da retenção, para evitar a demagogia desinformada que o Dr. Rui Rio trouxe para o debate público sobre o sucesso escolar. David Justino vice-presidente do PSD tem a responsabilidade de exercer uma forte pedagogia sobre o Presidente do PSD para libertar o Dr. Rui Rio dessa “cultura de retenção” que acarreta todos os perigos que identificou no passado e que, desgraçadamente, infectou agora o presidente do seu partido.

Este é um daqueles momentos da vida pública que definem o que vale um político. Professor David Justino, não deixe de mostrar ao país quem é, a propósito de questão tão relevante para a construção de uma sociedade decente. Este é, sem sombra de dúvida, um apelo à sua responsabilidade cidadã – especialmente relevante sendo hoje o primeiro vice-presidente do partido com a segunda maior representação parlamentar saída das recentes eleições.


Porfírio Silva, 17 de Novembro de 2019

Print Friendly and PDF