16.1.20

Os socialistas, o futuro do trabalho e os desafios do sindicalismo

15:16




A Concelhia de Aveiro de Partido Socialista, por intermédio do seu presidente Manuel Oliveira de Sousa, encarregou-me de organizar um debate que acabou por se intitular “Os socialistas, o futuro do trabalho e os desafios do sindicalismo”. Teve lugar no sábado, 11 de janeiro de 2020.
A apresentação pública da iniciativa continha a seguinte formulação: “Um debate entre socialistas sobre a importância do mundo do trabalho, sobre os desafios colocados pelas novas realidades (por exemplo, a economia das plataformas digitais) e, também, sobre os novos formatos sindicais (desde aqueles que nunca investiram seriamente na negociação com vontade de fazer acordos, até aos sindicatos de última da hora que servem fins políticos imediatos ou atuam sem uma perspetiva global da sociedade). E, claro, sobre o lugar do mundo do trabalho e do sindicalismo no Partido Socialista.”
Animaram o debate os seguintes camaradas, dirigentes sindicais integrados nas duas centrais sindicais portuguesas: Carlos Silva, Secretário-Geral da UGT e Presidente da Tendência Sindical Socialista; Carlos Trindade, Secretário-Geral da Corrente Sindical Socialista da CGTP; Fernando Gomes, da Corrente Sindical Socialista da CGTP; Álvaro Bem, da Tendência Sindical Socialista da UGT.
Coube-me ser o moderador da sessão e, nessa função, produzi uma pequena intervenção inicial. Deixo, de seguida, o texto que serviu de base ao que pronunciei nessa ocasião.

***


Os socialistas, o futuro do trabalho e os desafios do sindicalismo

1. O nosso espaço político, do socialismo democrático, da social-democracia e do trabalhismo, nasceu ligado às classes trabalhadoras e à luta pela melhoria das suas condições de vida e contra a exploração da sua força de trabalho.
Em alguns casos, o partido era mesmo o partido dos sindicatos. Entretanto, historicamente, essa ligação umbilical, onde era orgânica, quebrou-se – como aconteceu no Reino Unido, onde esse deslaçamento orgânico foi visto como uma necessidade para o Labour fazer chegar a sua mensagem mais diretamente ao conjunto da população e, por conseguinte, chegar ao poder. Fora do nosso espaço político, essa relação entre sindicatos e partidos políticos foi tradicionalmente conflitual em alguns quadrantes. Por exemplo, sempre houve, mesmo em Portugal, um sindicalismo antipartidos e antipolítica (como o anarco-sindicalismo ou o sindicalismo revolucionário), que não deixa de espelhar uma mais geral conflitualidade (às vezes produtiva) entre socialistas democráticos e as correntes libertárias. O deslaçamento das relações entre partidos do socialismo democrático e sindicatos também foi afetado pela crise da ideia da luta de classes como mecanismo básico da dinâmica social, enfraquecendo a identificação de partidos da classe operária a favor de partidos autoidentificados como interclassistas – embora, há que reconhecer, isso possa ter levado alguns sectores a perder de vista a especificidade dos problemas próprios do mundo do trabalho subordinado.

2. Este contexto geral também é pertinente para Portugal, mas, no caso do nosso país, a questão sindical cruza-se de uma maneira específica com a questão política mais global. O PS é o espaço político privilegiado para uma reflexão sobre os novos desafios do mundo trabalho e do sindicalismo precisamente por termos no nosso património histórico a luta pela liberdade sindical como parte da liberdade inteira. A luta contra a unicidade sindical foi, após o 25 de Abril de 1974, o primeiro combate duro contra aqueles inimigos da democracia pluralista que se albergavam em partidos de esquerda e à sombra de uma ideia de revolução – e essa luta pela liberdade sindical foi liderada e levada à vitória pelo Partido Socialista. Quando travámos esse combate contra a unicidade sindical sabíamos que essa via de restrição da liberdade sindical fazia parte, no “socialismo real” a Leste, de um formato que esmagava todas as liberdades democráticas: aquilo a que chamavam liberdades burguesas ou “meramente formais”. E, consequentemente, os sindicalistas socialistas envolveram-se na prática do pluralismo sindical, com a criação da UGT. Isso não prejudicou o pluralismo dentro do partido, hoje plasmado na existência e na convivência de uma Tendência Sindical Socialista da UGT e de uma Corrente Sindical Socialista da CGTP, acolhendo socialistas com diferentes militâncias sindicais. E, comum aos sindicalistas socialistas de ambas as linhas, está o facto de que o PS não lhes dá orientações nem ter qualquer dirigismo em relação às suas opções sindicais.

3. De qualquer modo, é hoje inescapável que a história recente fez acumular tensões entre as estruturas partidárias e as estruturas sindicais: os anos da troika foram particularmente duros para os trabalhadores e o país ainda não retomou os indicadores sociais e económicos anteriores à crise de 2008, a Grande Recessão que só a direita portuguesa julga que se circunscreveu a Portugal. Essas marcas não foram ainda completamente recuperadas e pressionam a ação sindical e a ação governativa em tensão. Essa tensão é mais difícil de gerir quando o PS é o partido de governo e segue uma linha especialmente exigente no que tange à responsabilidade orçamental.

4. Reconhecido este enquadramento, e orgulhosos de sermos o único partido político português onde se pode fazer este debate aberto, temos de colocar o que aprendemos com a história ao serviço de uma resposta que temos de construir aos enormes desafios que enfrentam hoje os trabalhadores organizados e os socialistas. Penso, designadamente, na economia globalizada das plataformas digitais e na ameaça que ela representa de desregulação selvagem das relações laborais, contornando a própria soberania nacional e desafiando o Estado de Direito, ameaçando direitos fundamentais.
E penso, também, na fragmentação do espaço público, que afeta quer a representação parlamentar quer a representação sindical, com novas organizações por vezes mascaradas de sindicatos, mas com agendas políticas imediatistas, por vezes agressivamente antidemocráticas e desligadas de perspetivas de solidariedade social mais amplas. Essa fragmentação, acompanhada de radicalização, mostra-se, por vezes, capaz de desgastar o sindicalismo de concertação e de procura de acordos, alimentando estratégias de confronto e de rutura que enfraquecem as instituições democráticas e as instituições sindicais. O sindicalismo que procura melhorar as condições de vida dos trabalhadores através da negociação, e de acordos, tem dificuldades acrescidas neste ambiente político e social.

5. Neste quadro, o que se constata, por cá, é uma crise simultânea dos dois modelos tradicionais de relação entre partidos e sindicatos. O modelo de relação entre o partido dos comunistas e os sindicalistas comunistas, típico do “centralismo democrático”, viu um pico de tensão com o secretário-geral da FENPROF a criticar em público o PCP sobre a “crise da carreira docente”. É o “modelo do controlo” a sofrer tensões quando sindicatos tradicionais da CGTP se sentem pressionados por pequenos sindicatos populistas e respondem tomando para si a radicalização prometida pelos emergentes anti-institucionais, procurando, ao roubar o estilo, roubar o sucesso que o estilo esperava garantir. Com a dificuldade que tem um partido das instituições, como é o PCP, em alinhar nessa radicalização – especialmente quando é parceiro parlamentar da governação, como se assumia na altura. Já o “modelo de autonomia”, que caracteriza a relação entre os sindicalistas socialistas e o seu partido, também sofre tensões quando as responsabilidades governativas estão no mesmo campo político e separam os agentes partidariamente camaradas. Um mero indício dessa tensão é a ausência, na XIV legislatura, de qualquer sindicalista na bancada parlamentar do PS (que não cabe aqui analisar, mas se constata e é uma situação historicamente rara).
Ora, a crise simultânea destes dois modos de relação entre partidos e sindicatos é, somando, uma crise das próprias instituições de regulação social no sentido amplo, porque enferrujam as relações entre diferentes modos de representação política e social que só podem manter uma dinâmica positiva, de ganhos mútuos, se souberem ser ao mesmo tempo capazes de competição e capazes de cooperação.

6. Tudo isto que fica dito só serve para constatar uma dificuldade (como podemos continuar a ser, também, um partido de trabalhadores, sem deixar de ser um partido de liberdade) e para incentivar a que usemos o nosso modelo de relação entre partido e sindicalistas (uma relação de camaradagem ideológica, governada pela autonomia das partes) para ganhar forças para enfrentar o ariete da desregulação laboral global, a maior ameaça presente ao nosso projeto comum de emancipação dos trabalhadores. De todos os trabalhadores, mesmo daqueles que alguns dos nossos adversários pintam de “amarelos”. E é este o ponto de partida que ofereço a este debate.



Porfírio Silva,16 de Janeiro de 2020

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8.1.20

Os dois Papas, o filme e a realidade




Aproveitando a hospitalidade que me deram de Domingo passado para Segunda-feira, vi "Os Dois Papas" na Netflix, serviço que não tenho em casa. Achei o filme curioso, mas acho abusiva a tentativa de colocar na boca do agora Papa Francisco uma suposta confissão de cumplicidade com a ditadura militar argentina. Não me conformo com modalidades acusativas que tendem a bloquear a capacidade do visado para apresentar o seu ponto de vista. O humor político serve muitas vezes para fazer verdadeiras críticas de que os visados não se podem defender, porque seria ridículo que argumentassem com o humorista; a ficção também pode ser uma forma ínvia de crítica, porque é sempre possível ridicularizar uma resposta séria a uma obra de ficção.

Mesmo assim - ou, talvez, por isso mesmo - entendi retomar aqui o tema da actuação de Jorge Mario Bergoglio durante a ditadura argentina. Digo retomar por ter lidado com esse tema, aqui no blogue, há já vários anos. E, também, porque vou limitar-me a relembrar materiais que aqui publiquei anteriormente.

Ainda em 2013, publiquei o texto A lista de Bergoglio - ou o Papa Francisco na ditadura argentina. Trata-se, basicamente, da recensão de um livro importante e bem documentado sobre a questão. Em modo secundário, apresento, nesse texto, já vai para sete anos, uma visão sobre o que se poderia esperar do então novo Papa Francisco. Mas, principalmente, documenta bem todas as razões que posso ter para desconfiar da tese que o filme "Os dois Papas" apresenta sobre Jorge Bergoglio.

Noutra ocasião, o Papa Francisco e a ditadura argentina, socorri-me da opinião e dos conhecimentos de Leonardo Boff, um teólogo brasileiro que personifica exemplarmente as correntes mais progressistas do catolicismo, tendo, no passado, pago um alto preço por essa condição face à intolerância dos mais conservadores na hierarquia.

Ainda escrevi noutras ocasiões sobre o homem que veio a ser o Papa Francisco, apesar de não ser franciscano. Mas os dois textos que menciono acima são suficientes, creio, para mostrar as razões que julgo ter para considerar abusiva a leitura que se tenta passar no filme "Os dois Papas" sobre o passado de Bergoglio.

Ficam à vossa consideração, clicando nos links:

- A lista de Bergoglio - ou o Papa Francisco na ditadura argentina ;

- o Papa Francisco e a ditadura argentina .


Porfírio Silva, 8 de Janeiro de 2020


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1.1.20

Luanda, Lisboa, Paraíso


"Luanda, Lisboa, Paraíso" é um romance de Djaimilia Pereira de Almeida. É uma história de família e de amizades, entre Angola e Portugal fora da estrada. Linguagem muito poética em certos momentos, muito veloz de narrativa noutros passos. É o primeiro livro que leio desta escritora e gostei.

Deixo-vos um excerto (início do capítulo XXVII) que, para mim, representa o rationale de toda a obra.


«Todos os Cartola de Sousa se viram adiados pela doença. Cartola pôs-se entre parêntesis por Glória e mudou de vida por causa do calcanhar do filho. Justina deixou os sonhos pela mãe, tornada dona de casa quando o pai e o irmão partiram para Lisboa. Aquiles foi atravessado pelo calcanhar malformado, que deixou Cartola às suas costas.
Não eram vítimas uns dos outros, nem ninguém tinha torcido os seus sonhos de propósito. No comboio de dívidas, resignação, fome, má vontade e zelo em que a família de cuidadores viajou quase um quarto de século, talvez dentro de cada doente houvesse um tirano e dentro de cada cuidador um carrasco.
Aquiles arrastava pelo pé o homem que o arrastava ao pescoço. A sua meninice tinha sido para o pai um martírio alegre e a sua juventude a negação de Cartola de que recomeçara a vida quando ela já lhe tinha passado ao lado. O seu calcanhar era a pena e a substância do velho, como tinha sido para ele um calvário tomar conta da mulher, prova que tinha aprendido a superar desejando tanto a morte dela como desejava as melhoras. Justina tanto fingia que Glória tinha morrido como daria a vida por ela. Tinha-se apaixonado pelo cuidado que lhe tinha para poder sobreviver a uma vida abortada. De Lisboa, em cartas e telefonemas, Cartola alimentava as esperanças da mulher como quem rega o canteiro de flores de uma sepultura. A mãe Glória vinha à tona empoleirada nos ombros deles e renascia sem se lembrar de que tinham morrido por sua causa.
Não estavam unidos pelo ressentimento, ainda que no fundo da dedicação de Cartola houvesse um bago de arroz bolorento, ainda que a entrega de Justina exalasse um cheiro a flores mortas no jarro, ainda que Aquiles nunca tenha perdoado ao pai o calcanhar que se habituou a encarar como um sinal.
Também não podiam entristecer-se muito com as reviravoltas em que o destino os tinha lançado. Não se sentiam agentes da desgraça. Glória caiu em virtude de um parto azarado. Justina ficou encravada no quarto da mãe, porque o irmão nasceu coxo. Aquiles nasceu assim. Cartola era o pai.
Tanto os doentes-cuidadores quanto os cuidadores-doentes foram-se tornando a cara chapada de alguém que nenhum deles conhecera, mas parecia ser a mãe de todos, tornados irmãos uns dos outros. Não era um antepassado defunto nem a criança que os pais não tinham chegado a ter. A milhares de quilómetros de distância, Justina parecia-se com Aquiles, igualmente sem brilho, embora viva. Os lábios de Cartola velho lembravam os da mulher na cama, muito depois de terem terminado os beijos deles às escuras, ambos sem forma definida, sem luz. Já não pareciam pessoas diferentes, individuadas, mas um mesmo ser feito de partes de outros, homem, mulher, rapaz, rapariga, um monstro em diferentes estádios da vida, situado em diferentes latitudes, alimentado de aspirações dissonantes.»

Djaimilia Pereira de Almeida, Luanda, Lisboa, Paraíso, Lisboa, Companhia das Letras, 2018



Porfírio Silva, 1 de Janeiro de 2020

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