Vamos dizer as coisas desta forma simples: para fazermos a nossa vida normal, com a capacidade de nos movermos das inúmeras maneiras que são necessárias aos mais pequenos gestos do nosso mais banal quotidiano, precisamos de que o cérebro e os nossos órgãos motores estejam devidamente conectados. É que o cérebro "comanda" os músculos que fazem mover as diferentes partes do nosso corpos. A espinal medula liga o cérebro à rede de nervos que, por sua vez ligados aos músculos por todo o corpo, fazem mover os membros. Na imagem seguinte temos uma representação geral das ligações do sistema nervoso central aos músculos.
(imagem de Gerard J. Tortora, Principles of Human Anatomy (oitava edição), 1999, John Willy & Sons Inc., New York, online no
Journal of Young Investigators )
Ora, certas lesões afectam essas ligações, provocando várias formas de paralisia (incapacidade de controlar - de "mandar mexer" - certas partes do corpo). A imagem seguinte mostra como pode variar a extensão dessa paralisia (até à mais generalizada, quando se diz que a pessoa está tetraplégica).
Até há algum tempo a estratégia padrão para tentar recuperar destas situações consistia em procurar reconstruir as ligações, reconstruir as fibras nervosas afectadas que tinham "cortado a ligação" entre diferentes partes do sistema. Como é sabido, isso não é possível em muitos casos.
Mas há alguns anos que vem sendo desenvolvida outra abordagem. Em linhas gerais essa abordagem consiste no seguinte: tentar ligar directamente os centros cerebrais responsáveis pelo controlo do movimento a algum dispositivo que implemente a acção motora, sem passar pelas ligações normais do sistema nervoso. Isto é: como a paralisia resulta de uma interrupção das ligações entre o "comando" e os "executores" do movimento, tenta-se ligar directamente o "comando" (zonas do cérebro que dirigem o movimento) a algum órgão (artificial) que execute o movimento desejado.
Esses estudos de "controlo mental" começaram por ser feitos em animais não humanos, nomeadamente roedores e macacos. No seu aspecto geral, tal como tem vindo a ser investigada, a ideia é muito simples: quando "pensamos" em fazer qualquer movimento com a mão (por exemplo), esse "pensar" consiste em (ou está associado" a) uma certa actividade do cérebro, em certas zonas específicas do cérebro; essa actividade normalmente comanda certas partes do corpo, sendo que esses comandos são sinais enviados através do sistema nervoso; se se conseguir captar esses sinais de comando e endereçá-los a um dispositivo artificial, o pensamento pode comandar directamente um mecanismo exterior ao corpo.
Bom, o cérebro não comanda esses mecanismos artificiais directamente, "sem fios": há um "interface cérebro-computador", o qual capta sinais de actividade cerebral na superfície da cabeça (para isso implantam-se eléctrodos como se se estivesse a fazer um exame conhecido como Electro-Encefalograma) e esses sinais são captados por um computador que os endereça à acção pretendida. Numa experiência com macacos, por exemplo, um macaco olha para o monitor de um computador e, ao "pensar" em fazer certa coisa com os objectos que vê no monitor, alcança mesmo o resultado em que está a pensar. Vejamos um pouco mais em pormenor.
Numa fase inicial, o macaco olha para dois objectos no monitor e pode fazer duas coisas com eles: aproximá-los ou afastá-los, aumentar ou diminuir o tamanho de cada um. Isso é feito actuando sobre um "joystick", movendo-o de um lado para outro ou apertando-o com mais ou menos força. Nesta fase, o macaco usa a "ligação normal": são as suas mãos que executam o que o cérebro pensa, e é o que as suas mãos fazem que produz um resultado mecânico. Depois desta fase de treino, o controlo do que se passa no monitor passa para o interface cérebro-computador: a actividade de uma pequena região da rede neuronal do macaco é captada, enviada para o computador, interpretada pelos modelos da actividade normal do cérebro do mesmo indivíduo, sendo depois enviados (pelo computador) comandos para o que se passa no monitor. O macaco, mesmo nesta fase, começa por continuar a usar o "joystick", mas abandona-o quando percebe que produz os mesmos resultados apenas com o pensamento.
(imagens de Carmena et al., "Learning to Control a Brain-Machine Interface for Reaching and Grasping by Primates", in
PLoS Biology, 1(2), (2003), pp. 1-16)
Ora, esta forma de "controlo mental" das competências motoras tem outras aplicações interessantes, agora com humanos.
Seja o caso de um tetraplégico (quase totalmente paralisado, cf. figura mais atrás) que pretenda deslocar-se com uma certa autonomia em cadeira de rodas. Isso é possível: há cadeiras de rodas controladas com o queixo ou soprando num tubinho. Mas isso é difícil e cansativo e, portanto, de uso limitado. Começou a desenvolver-se uma alternativa baseada em "controlo mental": um "barrete de eléctrodos" a envolver o crânio capta os sinais eléctricos típicos de certas actividades cerebrais (os sinais que se captam nos electro-encefalogramas); a pessoa pensa em dar certos comandos à cadeira de rodas (avança, vira para a esquerda); essa actividade cerebral é captada pelo "barrete de eléctrodos" e interpretada por um computador; daí resulta a transmissão dos comandos apropriados para o motor da cadeira de rodas. Já há algum anos que, no esforço para implementar este processo, se tinha conseguido que uma pessoa desse certas instruções (avança, vira à esquerda, vira à direita) a um robot com rodas, apenas por "controlo mental". (Mais sobre isto na
NewScientist.)
Mais recentemente conseguiu-se que uma pessoa paralisada, que normalmente se desloca em cadeira de rodas, interaja com um ambiente virtual.
O indivíduo é colocado numa sala de ambiente virtual, com o cenário projectado em frente, no chão e nas paredes. O objectivo é que ela comande a cadeira de rodas de forma a ir avançando e parando ao pé de "pessoas virtuais" para as cumprimentar. O controlo da cadeira é feita por "controlo mental", como descrito anteriormente. Assim, embora em ambiente virtual, a pessoa tem a sensação de se deslocar no mundo apenas devido à "força dos seus pensamentos". Nada disto está ainda em condições de generalizar ao dia a dia, mas é, sem dúvida, um exemplo maravilhoso de como as "ciências do artificial" (computadores, programas, ambientes virtuais, …) podem ser interessantes para os humanos tão naturais. (Mais sobre isto na
NewScientist. A imagem acima é do mesmo sítio.) O vídeo abaixo ilustra esta experiência.