9.11.15

A política do "natural".



Há adversários do acordo à esquerda que são razoáveis: argumentam, explicam o que acham que pode correr mal, indicam o que poderia ser preferível numa solução inclinada à direita, apontam incertezas, discutem o conteúdo do acordo, e por aí adiante. Isso é a democracia a funcionar. Ainda bem que isso existe. Não é o meu caminho, mas ainda bem que há outras visões do caminho.

Também há apoiantes do acordo à esquerda que são irrazoáveis, fazendo de conta que o caminho não tem dificuldades, pedindo para amanhã este mundo e o outro (como se a esquerda fizesse milagres), desatendendo os desencontros entre culturas políticas diferentes e os escolhos que surgirão por falta de hábito de colaboração política entre PS, PCP e BE. O tempo fará que todos compreendamos melhor as dificuldades que aí vêm, tal como também o tempo nos mostrará que este acordo tem potencialidades e benefícios para o país que nem nós suspeitávamos. Aprender é bom.

Mas há um tipo de irrazoabilidade, vinda de alguns acérrimos opositores do acordo à esquerda, que me parece particularmente aberrante. Traduz-se na ideia de que este acordo é "contra-natura". Certos partidos teriam uma "natureza boa" (democrática, dialogante, leal) e outros partidos teriam uma "natureza má" (antidemocrática, sectária, desleal). Misturar essas "naturezas" seria algo tão detestável ou impraticável como fazer o leão copular com a libelinha. Alguns, mais do tipo missionário a pregar aos incréus, talvez pretendam mesmo que misturar "naturezas" partidárias "incompatíveis" será pecaminoso.

Claro que este "argumento" sobre as "naturezas" dos partidos nos convidaria logo a carrear factos simples para impugnar a suposta "bondade" de alguns personagens dos partidos supostamente bons. Mas nem vou por aí.

O que quero mesmo dizer é isto: a marca distintiva das sociedades humanas - as instituições - distingue-se precisamente por não serem "natureza". Penso que foi Geoffrey M. Hodgson a escrever que percebemos que alguma coisa é institucional, em vez de ser natural, quando as sociedades encontraram maneiras diferentes para implementar a mesma função. Por exemplo, há diferentes sistemas monetários para implementar a função moeda como equivalente geral de trocas - e a libra não é intrinsecamente natural enquanto o euro seria contra-natura, por exemplo. Isto é: é característico do tipo de liberdade, ou margem de manobra, que as instituições trouxeram às sociedades humanas, que as nossas opções não estejam fixadas por uma "natureza", estando disponíveis caminhos alternativos (diferentes entre si) que nos cabe construir e escolher.

Ora, tentar fixar (ou limitar) o comportamento de uma organização humana com o recurso à ideia de "natureza" dessa organização mostra uma radical incompreensão da característica institucional da nossa civilização e da liberdade que isso nos dá. Aliás, o discurso da "natureza" do partido X ou Y, e do carácter "contra-natura" de um acordo entre certos partidos, é, precisamente, uma tentativa de restringir a liberdade: a liberdade de escolha que as instituições democráticas nos dão, a liberdade de fazermos caminhos e de não nos limitarmos ao que estava dado. Isto é o que alguns não percebem, quando confundem história humana com história natural.