10.9.21

Jorge Sampaio, o anti-herói

Não é possível, assim de repente, ainda no dia da sua morte, falar de todas as qualidades características de Jorge Sampaio. Até porque irrita a eterna repetição de chavões despropositados, como chamar hesitante a um homem que fez toda a vida aquilo que Sampaio fez, e por isso não seria suportável querer aqui fazer uma contabilidade, fazer a contabilidade daquele Homem, daquele Cidadão.
 
Contudo, não posso deixar de lhe fazer uma qualificação. Num mundo onde tantos acham que são os heróis disto e daquilo, Jorge Sampaio foi o anti-herói. Fez tanta coisa que outros não souberam fazer e esteve sempre na vida como se essas suas responsabilidades fossem normais - mesmo quando sofria com o peso da responsabilidade de fazer o que devia ser feito. O que outros fazem com o cheiro da glória, Jorge Sampaio fazia porque entendia que lhe cabia fazer. É por ser o anti-herói que Jorge Sampaio é tão profundamente humano, atento aos humanos. Atento à humanidade como povo do planeta Terra - sempre atento, interessado e conhecedor das realidades do mundo, desde a geoestratégia ao sofrimento dos que não podem ficar na sua terra - e atento à humanidade da pessoa mais humilde que estava a seu lado. 
 
O pequeno episódio que aqui conto é apenas um exemplo do que digo.
 
Jorge Sampaio avançou, com extrema lucidez e coragem política, para uma candidatura à Câmara de Lisboa que, sob a sua liderança, juntava socialistas e comunistas. Nesse ano de 1989, cai o Muro de Berlim, um dos momentos mais marcantes da evolução a Leste que tinha sido espoletada pela liderança de Gorbatchev na União Soviética. Nada havia de contraditório aí: o nosso apego ao socialismo democrático não estava em causa, a nossa pertença à esquerda não merecia dúvidas, a Coligação Por Lisboa não diluía a identidade de cada um e não era trocada por nenhum silêncio ou qualquer ambiguidade. No entanto, a direita (PSD) entendeu que podia tentar atrapalhar a candidatura de Jorge Sampaio com um debate parlamentar sobre a Europa de Leste, tentando estilhaçar as autárquicas com um desentendimento entre PS e PCP sobre o Leste. 
 
O debate fez-se, mas saiu-lhes o tiro pela culatra. Até o Ministro dos Negócios Estrangeiros, João de Deus Pinheiro, se recusou a dar para aquela cena triste: fez um discurso enorme, 100 páginas dactilografadas, mas que era mais um relatório diplomático do que uma peça de combate político. A bancada do PSD, onde pontificava Pacheco Pereira, mobilizou-se: a imprensa da época diz que todos os vice-presidentes do grupo parlamentar fizeram pedidos de esclarecimento a Jorge Sampaio, que, sendo secretário-geral do partido, fez a intervenção de fundo pelo PS. Adriano Moreira, então líder do CDS, fez um discurso de grande seriedade, ignorando qualquer matéria que pudesse ir no sentido pretendido pelo PSD (manipular para política interna e disputa autárquica um assunto da maior importância para a humanidade) e, no fim, foi cumprimentar Jorge Sampaio pela sua prestação. O PCP defendeu-se como podia, estando, na altura, em fase de reconhecer que nem tudo tinha corrido bem no "socialismo real". Jorge Sampaio, pelo seu lado, fez um discurso onde não fugiu a questão nenhuma, desassombrado, não esquecendo nenhum dos valores do socialismo democrático, ao mesmo tempo que reconhecia o tipo de diálogo que era preciso ter com os comunistas. Foi uma grande tarde parlamentar. O Diário de Lisboa relatou uma frase de Jorge Sampaio, numa resposta, onde fazia um retrato claríssimo da pequenez do PSD naquele debate: "Para os senhores deputados da Maioria, a cimeira Bush-Gorbatchov, a cimeira da Nato, há dois dias, e a cimeira da Comunidade, daqui a quatro, não interessam para este debate: o que vos interessa é medir o Terreiro do Paço e a Rua da Betesga". 
 
Na altura, eu era um rapaz, ainda militante da Juventude Socialista, e era (pro bono) um dos assessores do secretário-geral Jorge Sampaio para as questões internacionais, cabendo-me, precisamente, o dossier das relações Leste-Oeste. Estivemos, por isso, em condições de ajudar a construir uma posição de acolhimento favorável dos socialistas portugueses às reformas democráticas da perestroika, quando a desconfiança herdada da guerra fria ainda era predominante. O Secretário Internacional do PS era o Nuno Brederode Santos, que tinha assumido essa responsabilidade quando Jorge Sampaio teve de as deixar para assumir a liderança. Coube, portanto, a Brederode e a mim preparar o rascunho daquele discurso, discurso finalmente proferido no debate que teve lugar a 5 de Dezembro de 1989.
 
Assisti ao debate parlamentar nas galerias do público e, no fim, o deputado Jorge Sampaio, líder do PS, saiu do hemiciclo e foi ter comigo à galeria do público para me agradecer a colaboração e para me oferecer o original da sua intervenção, onde ele tinha riscado, corrigido, acrescentado, sobre o papel que o Nuno e eu tínhamos preparado. Não tem importância nenhuma, mas tem: Jorge Sampaio tinha um verdadeiro respeito por todas as pessoas, designadamente por aquelas que trabalhavam com ele, e olhava para as pessoas como pessoas, nunca como peões de um jogo. Muitos cidadãos deste país puderam testemunhar isso. Eu testemunho-o aqui, com o pequeno episódio relatado: no mesmo acto, grande visão política, um olhar atento e lúcido sobre o mundo na sua globalidade, coragem e desassombro para afirmar valores e ideias e, ao mesmo tempo, nunca esquecer as pessoas concretas que encontrava na sua vida. Por mais insignificantes que fossem no grande jogo, que era a minha posição.
 
Se não fosse a colaboração com Jorge Sampaio, nunca por mérito próprio teria tido oportunidade de me sentar à mesa com Willy Brandt, Jacques Delors ou Go Brundtland, mas tenho muito mais prazer em continuar a ter comigo o original daquele discurso de Jorge Sampaio, com anotações da sua mão, que, hoje pela primeira vez, deixo ver em público (clicando aqui). (A versão limpa desse texto aparece em A Festa de um Sonho, dado à estampa pela Editorial Inquérito em 1991.)
 
 O que Jorge Sampaio me inspira: não vou parar na tristeza, vou alimentar-me no exemplo. O exemplo do cidadão, anti-herói, respeitador de cada pessoa.
 
(Segue-se imagem da primeira página do manuscrito do discurso referido no texto.) 


 
 Porfírio Silva, 10 de Setembro de 2021
Print Friendly and PDF