27.7.07

Um detalhe que não interessa nada, excepto tudo


Vasco Pulido Valente escreve hoje no Público, sob o título "A produção de uma personagem", o seguinte: "Desde os debates da campanha para secretário-geral do PS que Sócrates não é Sócrates. Na sua inocência Alegre e João Soares continuaram a ser Alegre e João Soares. Sócrates foi transformado em primeiro-ministro por especialistas."
Por especialistas?! Oh senhor ex-deputado Vasco Pulido Valente: eu pensava que tinha sido pelo voto! Primeiro, pelo voto dos militantes socialistas, que o escolheram para candidato. Depois, pelo voto dos eleitores portugueses, que por ele deram maioria absoluta ao PS. Essa é a legitimidade que alguns cronistas não lhe perdoam.

26.7.07

Religiões, ciência, racionalidade

No blogue Rastos de Luz podemos ler um post intitulado Erro? , o qual começa mais ou menos assim: "encontrei este vídeo sobre os erros científicos no Corão...". O que aí se escreve é bom senso. Bom senso, apenas? Sim, mas que falta muito por aí.
Mais mês, menos mês, viremos aqui com mais calma ao tema das relações entre ciência, religião e sociedade. Nessa altura espero escandalizar os meus amigos racionalistas (uma vez que os meus amigos religiosos já me acham perdido, de qualquer modo, não sei se no inferno ou simplesmente no "deserto do ser", como dizia o outro).

25.7.07

Transgénicos



MILHO "HERCULEX"

- É cada vez mais difícil encontrar milho não transgénico!

(Cartoon de Marc S.)

(Clicar para aumentar)

Alegre entrevista


Manuel Alegre escreve, em artigo de opinião com mais de uma página no Público, "contra o medo, liberdade". Terá, certamente, razão em algumas coisas. Também há estilos que não aprecio. Mas não tem, certamente, razão em tomar o particular pelo geral. Além disso, procuro uma qualquer sugestão de alternativa concreta a alguma política. Nada encontro. Palavras, só palavras, como de costume neste pensador.

No mesmo exemplar do mesmo jornal leio mais novidades sobre o que continua a acontecer na Madeira. Um tema de que muitos parladores sobre a liberdade se esquecem quando escrevem "contra o medo". Uma questão de prioridades, certamente.

Por respeito por Alegre volto a alguns dos seus poemas. Dos mais antigos. Quando soavam ao tempo futuro. Quando a personagem ainda não estava instalada como oráculo de um D. Sebastião que nunca virá - pela razão simples e talvez triste de que está apenas morto (o D. Sebastião).

Impossibilidades que não se confirmam (ou "uma palavra de conforto a Marques Mendes")

Se os elefantes podem nadar, porque é que Marques Mendes não pode aspirar a ser primeiro-ministro?



(A foto é da BBC.)

24.7.07

Mesmo num filósofo, mesmo num amigo, o atrevimento da ignorância é uma vergonha


Desidério Murcho é uma pessoa que eu prezo, desde os tempos em que fomos colegas de faculdade. Além disso é um filósofo, menos dogmático hoje do que já foi no passado. Com vistas mais largas hoje do que já teve no passado. E muito competente naquilo de que se ocupa profissionalmente. Por isso tudo me custa muito dizer o que a seguir tenho de dizer.

Desidério Murcho escreve hoje no blogue De Rerum Natura um post intitulado A tia do "eduquês". O objecto imediato do dito post é a chamada "Área de Integração", que é, para simplificar sem faltar à verdade, uma disciplina dos cursos das Escolas Profissionais. Não vou entrar propriamente nessa matéria. Limito-me a ler o que o autor escreve sobre o próprio Ensino Profissional, dessas Escolas Profissionais assim visadas.
Escreve Desidério: «Recorde-se que este é um programa para os filhos dos pobres, que são demasiado estúpidos, no entender do ministério, para seguir a escolaridade dos outros: irão assim optar por uma ilusória escolaridade profissionalizante, que nenhuma profissão irá proporcionar, excepto as mesmíssimas profissões não especializadas — e mal pagas — que eles teriam sem tais cursos. Seria menos mau se realmente se ensinasse uma profissão aos adolescentes dos cursos profissionais — qualquer coisa de palpável. Mas não só não se irá ensinar tais coisas, porque a escola não tem competência para isso, nem há necessidade de a ter, como se procura complementar tais cursos práticos com uns pós de “cultura”.»

Lamento dizer-te, Desidério, meu caro, pessoa que estimo, que estas tuas afirmações revelam pura ignorância. Quando falas em "ilusória escolaridade profissionalizante" não sabes o que dizes, falas de cor. Quando dizes que tal escolaridade "nenhuma profissão irá proporcionar", é certo que ignoras o que se faz nas Escolas Profissionais. Quando dizes que as Escolas Profissionais atiram as pessoas para "profissões não especializadas e mal pagas", revelas não ter feito os trabalhos de casa.

Quantas Escolas Profissionais conheces? Não digo entrar pela porta dentro e visitar as instalações, digo conhecer. Saber o que se ensina, quem ensina, quais são as saídas profissionais, o que fazem os alunos depois de diplomados, que profissões vêm a ter, que carreira escolar têm a seguir, para que empresas vão e o que lá fazem, o que ganham e como progridem, que outros estudos fazem a seguir. Alguma vez fizeste isso ou limitas-te a ler programas e a desenvolver as tuas preferências teóricas pré-formadas e politicamente condicionadas? Tens alguma ideia do que as Escolas Profissionais significaram e significam em termos de renovação da educação em Portugal? Alguma vez visitaste empresas onde trabalham ex-alunos das Escolas Profissionais?

Meu caro Desidério: sei do que falo, porque trabalhei no sistema e porque estudei as suas glórias e misérias. Não me vou alongar em pormenores, porque tenho mais do que fazer do que explicar-te tim-tim-por-tintim tudo aquilo que devias saber antes de abrires a boca sobre coisas que, pelos vistos, não conheces. Não me pagam para isso. Mas lamento - não a tua ignorância sobre esse ponto, porque não temos de saber de tudo - mas que embarques com os que se fazem passar por entendidos em domínios que, manifestamente, ignoram.

Custou-me escrever isto, caro Desidério. Espero que a sinceridade seja considerada um atributo da amizade.

É Natal, é Natal


Felizmente o tema da natalidade volta à superfície. (Lembram-se de quantos se riram do tema quando Guterres tentou colocá-lo na agenda política?) Começou, como tudo neste país, com mais dinheiro. É natural - e mexer na estrutura dos abonos é importante. Mas entretanto o tema já começou a avançar mais, com o alargamento da questão às estruturas de apoio ao quotidiano concreto dos cidadão que sejam pais (creches, por exemplo).

Mas é preciso ir mais longe: a precaridade no mercado de trabalho (nomeadamente dos jovens adultos) é um dos factores que mais dano causam à procriação em tempo útil. Todos os apoios que se inventem só valem para os que cheguem a ter os filhos - e muitos sabem que a paternidade e maternidade responsáveis são penalizadas pelo clima de "todos contra todos" que impera em largos sectores da vida activa, onde se procura extrair tudo a todo o preço de jovens profissionais em princípio de carreira. As protecções contra a discriminação profissional dos procriadores só funcionam correctamente quando enquadradas por relações de trabalho com uma estabilidade relativamente elevada. É por isso que promover a natalidade, que é uma necessidade urgente, também passa por combater a precaridade no mercado de trabalho.

Mais um ponto de reflexão para a flexigurança...

Mão artificial


O francês Ambroise Paré (1517-1590), que chegou a ser Primeiro Cirurgião do Rei, começou como cirurgião de batalha, tentando remendar os que eram estropiados no ofício da guerra. Uma das tarefas que executava com frequência era a amputação de membros, em que se tornou exímio (para bem dos desgraçados, porque mais vale ser bem amputado do que mal amputado, é claro). Com espírito científico, observava a evolução dos seus pacientes, tendo sido o primeiro a dar (em 1551) uma descrição medicamente apropriada da síndroma do membro fantasma: os pacientes continuam a sentir dor no membro amputado (na parte amputada, que já lá não está) muito tempo após a amputação.

A evolução do seu interesse levou-o a propor a construção de membros artificiais. A ilustração seguinte é retirada das suas Obras, publicadas em Paris em 1585. Encontra-se na página 916 e contém uma antecipação do que, séculos mais tarde, seriam os princípios de construção de uma mão artificial.



(Clicar para aumentar.)



Um dos exemplares mais recentes de mãos artificiais muito desenvolvidas é a que se ilusta de seguida.




Com esta mão como prótese é suposto que um amputado seja capaz de fazer o seu próprio nó de gravata. Se pensam que é pouca coisa, experimentem, mesmo com as vossas mãozinhas originais... Essa capacidade deve-se a algumas características que ficam ilustradas na figura seguinte.





Trata-se de uma realização da Touch Bionics, que vende estas mãos pela módica quantia de 18.000 dólares americanos... cada.


Um exercício que vos propomos é comparar a descrição que Paré dá do seu projecto de mão artificial e o enunciado de características constante da descrição acima da prótese construída pela Touch Bionics.


(As pistas todas para esta posta vieram do blogue Neurophilosophy.)

23.7.07

Deixem-se lá de brincar aos anarquistas, pequenos irreverentes sem causas


Um desporto nacional actualmente na moda consiste em inventar (literalmente) os mais estrambólicos casos supostamente ilustrativos da sanha autoritária e liberticida do governo. A coisa é feita de modo a que nenhum cidadão em perfeito juízo, ou que pelo menos tenha uma ocupação que não seja detective, possa realmente "investigar" todas as acusações mirabolantes que qualquer um se digne confeitar.

Bom exemplo é este post de Sofia Bochmann no blogue Puro Arábica. Aí se pretende sugerir (embora ocultando-se essa pretensão por uma interrogativa), a propósito de um concurso para professor titular, que «um professor que realize e/ou participe em alguma acção, no âmbito do Direito à Liberdade de Pensamento e de Expressão, poderá ser alvo de uma exclusão de um concurso público da Função Pública».

O Apdeites V2 rapidamente mostrou a inanidade (ou mesmo a insanidade) da pretensão. Mas para isso teve de investir na investigação. Que nem sempre podemos fazer. A autora do disparate inicial, contudo, não parece ter ficado muito impressionada com a demonstração da burrada. Depois de saber que tinha escrito ficção política de má qualidade, em vez de esclarecer honestamente os seus leitores acerca do seu disparate, continua a chutar a bola para a frente como se não fosse nada de mais.

A irresponsabilidade cívica grassa, como se vê. O circo avança, agora, na pretensa defesa de uma liberdade pretensamente ameaçada. Se a estratégia é a da anarquia, podiam pelo menos aprender com os velhos anarquistas, que esses pelo menos tinham ideias na cabeça e coragem para serem consequentes. Não eram como estes "revolucionários" de pacotilha, conservadores escondidos na fraseologia "libertária".

Desculpem o azedume, mas não há pachorra...

A memória incomoda muita gente

Pedro Arroja irritou-se com o Museu Judaico de Berlim. Parece que acha inadmissível obrigarem os pobres dos alemães a recordar pequenos incidentes da sua história recente.
E depois, para não parecer que a sua irritação é muito particular sobre aquele museu e aquele país, escreve mais: «Como cidadão português, eu nunca aceitaria que a comunidade judaica em Portugal fosse colocar no centro de Lisboa um museu evocativo das perseguições que os judeus foram alvo no país - e estou persuadido que seria nisso acompanhado pela esmagadora maioria dos portugueses. Recomendaria que fizessem o Museu no centro de Telavive. Da mesma forma que compreenderia muito bem a recusa do povo judeu em deixar instalar no centro de Telavive um museu palestiniano evocativo dos abusos que o povo judeu tem cometido sobre o povo da Palestina.»

Certos indivíduos são prisioneiros do que consideram ser o seu "torrão natal", ou a sua "raça", ou a sua "nação". E por essa razão são incapazes de sentir a pertença à humanidade como algo que implica solidariedades mais vastas. Eu sinto-me identificado com as vítimas dos pecados da humanidade, mesmo que os executores tenham sido os meus compatriotas e as forças do meu país. Aliás, os candidatos a carrascos que mais ameaçam a minha própria liberdade são os que comigo partilham a mesma terra, por mais próximo estarem de um dia me deitarem a mão se isso lhes for conveniente.

Eu, por mim, acharia muito útil que houvesse em Lisboa ou em qualquer ponto do país uma memória das maldades que se cometeram na nossa história. E sentir-me-ia mais próximo daqueles outros povos que soubessem fazer o mesmo. E sinto-me muito longe destes que se incomodam tanto com a memória.

Pescar na rede


Chutar para canto: Vital Moreira sobre a miopia orientada do Presidente da República;

As virtudes da fé: Vitor Guerreiro sobre algumas retortas de alquimistas;

Cada vez mais altriciais: Luís Azevedo Rodrigues faz um comentário "de sociedade" e ao mesmo tempo explica o que é isso de ser "altricial";

Dez dias em Londres: Carlos Miguel Fernandes contribui com reflexões civilizacionais com as quais, em larga medida, não concordo, mas que merecem ser pensadas.

Zita Seabra e o problema filosófico da verdade



Façamos aqui uma pequena viagem psico-linguística.

άλήθεια (“aletheia”) quer em grego dizer aquilo que não se oculta, que se desvela, a verdade.



Прaвда (“pravda”) quer, em russo, dizer “a verdade”. O “Pravda” foi o principal jornal da União Soviética e um órgão oficial do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética entre 1918 e 1991.

A editora de Zita Seabra, que publica o seu recente livro de dissidente comunista intitulado “Foi assim”, chama-se “Alêtheia”.

Saudades do “Pravda”?

Ou será que não reparou que a verdade tem certos problemas, sendo um deles aquele que se ilustra na foto abaixo, onde o que parece um cavalo tem rabo de peixe?


mulher-em-cavalo-peixe.jpg


(Os ingredientes principais vêm do último “Inimigo Público”. Eu só acrescentei os molhos. A foto é de Porfírio Silva.)

20.7.07

Com patrões destes, a economia portuguesa não precisa de (mais) inimigos


Foi divulgada a Posição Comum das Confederações Patronais sobre o Quadro de Revisão do Código de Trabalho e respectiva regulamentação. Entre outras pérolas pretendem que a Constituição deixe de proibir o despedimento por motivos políticos ou ideológicos e pretendem limitar o campo de intervenção das estruturas de representação dos trabalhadores. Assim se vê que não estão nada preocupados com a economia, a produtividade ou a competitividade. Querem é ser, cada vez mais e com cada vez menos entraves, ditadores dentro das empresas que consideram seus feudos. Se visassem o melhor em termos económicos não andariam ao contrário das boas experiências que mostram que mais "humanidade" ajuda o melhor rendimento. Se pensam que isto pode ser apenas uma boa "táctica negocial" ainda não perceberam que, explorar por explorar, já há muitos países que fazem isso com mais limpeza: às claras, sem desculpas, sem rodriguinhos. Voltaremos a isto, outro dia.

Às armas, ou "de cócoras, companheiros, que a posição dá jeito"


O jornal Público todos os dias surpreende pela positiva - "pela positiva" no mesmo sentido em que se pode dizer que o teste do HIV deu "positivo".

Hoje escreve na última página, coluna "sobe e desce", para justificar a seta para baixo ao ministro Santos Silva, o seguinte: "Para defender a ERC ou o novo Estatuto dos Jornalistas, Santos Silva deita a mão à Constituição. Com uma arma deste calibre, avisa, podem vir mais críticas de comissários europeus que não se comove. Talvez acredite que, em termos de liberdades e garantias, a Constituição portuguesa é mais completa que a francesa, a sueca ou a alemã."

Primeiro, o zeloso jornalista acha que a opinião de qualquer Comissário europeu vale mais do que a Constituição portuguesa. Sim, porque não se trata de nenhum pronunciamento próprio da Comissão Europeia em matéria da sua competência, muito menos de uma decisão de um tribunal europeu. Trata-se de uma opinião pessoal da senhora Viviane Reding, que é Comissária europeia, mas que reconheceu, ao fazer as declarações em causa, que não estava a exercer nenhuma competência associada a esse estatuto. Estava, isso sim, a sentir-se na sua antiga pele de dirigente sindical. Nada disso importa ao jornalista: se o Comissário europeu dá umas bocas que nos interessam, essas bocas passam a valer mais do que a Constituição da República.

Segundo, o zeloso jornalista parece ter descoberto que preferia que a nossa República se regesse preferencialmente pelas Constituições francesa, sueca ou alemã. E aqui, para ser sincero, eu também tenho as minhas preferências: também preferia, em vez de ter os jornalistas da categoria do que subscreve aquelas palavras, ter a imprensa francesa ou alemã (a sueca não sei). É que, se assim fosse, não tinha de me sujeitar a ler todos os dias os disparates, ideologica e politicamente orientados, do Público.

Interacção entre humanos e robots


Há algum tempo publicámos aqui uma série de notas sobre o programa ELIZA, criado por Joseph Weizenbaum no MIT entre 1964 e 1966:


ELIZA, o seu psicoterapeuta automático para este fim de semana;

O "teste de Turing" e o psicoterapeuta automático;

Uma consulta de ELIZA;

O mecanismo interno de ELIZA;

O que os computadores podem mas não devem fazer;

Onde ELIZA leva à questão ética.


O programa ELIZA "estabelecia uma conversa" em linguagem natural (inglês) entre um computador e um utilizador humano. Na versão mais conhecida e usada pelo seu criador para efeitos de demonstração, a máquina programada desempenha o papel de um psicoterapeuta rogeriano. Um dos elementos de credibilização do sistema consiste precisamente no pressuposto de que um psiquiatra dessa escola incentivará o seu paciente a esclarecer todas as suas afirmações, devolvendo sistematicamente as suas falas com pedidos de melhor esclarecimento sobre os tópicos suscitados. O utilizador do sistema escreve as suas “falas” no teclado e recebe respostas também escritas com tempos de reacção que não desmentem a humanidade do interlocutor. São relatadas as mais diversas histórias acerca da forma espantosa como muitas pessoas, interagindo com este programa, se convenciam de que estavam a conversar com um psicoterapeuta. Por exemplo, uma das secretárias do sector onde Weizenbaum trabalhava terá chegado a pedir aos circunstantes que a deixassem a sós com o “psicoterapeuta” para poder falar com a necessária privacidade.


Weizenbaum explicou ter escolhido o psicoterapeuta como o seu “personagem” porque a entrevista psiquiátrica lhe pareceu um dos poucos exemplos de comunicação em linguagem natural com dois intervenientes em que parece natural, para uma das partes, a pose de quase completa ignorância acerca do mundo real. Quando um paciente diz “Fui dar uma grande volta de barco” e o psiquiatra responde “Fale-me de barcos”, não pensamos que ele seja ignorante acerca de barcos, mas que ele tem algum objectivo em mente para orientar a conversa desse modo.

Weizenbaum é muito claro ao afirmar: os pressupostos são lá postos pelo humano; quem atribui conhecimento e inteligência ao seu interlocutor é o humano. Neste caso, o autor do programa é completamente transparente: mostra toda a operação interna do ELIZA e explica que, além dos truques relativamente simples que lá colocou, tudo o resto é fornecido pelo humano utilizador. A este fenómeno de atribuição de "humanidade" ao agente artificial passou a chamar-se "o efeito ELIZA".


Voltamos a lembrar estas coisas porque SEEDMagazine publicou recentemente uma matéria que lida com o "efeito ELIZA": RISE OF ROBOETHICS: Grappling with the implications of an artificially intelligent culture. Vale a pena ler.

Junto com o texto vêm as ligações para uma série de vídeos que exemplificam os trabalhos que se desenvolvem actualmente para implementar interacções "de tipo humano" (com "emoções artificiais" e com linguagem, nomeadamente) entre humanos e robots. Alguns dos exemplos são os seguintes:



Aqui, o bebé-robot Kismet "diz" a frase "Do you really think so?" com o que se pretende serem diferentes expressões faciais e vocais:







Aqui, o robor Leo "aprende" o que é isso de "ligar os botões todos":







Aqui, o robot Jules "fala" com vocabulário emocional:







Aqui, o Babybot aprende a lidar com certos objectos:







O melhor é começar já a preparar as suas emoções para lidar com parceiros robóticos!

19.7.07

Acabei (só) agora de ler, de seguida, dois livros de dissidentes do PCP: de Raimundo Narciso, “Álvaro Cunhal e a dissidência da Terceira Via” (Âmbar); de Zita Seabra, “Foi assim” (Aletheia).
Anda por aí muita escrita sobre estes livros, especialmente sobre o segundo. Não me vou alongar sobre eles (livros), não porque não mereçam, mas porque nesta altura tenho a impressão de que quase tudo o que se diz sobre esses livros não é sobre esses livros: é sobre a simpatia ou antipatia que temos pelos seus autores, é sobre o que achamos do comunismo em geral e do PCP em particular, é sobre as nossas próprias atitudes face aos aspectos mais trágicos do século XX, é sobre as nossas próprias preferências políticas, afinal. E isso também se aplica a mim, pois claro.
Queria, contudo, mesmo assim, dizer o seguinte sobre ambos os livros: parecem-me basicamente sinceros e honestos. E parecem-me testemunhos importantes. Não são, necessariamente, testemunhos infalíveis, nenhum deles estará isento de algum perspectivismo – mas são material que, de futuro, será utilizado para escrever uma história necessária.
Reflectem a personalidade de cada um dos autores? Claro que sim: como podia deixar de ser assim? De qualquer modo, no essencial o que neles se escreve é escrutinável: mesmo que alguns relatos só possam ser reconstituídos perguntando a sua versão a quem já morreu, a esmagadora maioria do que é contado é confrontável com outros testemunhos e permite traçar o quadro do que realmente se passou.
É curioso ver como alguns ex-comunistas, conhecedores dos agora autores de relatos de dissidentes, reagem a estas publicações. Alguns não estão muito excitados com as peripécias políticas, tendo sido mais marcados pelo “carácter” dos protagonistas (“puritanismo socialista”, por exemplo) aplicado a situações concretas. Outros incomodam-se com estes exercícios memoriais, achando que se trata de ajustes de contas consigo mesmos. Talvez. Mas, por que não? Ficamos todos a ganhar. Os que sabemos que algumas daquelas coisas também existem noutros partidos; os que sabemos que a maior parte daquelas coisas eram realmente exclusivo de uma paranóia unicamente comunista; os que achamos importante que se continue a reflectir sobre “como foi possível”.
Por exemplo, como foi possível que os mais nobres ideias de esquerda tenham cegado tanta gente. Continua a ser um bom tema de reflexão. A par com outros temas de reflexão que também mereciam cuidado. Por exemplo, como foi possível que líderes de Estados da Europa ocidental tenham apoiado os crimes de Pinochet no Chile?
O importante é não fechar os olhos. Estes dois livros ajudam, independentemente das nossas simpatias e das nossas embirrações idiossincráticas. E nada voará mais alto do que esse facto: nem mesmo aqueles que continuam hoje a tentar sujar estas obras testemunhais com a mesma técnica de “assassinato de carácter” que aprenderam nas fileiras do Camarada Álvaro.

Private joke para eurocratas, actuais e ex


(Cartoon de Marc S.)
(Clicar para aumentar)

18.7.07

Zita Seabra afinal se calhar não mudou muito


Em mais uma peça de uma polémica que anda por aí a propósito da criação do Serviço Cívico Estudantil a seguir ao 25 de Abril, Zita Seabra, hoje no Público, parece mostrar que afinal não mudou muito.

O título da sua peça é “Não sabia ter sido tão importante” e consubstancia-se na seguinte frase: “Não sabia que em 1974, com 24 anos, eu, “chefe” da UEC [União dos Estudantes Comunistas], mandava no Ministério da Educação.” Se não for pura hipocrisia, é amnésia: Zita Seabra sabe, melhor do que o comum dos mortais, que para um verdadeiro comunista à velha maneira quem manda é “o Partido”, não são os órgãos de Estado. Os militantes comunistas destacados no aparelho de Estado devem, para serem verdadeiros comunistas, limitar-se a executar a linha e as decisões do “Partido”. Portanto, a controleira da UEC podia perfeitamente mandar no Director-Geral, ou até no Ministro, desde que estivesse assim a fazer aplicar a linha do “Partido”. Basta ler o recente livro de Zita para estranhar que ela tenha esquecido isso.

Ou trata-se apenas de hipocrisia de quem se habituou a usar essa arma como forma de exercício da política? Infelizmente, essa hipocrisia parece continuar a estar no seu estojo de ferramentas. Mais à frente no mesmo texto discute-se se António Hespanha, militante comunista que era então director-geral do ensino superior, teria ou não concordado com o Serviço Cívico. O que Zita pretende, contra a tese de Luísa Tiago de Oliveira, é que Hespanha certamente concordou com tal medida – e não se pode pensar que teria discordado. O argumento é este: “(…) como é possível que não se tenha ouvido uma palavra de discórdia, um grito de dor? Ou o senhor professor queixou-se? Onde? Sendo certo que não se demitiu, será que foi obrigado a ficar à força director-geral? Por quem?” Zita Seabra quer fazer crer que tudo isso seria impossível. Mas não, não era. Era assim que se funcionava no universo comunista. E ela, Zita, continua apenas a usar os mesmos truques retóricos que na altura deveria usar como controleira.

Zita Seabra manipula o que as pessoas comuns pensam ser a normalidade. Argumenta como se ignorasse que certas coisas estranhas realmente aconteciam. Por exemplo, poderia fazer-nos pensar que seria impossível que ela, controleira de uma organização partidária de juventude, tivesse sido levada a Conselho de Ministros para aconselhar Álvaro Cunhal. Hoje acharíamos isso impossível. Mas aconteceu – pelo menos é o que ela diz. Ao mesmo tempo quer-nos fazer acreditar que eram impossíveis coisas que aconteciam todos os dias naqueles tempos e no “universo comunista”.

Nada me move especificamente contra os comunistas. Nem contra os ex-comunistas. Discordo ou condeno coisas concretas que se fizeram, se defenderam ou se toleraram, principalmente quando se possa falar propriamente de “cumplicidade”. Mas fazem-me impressão os ex-comunistas que parecem continuar a viver dentro do mesmo casulo retórico, com os mesmos tiques. Embora usando-os agora para outras artes.

Se calhar, afinal Zita Seabra não mudou muito.

Mas pode alguém, afinal, mudar?

17.7.07

O Homem quê?


No livro Foi assim, de Zita Seabra, recentemente editado, fala-se, logo pelas páginas cinquenta e poucas, de um livro editado em 1978 pelas Edições Progresso, de Moscovo, da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O livro tinha por título O Homem Soviético: a formação da personalidade socialista. Escreve Zita Seabra que «era um livro de mera propaganda, no pior estilo comunista, demonstrando que já existia um “homem novo”, filho do socialismo soviético (...), dedicando-se o autor a “investigar” as premissas históricas e as condições sociais da formação do novo tipo social de personalidade – o assim chamado “homem soviético”».

Porque é que este “Homem Soviético” me terá feito lembrar o “Homem Económico”, essa ficção da teoria económica ortodoxa dominante?

16.7.07

Cavaco Silva não gostou da campanha eleitoral...


... de Lisboa. Pelo menos é o que diz o Público de hoje.

Já agora, Cavaco Silva está a gostar do que se está a passar na Madeira?

Ou será que tem estado no Pulo do Lobo e não tem ouvido noticiários?

A abstenção de Lisboa nada tem a ver com as cegonhas (nem com as férias, é claro)


Há menos trânsito hoje nas ruas de Lisboa. Como tem havido menos trânsito nas ruas de Lisboa já há algum tempo. É da época, todos sabemos.

Ah, não, desculpem. É do desencanto com os políticos.

É que a abstenção não tem nada a ver com estarmos em meados de Julho. Pelo menos assim rezam os políticos que se bateram para ter eleições a 15 de Julho, em vez de dia 1. E que, é claro, não sonham sequer em assumir a sua parte de responsabilidade pelos efeitos da data sobre a afluência às urnas.

Posta para irritar os meus amigos de esquerda (ou "os caminhos ínvios das autárquicas em Lisboa")


As eleições Lisboa 2007 acabaram, passemos às eleições Lisboa 2009. Quer dizer: o que me interessa é já o futuro eleitoral de Lisboa. O que fará Costa em termos de alianças? Não sei, mas quero analisar a coisa na perspectiva das tendências eleitoras de longo prazo na cidade de Lisboa.

A existência de mais de 25% dos votos da capital em candidatos independentes significa que esta é uma oportunidade de ouro para tentar reestruturar o eleitorado de Lisboa. Pode ser que tenhamos entre mãos um fenómeno parecido com o proporcionado em tempos pelo PRD de Eanes ao nível nacional: uma fatia do eleitorado de esquerda votou PRD como voto de descolagem dos seus partidos tradicionais e nas eleições seguintes estava livre para votar na direita, no PSD de Cavaco - o que fez, dando a este a primeira maioria absoluta monopartidária.

Em Lisboa, o PS há quase 30 anos que tinha uma margem de manobra relativamente pequena: depois de Aquilino Ribeiro, em 1976, ficou durante muitos anos atrás dos comunistas quando concorria isolado. Com Sampaio, e as coligões de esquerda que este promoveu, e que João Soares continuou, e com o bom governo que essas coligações de esquerda deram à cidade, o PS progrediu mais de 10% no seu peso eleitoral permanente. Isso permitiu-lhe agora, em circunstâncias especiais, ficar em primeiro lugar - mas muito longe da maioria aboluta.

Como poderá António Costa aspirar a ganhar com maioria absoluta em Lisboa daqui a dois anos? Governar bem é condição necessária, mas não suficiente, para esse desiderato. Para aspirar à maioria absoluta daqui a dois anos, o PS e António Costa têm de aproveitar as possibilidades de reestruturação do eleitorado que as circunstâncias permitem. A maior fatia dessa oportunidade é o eleitorado de Carmona, que pode voltar ao PSD ou ser captado pelo PS na próxima volta. A lista de Carmona pode ter sido o atalho para uma fatia do eleitorado do PSD se juntar ao eleitorado do PS, libertando o PS da obrigatoriedade de fazer alianças à esquerda.

Não é que eu seja contra alianças do PS à esquerda em Lisboa. Aliás, dada a fragmentação política da capital, Lisboa provavelmente só será governável com estabilidade na base de alianças, PSD/CDS ou PS/PCP/BE. O problema é que a luta de morte entre o PCP e o BE em Lisboa, cidade onde o BE aspira a mostrar ao país que os "socialistas de esquerda" valem mais do que os comunistas, torna extremamente difícil de negociar uma nova e futura coligação de esquerda. Se o PS quiser, de futuro, ter a opção de tentar uma coligação de esquerda ou de tentar uma maioria absoluta, precisa de reestruturar profundamente o eleitorado de Lisboa durante estes dois anos. E o alvo dessa operação será, essencialmente, o eleitorado de Carmona Rodrigues.

Quer isto dizer que António Costa terá de coligar-se com Carmona para governar Lisboa? Não necessariamente. Mas terá, certamente, de visar o objectivo de esvaziar Carmona e ficar-lhe com o eleitorado. O que passa, certamente, por não o erigir em principal inimigo. Coisa que, dita assim com esta clareza, faz com que os meus amigos de esquerda se irritem comigo e repitam tudo o que se sabe sobre Carmona. E que eu insista: estão já todos a pensar em 2009. António Costa também. E faz bem, porque não é em dois que vai mudar grande coisa. Dois anos vão dar apenas para mostrar que é ele quem pode fazer melhor. Para a seguir pedir que lhe dêem condições para isso. A campanha eleitoral, a campanha eleitoral mais longa e mais importante dos últimos quinze anos em Lisboa, está só a começar. E vai durar dois anos.

Anamorfose

Anamorfose. Não sabe o que isso seja? O blogue A aba de Heisenberg explica. Nesta curta nota.

Entretanto, isso permite-nos fazer a seguinte ligação. Há um bonito livro de Banda Desenhada, intitulado O Segredo de Coimbra (mas que antes disso se chamara Le Secret de Coimbra), que tem no cerne da sua intriga precisamente a anamorfose. Eis como escreve o editor, na apresentação desse álbum:


Que segredo esconde esta imagem deformada, esta anamorfose que Roland Buisen estuda em vão desde há meses? Quem é o personagem representado?

As investigações de Buisen levam-no até ao Gabinete de Física da Universidade de Coimbra, a essas salas esquecidas onde a ciência do Século das Luzes se confunde com as lendas de outros tempos.

É graças a este misterioso retrato que Roland Buisen vai desvendar a história de um jovem príncipe de saúde débil e de um perceptor demasiado preocupado em protegê-lo, a história das máquinas construídas para uso exclusivo da criança e da ponte com que não cessa de sonhar...





E assim continuo a minha cruzada a favor da BD... (O desenhador é o belga Etienne Schréder e o editor da versão portuguesa é a ASA. Publico a capa em francês, não por ter sido a primeira versão que li, mas porque os editores portugueses têm sempre muito medo de disponibilizar em linha amostras decentes dos seus álbuns.)

13.7.07

Declaração sobre os independentes

Não quero deixar para depois dos resultados eleitorais em Lisboa, para não ser lido a essa luz. Deixo hoje aqui esta “declaração sobre os independentes”.

(1) Sou a favor da participação nas instituições políticas de cidadãos não inscritos em partidos políticos, nos termos gerais em que ela é possível actualmente. Isso inclui, para certos órgãos, listas independentes ou participação de independentes em listas partidárias.

(2) Sou contra o abuso das faculdades concedidas aos independentes por parte de militantes partidários descontentes com a patente que conseguem alcançar num dado momento (“como não me deixam ser o primeiro, demito-me e amanhã serei independente”), sempre facilitadas por uma comunicação social ávida de dizer mal da “classe política” (para quem os políticos de partido são maus e os que deixaram um partido, ou que de preferência tenham até deixado dois partidos, são bons – ou até nem são políticos).

(3) Entendo que as faculdades cívicas abertas ao concurso dos independentes nos actuais moldes deveriam ser sujeitas a um “período de nojo”: só se deveria poder ser “candidato independente” passado um ano sobre a desvinculação de um partido ou sobre o término de uma colaboração institucional formal com um partido (por exemplo, após o exercício de um mandato em representação de um partido).

Julgo que isso ajudaria a destrinçar os oportunistas (os que mudam de demónios para anjos da noite para o dia) dos que realmente querem continuar a servir a comunidade noutro estatuto, afastando as conversões de última hora, os arrependimentos milagrosos e as visões celestiais dos que, num estalar de dedos, nascem de novo sem mácula – para a gloriosa carreira de independente.

(A imagem é de De Chirico, Nostalgia do Infinito, 1913)

BD, outra vez


A partir do romance de Jean Vautran, o desenho ao mesmo tempo enxuto e barroco de Tardi, Jacques Tardi. (Como pode isso ser, ao mesmo tempo enxuto e barroco? Barroco no rendilhado de todos os pormenores, até das letras dos "balões"; enxuto no a preto e branco, bem como nas emoções que transmite.) Sobre a Comuna de Paris. Coisas velhas. Ou talvez nem tanto. Ficam as capas dos quatro volumes originais (em francês, pois).






12.7.07

Hipocrisia, a dos hipócritas e a dos que por ela se babam


O jornal Público de hoje escreve: "As declarações de Cavaco Silva ontem no Alentejo demonstram que o Presidente da República não tem sido insensível ao clamor de cidadãos e instituições perante os sinais de asfixia das liberdades. Essa atitude é positiva e útil, pois o Presidente da República não pode deixar de transformar em actos a sua preocupação com a qualidade da democracia portuguesa."

Pergunto, primeiro: não é este Cavaco Silva o mesmo que, enquanto primeiro-ministro há uns anos atrás, inaugurou a prática generalizada e sistemática de varrer das chefias da administração pública tudo o que não tivesse o adequado cheiro a laranja?

Pergunto, segundo: se pudessemos comparar a lista dos colaboradores que o jornal Público tinha há um ano atrás e a lista dos colaboradores desse jornal hoje, e se pudessemos concluir que, na "renovação", certas opiniões tinham sido preferidas sistematicamente enquanto outras opiniões tinham sido sistematicamente preteridas - também poderíamos falar de asfixia da liberdade?

O caminho curto e o caminho longo (ou "a ciência talvez não seja o que parece à primeira vista")


Richard Feynman (Prémio Nobel da Física) escreveu um dia:


«Para aqueles que insistem em que a única coisa importante é a concordância da teoria com a experiência, gostaria de imaginar uma discussão entre um astrónomo maia e um seu discípulo. Os Maias eram capazes de calcular com grande precisão as efemérides, por exemplo, os eclipses, a posição da Lua no céu, a posição de Vénus, etc. Faziam tudo com o auxílio da aritmética. Contavam um dado número, subtraíam outros números, etc. Não discutiam o que era a Lua, não questionavam o que se passava. Só calculavam a ocorrência de um eclipse ou da fase de lua cheia, etc. Suponhamos que um jovem ia ao astrónomo e lhe dizia: "Tenho uma ideia. Talvez esses objectos andem à roda, talvez existam lá em cima bolas feitas de algo semelhante a pedra e possamos calcular os respectivos movimentos de um modo completamente diferente do da previsão simples do seu aparecimento no céu." "Sim", diz o astrónomo, "e com que precisão consegue prever os eclipses?". Resposta do jovem: "Ainda não desenvolvi a coisa a esse ponto." Então replica o astrónomo: "Bem, consigo calcular eclipses com muito maior exactidão do que o seu modelo, pelo que a sua ideia não é muito relevante. O esquema matemático é certamente melhor." Quando alguém nos surge com uma ideia e diz "suponhamos que o mundo é desta maneira", existe uma tendência muito grande para lhe respondermos: "Qual é a resposta para este e para aquele problema?". Ele diz: "Ainda não desenvolvi a coisa a esse ponto." E os outros:"Pois bem, nós obtemos respostas muito precisas." O problema consiste, portanto, em saber se devemos preocupar-nos ou não com filosofias por detrás das ideias.»


in FEYNMAN, R., The Caracter of Physical Law, 1967 (tradução portuguesa de Carlos Fiolhais, O que é uma lei física?, Lisboa, Gradiva, 1989, pp.217-218)


11.7.07

Sete contra Tebas

De Ésquilo. Na Culturgest. Ontem. Um espectáculo de Diogo Dória. O coro, as mulheres, representando o medo que lança o glorioso rei e o guerreiro no confronto fatal. Acontece.

Flexigurança, again

António Chora, coordenador da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa, escreveu um texto no blogue Arrastão, intitulado "Querem mesmo aprender com a Autoeuropa?". O texto de A.C. é muito interessante – e muito importante por dar a ver alguns aspectos essenciais da questão. Sublinhamos alguns.

(1) As empresas têm de pôr qualquer coisa “do seu bolso” na balança dos pesos e contrapesos que estimulam e compensam o empenho dos trabalhadores. Não podem ficar no “todos fazem assim, nós também”. No texto de A.C., isso traduz-se, por exemplo, nos 22 dias “não trabalháveis” que a empresa “oferece” por ano aos trabalhadores. É uma “benesse” extra, mas que está pensada para ser uma almofada a que a empresa pode recorrer se o trabalho apertar: esses 22 dias podem ser de trabalho se isso for necessário e eles são distribuíveis por mais do que um ano (há um crédito actual transferível para o ano seguinte). Quer dizer: se a flexibilidade for pensada para responder a necessidades de produção, é natural que as empresas pensem em investir (mesmo financeiramente) nesses mecanismos.

(2) A flexibilidade não tem de ser “facilidade para despedir”. No texto de A.C. isso é claro: um dos pilares do acordo foi, precisamente, a garantia de um período plurianual durante o qual não haveria despedimentos. A flexibilidade deve ser, precisamente, um caminho para preservar e aumentar o emprego. Mais: a flexibilidade tem de contrariar as tendências para a precarização. O trabalho precário desqualifica as pessoas (as pessoas não podem investir em tornar-se mais produtivas) e desqualifica as empresas (adia permanentemente a qualificação dos seus recursos e está sempre a começar de novo, o que é típico da incapacidade de avançar).

(3) Estas dinâmicas de verdadeiro diálogo pressupõem “trocas”: eu dou e também recebo. Por exemplo: a Autoeuropa deu prémios aos trabalhadores (aqui parece que os trabalhadores ganharam); o custo do trabalho extraordinário ao sábado baixou de 200% para 100% (aqui parece que os trabalhadores perderam). As “trocas”, se tiverem um sentido económico, são interessantes para ambas as partes, porque a prosperidade de uma empresa que respeita o trabalho é também do interesse dos trabalhadores.

(4) É preciso pensar no futuro, não apenas no imediato: a aposta massiva em formação profissional de qualidade é que permitiu, no caso vertente, continuar a conquistar encomendas. O texto não diz, mas os períodos de formação já foram utilizados para absorver períodos mortos na produção.

(5) Os acordos mutuamente vantajosos têm de basear-se na racionalidade das opções: o que se faz tem de ter uma justificação, nunca resultar dos “caprichos do patrão”. A arbitrariedade tem de ser banida das relações entre pessoas: e as relações laborais são relações entre pessoas, não são relações entre peças de uma máquina. E isso faz-se pelo diálogo e pela negociação colectiva permanente e informada. Como bem sublinha A.C., na Autoeuropa há um diálogo permanente, reuniões semanais entre os representantes dos trabalhadores e a administração, onde esta presta adequadas informações fidedignas sobre a situação e o que está em causa. Não há aí a (in)cultura do segredo e da tentativa de desinformar os trabalhadores.

(6) Nada do que aconteceu na Autoeuropa resultou de qualquer obrigação legal. Resultou de parceiros responsáveis, com interesses diferentes, que souberam perceber o essencial e remar para o mesmo lado. Que é o que interessa na generalidade dos casos a todas as partes. E isso foi possível por os trabalhadores estarem organizados, serem capazes de tomar decisões e respeitá-las. E isso foi possível por a administração, “ensinada” por um modelo mais democrático de relações laborais, ser capaz de verdadeira negociação leal. É preciso dar mais força à representação do trabalho - e dar-lhe mais responsabilidade.

Agora, há um ponto em que discordamos de A.C. – quando parece que ele entende que nada disto que se passa na Autoeuropa é flexigurança. Pois nós achamos que ISTO É FLEXIGURANÇA. O que não é flexigurança é a arbitrariedade pretendida pelos maus empresários. Não façam aos maus empresários o favor de lhes dar de barato o que eles querem: o que eles querem é que as pessoas pensem que flexigurança é liberdade para despedir. Pode, a alguns, dar jeito, em termos político-partidários, confundir flexigurança com liberalização dos despedimentos, com mais arbitrariedade patronal. Mas, por uma vez, não ponham a política partidária (o interesse de criticar o governo) à frente de tudo. Seria preferível, a bem dos trabalhadores, explicar que os empresários é que estão a compreender mal o que quer dizer flexigurança. E que a flexigurança implica mais segurança – a par com mais flexibilidade. Como na Autoeuropa. Onde os trabalhadores jogaram o papel que a maior parte do movimento sindical demonstra ser incapaz de generalizar – quando, precisamente aqui, poderia estar “ao ataque” em vez de estar sempre “à defesa”.

10.7.07

"Sorte"

("Sorte". Foto de Porfírio Silva.)

A ditadura da economia, again


Aqui há tempos escrevemos aqui uma pequena série de notas sob o título "A ditadura da economia" (parte 1, parte 2, parte 3). A tese geral era "há mais vida além da economia", tese de que alguns não gostaram. Hoje ofereço aqui três sugestões para seguirem diferentes caminhos que essa questão pode tomar.


(1) MORE SEX IS SAFER SEX. The Unconventional Wisdom of Economics é o título de mais um livro de Steven E. Landsburg, publicado em Abril passado na Free Press. Faz parte daquela corrente (de que Freakonomics é um dos exemplos mais conhecidos) que procura explicar tudo na sociedade em termos económicos. Pode ler-se em linha o primeiro capítulo, que dá o nome ao livro. A tese aí é mais ou menos assim: o HIV poderia disseminar-se mais lentamente se as pessoas relativamente castas aumentassem um pouco o número dos seus parceiros sexuais. O argumento é basicamente este: se os mais castos se envolvessem um pouco mais no "comércio", o conjunto dos sexualmente activos seria um pouco mais seguro. Este é um exemplo daqueles raciocínios tentados pelo "tudo se explica (e se pode gerir) em termos de economia", a que se pode acrescentar "e esqueçam a moral e coisas que tais".


(2) No The New York Times do passado domingo (8 de Julho de 2007), David Leonhardt faz uma recensão da mencionada obra, enquadrando-a no "movimento imperialista da profissão de economista". Intitula-se Possible Side Effects e pode ler-se em linha.


(3) O filme TUCKER, The Man and his Dream, de Francis Ford Coppola, 1988, conta a história verdadeira de Preston Tucker, um americano que acreditava na livre iniciativa e que tentou colocar no mercado um automóvel inovador logo a seguir à Segunda Guerra Mundial. E o filme também conta como uma aliança entre os grandes fabricantes de automóveis e certos departamentos governamentais conseguiu impedir Tucker de colocar o seu automóvel maravilha à venda. Para aqueles que pensam que o mercado nasceu livre e se mantém naturalmente livre, para aqueles que gostam de ser distraídos de todo o envolvimento institucional que é necessário ao funcionamento do mercado, vale a pena ver este filme. Há um sítio dedicado a esta história: The Tucker Automobile Club of America.


Boas leituras e visionamentos.

9.7.07

Arqueologia do Corpo

O blogue que já antes aqui chamámos "blogue filosófico", Arqueologia do Corpo, respondeu (já há uns dias) ao desafio das 5 Leituras. A sua fatia de biblioteca de cabeceira está aqui neste post. Como sempre, revelamo-nos um pouco quando confessamos leituras. Neste caso, acabamos até por ter a ocasião de compreender algo do percurso filosófico que sustenta Arqueologia do Corpo. A obra de Pierre Clastres aí referida, "A Sociedade contra o Estado", relembra-me um passo da minha própria formação como cidadão - coisa que me soube bem.

Ciência ao Natural

O blogue Ciência ao Natural, que se dedica a "Reflexões sobre História Natural", da autoria de Luis Azevedo Rodrigues, respondeu ao meu convite/desafio para nos confessar leituras (desafio que me chegou pelo Absorto). Está aqui neste post intitulado Livros que ando a ler. Fico agradecido quando outros "bloguistas" aceitam desviar-se um pouco do seu caminho previsto para atender a uma sugestão minha, ainda por cima quando isso lhes "sai do pêlo" em termos do pouco tempo disponível. E o Ciência ao Natural continua a "corrente", com novos convites. Continua, por esta via, uma certa diversificação das leituras.

Estados Gerais


Estava eu a dar a minha ronda pelos blogues que visito quando, dirigindo-me ao Estados Gerais, um blogue de que já aqui falei anteriormente, deparo com uma "janela a esvoaçar". Que é isto? Qual não é a minha surpresa quando verifico que a janela esvoaçante diz "Blog em destaque Máquina Especulativa". Que boa surpresa! Obrigado, meu caro José Alberto Mostardinha!

Controlo Mental


Vamos dizer as coisas desta forma simples: para fazermos a nossa vida normal, com a capacidade de nos movermos das inúmeras maneiras que são necessárias aos mais pequenos gestos do nosso mais banal quotidiano, precisamos de que o cérebro e os nossos órgãos motores estejam devidamente conectados. É que o cérebro "comanda" os músculos que fazem mover as diferentes partes do nosso corpos. A espinal medula liga o cérebro à rede de nervos que, por sua vez ligados aos músculos por todo o corpo, fazem mover os membros. Na imagem seguinte temos uma representação geral das ligações do sistema nervoso central aos músculos.





(imagem de Gerard J. Tortora, Principles of Human Anatomy (oitava edição), 1999, John Willy & Sons Inc., New York, online no Journal of Young Investigators )




Ora, certas lesões afectam essas ligações, provocando várias formas de paralisia (incapacidade de controlar - de "mandar mexer" - certas partes do corpo). A imagem seguinte mostra como pode variar a extensão dessa paralisia (até à mais generalizada, quando se diz que a pessoa está tetraplégica).








Até há algum tempo a estratégia padrão para tentar recuperar destas situações consistia em procurar reconstruir as ligações, reconstruir as fibras nervosas afectadas que tinham "cortado a ligação" entre diferentes partes do sistema. Como é sabido, isso não é possível em muitos casos.


Mas há alguns anos que vem sendo desenvolvida outra abordagem. Em linhas gerais essa abordagem consiste no seguinte: tentar ligar directamente os centros cerebrais responsáveis pelo controlo do movimento a algum dispositivo que implemente a acção motora, sem passar pelas ligações normais do sistema nervoso. Isto é: como a paralisia resulta de uma interrupção das ligações entre o "comando" e os "executores" do movimento, tenta-se ligar directamente o "comando" (zonas do cérebro que dirigem o movimento) a algum órgão (artificial) que execute o movimento desejado.


Esses estudos de "controlo mental" começaram por ser feitos em animais não humanos, nomeadamente roedores e macacos. No seu aspecto geral, tal como tem vindo a ser investigada, a ideia é muito simples: quando "pensamos" em fazer qualquer movimento com a mão (por exemplo), esse "pensar" consiste em (ou está associado" a) uma certa actividade do cérebro, em certas zonas específicas do cérebro; essa actividade normalmente comanda certas partes do corpo, sendo que esses comandos são sinais enviados através do sistema nervoso; se se conseguir captar esses sinais de comando e endereçá-los a um dispositivo artificial, o pensamento pode comandar directamente um mecanismo exterior ao corpo.


Bom, o cérebro não comanda esses mecanismos artificiais directamente, "sem fios": há um "interface cérebro-computador", o qual capta sinais de actividade cerebral na superfície da cabeça (para isso implantam-se eléctrodos como se se estivesse a fazer um exame conhecido como Electro-Encefalograma) e esses sinais são captados por um computador que os endereça à acção pretendida. Numa experiência com macacos, por exemplo, um macaco olha para o monitor de um computador e, ao "pensar" em fazer certa coisa com os objectos que vê no monitor, alcança mesmo o resultado em que está a pensar. Vejamos um pouco mais em pormenor.


Numa fase inicial, o macaco olha para dois objectos no monitor e pode fazer duas coisas com eles: aproximá-los ou afastá-los, aumentar ou diminuir o tamanho de cada um. Isso é feito actuando sobre um "joystick", movendo-o de um lado para outro ou apertando-o com mais ou menos força. Nesta fase, o macaco usa a "ligação normal": são as suas mãos que executam o que o cérebro pensa, e é o que as suas mãos fazem que produz um resultado mecânico. Depois desta fase de treino, o controlo do que se passa no monitor passa para o interface cérebro-computador: a actividade de uma pequena região da rede neuronal do macaco é captada, enviada para o computador, interpretada pelos modelos da actividade normal do cérebro do mesmo indivíduo, sendo depois enviados (pelo computador) comandos para o que se passa no monitor. O macaco, mesmo nesta fase, começa por continuar a usar o "joystick", mas abandona-o quando percebe que produz os mesmos resultados apenas com o pensamento.





(imagens de Carmena et al., "Learning to Control a Brain-Machine Interface for Reaching and Grasping by Primates", in PLoS Biology, 1(2), (2003), pp. 1-16)




Ora, esta forma de "controlo mental" das competências motoras tem outras aplicações interessantes, agora com humanos.


Seja o caso de um tetraplégico (quase totalmente paralisado, cf. figura mais atrás) que pretenda deslocar-se com uma certa autonomia em cadeira de rodas. Isso é possível: há cadeiras de rodas controladas com o queixo ou soprando num tubinho. Mas isso é difícil e cansativo e, portanto, de uso limitado. Começou a desenvolver-se uma alternativa baseada em "controlo mental": um "barrete de eléctrodos" a envolver o crânio capta os sinais eléctricos típicos de certas actividades cerebrais (os sinais que se captam nos electro-encefalogramas); a pessoa pensa em dar certos comandos à cadeira de rodas (avança, vira para a esquerda); essa actividade cerebral é captada pelo "barrete de eléctrodos" e interpretada por um computador; daí resulta a transmissão dos comandos apropriados para o motor da cadeira de rodas. Já há algum anos que, no esforço para implementar este processo, se tinha conseguido que uma pessoa desse certas instruções (avança, vira à esquerda, vira à direita) a um robot com rodas, apenas por "controlo mental". (Mais sobre isto na NewScientist.)


Mais recentemente conseguiu-se que uma pessoa paralisada, que normalmente se desloca em cadeira de rodas, interaja com um ambiente virtual.








O indivíduo é colocado numa sala de ambiente virtual, com o cenário projectado em frente, no chão e nas paredes. O objectivo é que ela comande a cadeira de rodas de forma a ir avançando e parando ao pé de "pessoas virtuais" para as cumprimentar. O controlo da cadeira é feita por "controlo mental", como descrito anteriormente. Assim, embora em ambiente virtual, a pessoa tem a sensação de se deslocar no mundo apenas devido à "força dos seus pensamentos". Nada disto está ainda em condições de generalizar ao dia a dia, mas é, sem dúvida, um exemplo maravilhoso de como as "ciências do artificial" (computadores, programas, ambientes virtuais, …) podem ser interessantes para os humanos tão naturais. (Mais sobre isto na NewScientist. A imagem acima é do mesmo sítio.) O vídeo abaixo ilustra esta experiência.




Cogitar + Agir = COGIR

O José Manuel Dias, do COGIR, respondeu ao meu desafio/convite para entrar numa corrente de leituras. Está aqui. Fico agradecido (não apenas pelas leituras; também pelo testemunho público de amizade, que é sempre uma coisa de que se gosta).

5.7.07

Flexigurança

No passado dia 29 de Junho, António Chora, coordenador da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa, escreveu um texto no blogue Arrastão, a convite de Daniel Oliveira. Esse texto é inserido num post intitulado Querem mesmo aprender com a Autoeuropa? O tema, como já se terá visto por posts anteriores que aqui publiquei, interessa-me sobremaneira. Não vou agora alongar-me. Apenas deixo o conselho de que este texto seja lido. Mais tarde voltaremos ao tema. Mas certamente será para sublinhar isto: qualquer solução para aumentar a competitividade e a produtividade passa por um verdadeiro diálogo (isto é, um diálogo com consequências) com os trabalhadores organizados. E se os trabalhadores não perceberem o que têm a ganhar, é porque de facto não estão a ganhar nada. E, já agora, precisam-se mais empresários que não sejam "patrões". Sejam portugueses ou estrangeiros, para o caso dá o mesmo.

Os factos, senhor, os factos, os duros factos da realidade

No já distante dia 16 de Novembro de 2006, o Arqueologia do Corpo, um "blogue filosófico" (ponho entre aspas, porque para mim é elogio mas para outros pode parecer crítica) publicou a ilustração abaixo (que nos é dito ter vindo do livro de David Mills, Atheist Universe, Xlibris Corporation, 2004).




O método científico: - Aqui estão os factos. Que conclusões podemos tirar deles?

O método criacionista: - Aqui está a conclusão. Que factos podemos encontrar para a apoiar?



Tem alguma piada. Mas também contém um grave problema. Ilustra a razão pela qual uma tese completamente tonta (a ideia de que a criação do mundo por um deus pessoal pode ser científica, isto é, pode ser escrutinada cientificamente) consegue baralhar o debate com teses claramente científicas (como a teoria da evolução).

Qual é o problema? O problema é o discurso neo-positivista acerca da diferença entre factos e teorias, e a ideia também neo-positivista de que as teorias são apenas resumos apropriados de factos que se impuseram por si mesmos. Essas teses, populares mas cujas enormes debilidades já foram escrutinadas, tornaram aceitável para a "opinião pública" que a teoria da evolução, sendo "uma teoria" e não "um facto", é uma coisa comparável ao criacionismo. É claro (pelo menos a meu ver) que essa pretensão é uma tolice. Mas a possibilidade dessa tolice foi aberta por aquela ideia, ilustrada no cartoon acima, de que "factos são factos".

A questão é que, embora por vezes certos factos "saltem para cima da mesa" e se imponham, na maior dos casos o que orienta a procura dos factos é uma hipótese. E, aí, o processo é mesmo: temos aqui uma conclusão (uma possível conclusão mais ousada do que actualmente sabemos, dado aquilo que já julgamos saber e alguns buracos nas teorias actuais) e vamos à procura de factos que possam suportar essa conclusão (essa hipótese).

Pois, cuidado com as certezas científicas - e políticas, e religiosas... porque outras certezas mais complicadas podem sair-nos ao caminho!

4.7.07

5 Leituras


O Eduardo Graça, do blogue Absorto, desafia assim: manter uma corrente de confissões acerca de leituras em curso. Cinco livros que andem a ser lidos. Essa corrente já vem de longe e, garanto-vos, é muito instrutivo segui-la às arrecuas, recuando, puxando os elos anteriores, conhecendo blogues novos de gente que lê. Então, vamos pois a isso. No fim faço os meus desafios para quem gostaria que desse continuidade.

Perfect Order. Recognizing Complexity in Bali, de J. Stephen Lansing, editado pela Princeton University Press, 2006. Este livro é o mais recente deste antropólogo, estudioso da forma particular como o sistema religioso e o sistema económico se entrelaçam na ilha de Bali, onde em certas regiões o cultivo do arroz e o culto da Deusa do Lago estão historicamente ligadas na mesma base institucional (a complexa rede de “templos da água”, geridos de forma mais ou menos cooperativa, aos quais cabe regular quer o culto religioso, quer a distribuição da água pela montanha abaixo e entre os cultivadores de arroz, quer a “democracia” das aldeias). Esta leitura faz parte dos meus estudos sobre as instituições, mas também irá contribuir para uma reflexão em curso acerca das relações entre ciência, sociedade e religião. Um livro que acompanha este, e que ajuda se for sendo lido ao mesmo tempo, é, do mesmo autor, “Priests and Programmers. Technologies of Power in the Engineered Landscape of Bali” (já de 1991).









A Grande Transformação. As origens da nossa época, de Karl Polanyi. Trata-se de uma tradução brasileira do grande clássico, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, cruzando História, Antropologia, Economia Política. Este livro “explica” a formação da “sociedade capitalista”, uma sociedade onde a instituição “mercado” se separou das outras instituições sociais e onde se alimenta a ficção (ou a ideologia) de que o mercado é autónomo do resto da sociedade e é o padrão de referência que deve marcar o funcionamento de tudo o resto na vida das gentes. Este livro insere-se nas minhas leituras tendentes a enquadrar (histórica e filosoficamente) as origens da ortodoxia dominante em teoria económica. A seguir, se tiver coragem, seguirei com “Adam Smith – O conceito mecanicista de liberdade”, de Fernando Araújo, editado pela Almedina em 2001 (são 1493 páginas, oriundas de uma dissertação de doutoramento em Ciências Jurídico-Económicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – isto é para calar aqueles que dizem que a minha é demasiado longa).






How the body shapes the way we think. A new view of intelligence, de Rolf Pfeifer e Josh Bongard, editado pela The MIT Press, 2007. Esta é uma leitura de actualização das minhas investigações sobre ciências do artificial. É mais uma das obras a explicar como a Inteligência Artificial cometeu o grande erro de pensar que a inteligência está “dentro da cabeça” - quando na verdade a inteligência é algo muito mais “corporal” e menos “lógico” do que a maioria pensava há alguns anos. O livro não é muito profundo para quem conheça bem o domínio, mas é um bom ponto de partida para quem queira saber as “maldades” que se andam por aí a fazer com robots a imitar os humanos (ou a tentar fintá-los).











D. Manuel I, de João Paulo Oliveira e Costa, edição do Círculo de Leitores, 2005. Esta biografia insere-se genericamente na minha tentativa de perceber melhor o século XVI português, e inscreve-se mais especificamente num projecto em que ando a ruminar há algum tempo... mas sobre isso não posso de momento dizer mais.









Merci Patroné um álbum de Banda Desenhada, do português que usa o pseudónimo Rui Lacas. Está publicado num editor francófono, Éditions Paquet, desde 2006, mas vai sair proximamente em português (e em Portugal). Estou a reler este magnífico livro. O excelente blogue Ler BD publicou um texto muito bom sobre esta obra. O próprio Lacas também tem um blogue, mas pobrezinho: vão ver, porque é capaz de estar para ser ressuscitado.















Gostaria que os autores dos seguintes blogues dessem continuidade a esta corrente de leituras: No Mundo, Arquelogia do Corpo, Cogir , Ciência ao Natural, Cyber Sapiens.

Lá fora ideias esperam o seu tempo


(L'ouragane, L'orage, esculturas de Germaine Richier, expostas no exterior do topo do Centro Pompidou. Paris, Fevereiro de 2007. Foto de Porfírio Silva.)

3.7.07

Vem aí a ditadura?


Neste país há quem entenda normal que os utentes dos serviços públicos sejam expostos, nesses mesmos serviços públicos, a propaganda política. Em particular, há quem entenda normal que os pacientes que se dirigem a um serviço de saúde tenham de gramar com propaganda contra o ministro da saúde. Em particular, há quem entenda que se eu tiver de me dirigir ao SAP de Vieira do Minho tenho de aceitar de bom-grado que lá esteja exposta uma entrevista do Ministro da Saúde com o seguinte comentário anexo: «Atenção! Você está num SAP! Fuja! Faça como o Ministro da Saúde deste pobre País – Corra para a urgência de Braga!». É claro que se o ministro da saúde tivesse mandado afixar, ele próprio, a sua entrevista, seria acusado de culto da personalidade ou de qualquer malfeitoria parecida.

Neste país há quem entenda que instruir os funcionários públicos acerca de como detectarem como operam os corruptores, e para denunciarem as tentativas de corrupção, é incentivar a delação.

Neste país há quem ache que a proibição de “violação de correspondência”, proibição que serve para proteger um direito fundamental à privacidade, equivale a qualquer funcionário ter direito a receber a título pessoal a correspondência oficial que deveria ser dirigida ao seu serviço, dar formalmente entrada e ser distribuída para resposta por quem tenha essa responsabilidade. A ignorância de quem nunca teve que gerir nada, nem público nem privado, que não sabe o que significa garantir resposta dos serviços aos cidadãos e aos outros serviços, confunde as duas coisas, grita por “crime” e acusa de totalitarismo.

Neste país isto serve para reduzir tudo ao mesmo folclore. Passam-se coisas graves. Pode acontecer que se esteja a preparar uma reforma da legislação laboral que só interessa aos maus patrões, àqueles que querem todo o poder de dominar os trabalhadores mas são incapazes de usar os mecanismos existentes para produzir mais e melhor. Mas isso só se discute com chavões. Porquê? Porque a agenda “mediática” está preenchida por aqueles outros temas que fazem as delícias dos que gritam “vem aí a ditadura”.

É mais fácil falsificar notas ou falsificar instituições?


O blogue Estados Gerais publicou muito recentemente um detalhado texto sobre o chamado caso Alves Reis, tendo dado a essa posta o título O crime... nem sempre compensa. Um leitor deixou um comentário muito curioso a essa história: "Só há um probleminha na tua história. As notas não eram falsas. Eram mesmo verdadeiras!". Até ao momento, o José Alberto Mostardinha, o autor do blogue em questão, e que tantas vezes se dá ao trabalho de contar as coisas com bastante detalhe, ainda não disse nada sobre este comentário. Aproveitando a deixa, digo eu aqui qualquer coisa sobre isso. Esta posta será muito mais longa do que é aqui costume, mas acho que vale a pena. Procuro mostrar a diferença entre "falsificar coisas" (notas de banco, por exemplo) e "falsificar instituições".


O caso Alves Reis: falsificar instituições


Em poucos meses no ano de 1925 foram postas a circular em Portugal continental mais de cem mil notas falsas de 500 escudos. Essas notas falsas tinham uma particularidade notável: eram estritamente iguais às notas verdadeiras correspondentes. Eram do mesmo tipo de papel, tinham sido impressas com as mesmas tintas e pelos mesmos processos que as notas oficiais. Aliás, tinham sido impressas pela mesma rotativa, com as mesmas chapas e na mesma casa impressora que produzira as notas legais.

Na verdade, um grupo de falsários convencera a firma Waterlow & Sons, de Londres, que tinha experiência de impressão de notas portuguesas, de que tinha mandato do governador do Banco de Portugal e do governo do país para imprimir mais notas de 500$00 com a efígie de Vasco da Gama, na variante designada por “chapa 2”, usando precisamente as mesmas chapas, a mesma numeração das notas e as mesmas chancelas do governador e dos directores do banco que detinha o exclusivo da emissão de papel moeda no país. O falso engenheiro e falso capitalista Alves Reis, líder da operação, falsificara os documentos necessários a induzir a Waterlow & Sons nesse erro, que viria a pagar caro – mas, se os contratos que foram exibidos e as pretensas cartas do governador a autorizar novo uso das matrizes das notas eram falsas, as notas produzidas e distribuídas como resultado dessa operação eram em tudo materialmente iguais às suas gémeas legais.

Os próprios peritos do Banco de Portugal tiveram ocasião de atestar repetidas vezes que as notas eram perfeitamente conformes. A transformação das notas “clandestinas” em dinheiro normal realizou-se por vários métodos, nomeadamente: compra de divisas no mercado negro, depósitos bancários prontamente levantados ou transferidos para outras contas poucos dias depois, compras de jóias, aquisição de autorizações alfandegárias para importação de bens pagos em divisas estrangeiras. A pressa com que tudo isso foi feito, em vários pontos do país, provocou uma avalanche de notas novas daquele tipo, o que em vários casos levantou suspeitas – que foram prontamente afastadas pelos serviços do Banco de Portugal em várias localidades, que atestavam sempre a perfeita legalidade das notas.
A certa altura, face à agitação da opinião pública em torno da questão, começando a tornar-se significativos os casos de recusa do público no recebimento dessas notas, o Banco de Portugal tomou pública posição oficial: a 6 de Maio desse ano, desmente em comunicado a circulação de notas falsas de quinhentos escudos, no qual sublinha que todas as que tinha recebido para exame e que tinham sido analisadas pelos seus peritos eram notas verdadeiras do Banco de Portugal, fabricadas na Waterlow & Sons.
Só no final do ano, quando as autoridades monetárias já estavam certas de que algo estava errado e procederam à verificação sistemática de milhares dessas notas, é que encontraram, entre seis mil notas conferidas, quatro duplicadas, isto é, que tinham a mesma matrícula. Algo tinha de estar errado – mas nem isso tornou menos impossível distinguir as falsas das verdadeiras. Por isso, foi decidido retirar de circulação as notas desse modelo, mas – a atestar mais uma vez a completa identidade material entre os dois conjuntos de notas – o Banco de Portugal mandou recolher (trocando-as por outras notas nos seus balcões) todas as notas de 500$00 Vasco da Gama chapa 2, por se confessar incapaz de distinguir as notas das diferentes emissões.

Havia, pois, notas falsas e notas legais – mas eram, do ponto de visto físico, rigorosamente iguais. Aliás, eram demasiado iguais. A casa impressora não achara estranha a encomenda de notas com a mesma numeração, porque fora “informada” de que este novo lote seria para circular na província africana de Angola, após posterior acrescento dessa menção às notas em tudo o mais idênticas às da metrópole. Mesmo assim, certas notas eram legais e outras eram falsas.

O cérebro da operação, que deu o seu nome ao escândalo, Alves dos Reis, elaborara o conceito desta fraude gigantesca ao ler um discurso do deputado Cunha Leal na Câmara dos Deputados. Nesse discurso, Cunhal Leal denunciava as “emissões surdas” de notas. As emissões surdas eram emissões de moeda decididas pelo governo à revelia das leis e do poder legislativo, isto é, sem estarem devidamente suportadas pelos diplomas legais devidamente aprovados para o parlamento com esse fim – ou mesmo decididas pelo Banco de Portugal sem o conhecimento atempado do próprio governo. Essa situação anómala tinha começado a ser gerada devido ao facto de não se respeitarem as leis relativas à cobertura da circulação fiduciária pelas reservas oficiais de ouro e prata. Ora, pensara Alves dos Reis, se o Banco de Portugal podia fazer “emissões clandestinas” de moeda, porque não haveria eles também de fazer outro tipo de emissões clandestinas? Num certo sentido, as emissões do Banco de Portugal que não tinham cobertura legal apropriada também eram fraudulentas, embora esse abuso estivesse mais entranhado na própria estrutura institucional que o deveria prevenir.
Note-se que o grupo de Alves dos Reis, com o dinheiro conseguido com esta “emissão surda” especial, criou um banco comercial (Banco Angola e Metrópole) e começou imediatamente a tentar controlar o Banco de Portugal, que era uma sociedade de capitais privados ( embora obrigado a normas legais específicas e com um governador nomeado pelo governo), cujas acções (pouco rentáveis comercialmente) estavam em geral nas mãos de famílias e empresas ligadas ao poder. Alves dos Reis pretendia obter no Banco de Portugal força suficiente para tornar “legais” as suas emissões “clandestinas” de notas.
É que, de facto, o que distinguia aquelas notas falsas das notas oficiais não estava nas próprias notas, na sua composição físico-química, em qualquer das suas qualidades materiais. A “única” diferença entre aquelas notas falsas e as notas legais era a sua inserção em certos aspectos da organização social do país, nas leis do país e na distribuição de competências que dessas leis decorria quanto a certas funções. A única diferença entre aquelas notas falsas e as notas da emissão regular era uma diferença institucional. O que Alves dos Reis se preparava para fazer não era falsificar notas, mas falsificar instituições.

(A informação básica sobre a série de acontecimentos que se narram acima foi recolhida em Francisco TEIXEIRA DA MOTA, Alves Reis – Uma História Portuguesa (4 volumes), Lisboa, Contexto Editora e Público, 1996)