Rui Tavares tem andado a escrever uma série de artigos no Público, subordinados ao título genérico “Uma refundação democrática?”. O “volume” de hoje é sobre a União Europeia e deixou-me de boca aberta.
Embora eu não tenha nenhum telemóvel com fichas dos políticos e outras personalidades que por aí andam, tenho ideias gerais sobre certas pessoas com intervenção no espaço público. Considero Rui Tavares um deputado europeu honesto e uma pessoa em geral sensata, sem que esta minha opinião seja melindrada pelas vezes em que discordo dele. Esta consideração suave, que é quase o máximo que consigo dar a “pessoas públicas”, hoje tremeu com a sua ideia para a refundação democrática da Europa.
Basicamente, o que Rui Tavares propõe é que o embaixador que chefia a Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia (REPER) passe a ser eleito pelos portugueses, como são eleitos os deputados europeus. A sua justificação radica numa teoria sobre o papel do Conselho (órgão que reúne os governos dos Estados Membros) nas instituições comunitárias. Como, no Parlamento Europeu, os países populosos têm muito mais deputados do que os países pequenos (o que está certo), encontra-se uma compensação numa espécie de “Câmara Alta”, um Senado, onde a representação é estadual e tendencialmente igualitária. Actualmente, o Conselho é uma espécie de Senado da UE, mas dominado pelos governos. Então, avança Tavares, o REPER deveria passar a ser eleito pelos portugueses – um avanço político que este deputado europeu compara à eleição dos senadores americanos directamente pelos eleitorados estaduais e não indirectamente pelos parlamentos de cada Estado federado. Segundo Tavares, assim se dava um passo para transformar o Conselho num Senado eleito.
Confesso que me espanta que uma pessoa como Rui Tavares possa escrever isto. Fundamentalmente por ser uma colossal demonstração de ignorância. Quem representa Portugal nesse tal “Senado” (Conselho e Conselho Europeu) não é o embaixador REPER: são os ministros e o primeiro-ministro. O REPER é um funcionário: um alto funcionário, mas um funcionário. O REPER serve a política do seu país, tal como definida pelo governo do momento, seguindo as respectivas instruções. Qualquer proposta sobre a transformação do Conselho na Câmara Alta do Parlamento Europeu, além de estar muito longe de ser nova, só pode incidir sobre os políticos que aí representam alguma coisa, não sobre funcionários. Esta confusão, lamento dizê-lo quando está em causa Rui Tavares, é colocar a ignorância ao serviço de uma proposta popularucha.
Para levar o que Rui Tavares propõe às suas últimas consequências, os portugueses deveriam eleger, suponho que por voto directo, o embaixador chefe da missão de Portugal junto da ONU, já que ninguém duvida que ele anda por lá perto de quem manda. Ou, ainda, os portugueses deveriam eleger o director-geral de impostos, já que o seu cargo é tão importante para a nossa vida. Não, Rui Tavares, a política democrática não se faz com tiro ao alvo contra os “burocratas” que servem o país, gostemos ou não gostemos deles. O tiro ao alvo contra a diplomacia pode servir os instintos básicos dos que têm uma concepção caseira da política democrática, mas não tem nada a ver com uma refundação democrática. Cavar na ignorância é, pelo contrário, uma verdadeira “afundação” da democracia.