Miguel Araújo - Os Maridos Das Outras
E depois o "pay back":
Si Menor - As mulheres dos outros
A fluidez: tocamos aqui na essência da estabilidade das democracias-mercados. Esta fluidez só pode funcionar através de uma química social capaz de exercer uma pressão permanente, presente em toda a parte e em parte nenhuma, uma espécie de polícia obstinado em seguir cada Robinson-partícula como se fosse a sua própria sombra.
Este gendarme pacífico, silencioso, permanente e sobretudo gratuito estava ao alcance da mão: era a fome! Bastava pensar nisso... e muitos eram os conservadores que, como o Bentham do tempo da revolução industrial, se maravilhavam com o facto de a Natureza regressar a galope até ao social e se encarregar ela mesma de produzir o que era exigido à época pelo mercado de trabalho: uma grande massa submissa e embrutecida pela fome!
Inimigos como são, os dois campos compartilham o mesmo artigo principal da fé: que o Estado-nação é e continuará a ser o soberano absoluto dentro das suas fronteiras. Ambos acreditam que as relações internacionais continuarão a basear-se no duplo postulado da homogeneidade interna e da independência externa, um modelo inventado pelo Tratado de Vestfália de 1648. Ora, por um lado, a fortificação da cidadela é impossível, pelo outro, é desnecessária. Ambos falham em ver que nós já vivemos num mundo diferente, no qual o poder político já não pode ser monopolizado por um único titular. Em vez disso, é distribuído ao longo de uma escala vertical que vai desde o municipal ao nacional, do continental ao global. Ambos os campos parecem ignorar que a história é um processo dinâmico impulsionado por contradições.
Depois do 25 de Abril muita coisa melhorou. Basta ver os números e conhecer o País. Mas ficámos a meio. E estamos a regressar ao passado. A classe média oriunda de famílias pobres está a ser preparada para regressar ao seu lugar de origem. Os pobres a ser preparados para se habituarem, sem esperança, à sua condição. Sem os "privilégios" do Estado Social e sem qualquer condição para entrarem no elevador social que o Estado Providência lhes começou, há tão pouco tempo, a garantir. Enquanto os donos de Portugal e os seus avençados tratam das suas privatizações e das suas parcerias, dizem a quem vive do seu salário: "Não há dinheiro. Qual destas três palavras não percebeu?"
O homem honesto voltou a ser o que trabalha sem direitos, se cala e tudo consente. Esta é a propaganda que nos vendem todos os dias em doses cavalares: tudo o que fizerem será ainda pior para vocês. Empobrecer é inevitável. Resignados na sua pobreza obediente, tudo se pode fazer a quem apenas depende do seu trabalho. O milionário Warren Buffet disse, em 2006: "há guerra de classes, com certeza, mas é a minha classe, a classe rica, que faz a guerra, e estamos a ganhar". Não é só em Portugal que assistimos a este retrocesso.