29.11.10

o triunfo do jornal de sexta


Revelações do Wikileaks. EUA alargaram espionagem a líderes estrangeiros.

Pode haver uma ou outra revelação, no meio do imenso pacote fornecido pela Wikileaks, que seja de relevante interesse público. Contudo, pelo que se pode ler, até ao momento, trata-se, pelo menos em 99,9999% das "informações", de pura coscuvilhice. Claro que há sempre uma quota de almas puras que abrem a boca de espanto quando "se descobre" que as grandes potências fazem espionagem a torto e a direito. Claro que há sempre uns cândidos que pensam que os "grandes líderes" se amam intensamente a partir do momento em que entram em acordos de comércio livre - e ficam muito decepcionados quando descobrem que isso são apenas negócios estrangeiros. É essa pureza e candura, que afinal não passa de ignorância ou pura distracção, que é explorada por estas "revelações". A verdadeira crítica das relações internacionais, que passa pela análise do que é força e do que é direito na arena global, que passa pela questão da efectividade do direito internacional - não passa nada por estes incidentes. Mas a verdadeira crítica do que quer que seja não interessa nada a estes cavaleiros da revelação escandalosa.
Todos nós, no seio dos nossos lares e com os nossos amigos, dizemos coisas que, publicadas nos jornais, pareceriam enormidades. E/ou fazemos coisas que poderiam cair sob a alçada da lei. Nem por isso se torna sensato um dito muito comum dos partidários da invasão de privacidade: "eu não tenho nada a esconder, podem escutar-me à vontade". O mito da completa "transparência", a complacência com as quebras da reserva da interioridade no caso da vida privada, é um tique totalitário. Transposta para a vida institucional, concebendo como "oficiais e publicáveis" quaisquer palavras escritas, ditas - e talvez até imaginadas - esta mitologia é, no mínimo, devedora de uma concepção estranha da forma como funcionam os humanos. Dar relevância pública ao facto de um diplomata qualquer achar que o presidente francês é autoritário - adianta o quê à gestão da coisa pública mundial? Publicar que a Arábia Saudita quer que o Irão seja bombardeado - ajuda o quê à resolução do puzzle em causa? Nada, não adianta nada. Mas perturba muita coisa. O que se perde é, a meu ver, muito mais do que se ganha. A menos que se pense que a política passará a ser feita por máquinas, e que as máquinas serão mais éticas do que os humanos, tudo isto serve apenas para tornar mais poluídas as relações internacionais e para desviar das questões relevantes a percepção do mundo que temos.

O 11 de Setembro da diplomacia dos EUA? Talvez, antes, o triunfo do "jornal de sexta". Isto é o estilo de um certo telejornal de sexta-feira elevado ao estatuto de paradigma nas relações internacionais.


28.11.10

Nuno Júdice diz um poema de sua autoria


"Torre de Babel", de Nuno Júdice por Nuno Júdice


CCB, 21-03-2010, encontrado aqui

conhecimento de causa


Passos Coelho diz que serão necessárias pelo menos duas legislaturas para que o país volte a crescer. “Corrigir os últimos 15 anos de irresponsabilidade vai demorar vários anos de dificuldades e até de penúria - nunca menos de duas legislaturas”, avisou.

Passos Coelho sabe do que fala. Pelo menos em dois aspectos. Sabe que é preciso tempo para que as políticas dêem resultados visíveis a olho nu. Deve ter sido por isso que o PSD investiu tudo, nos últimos anos, em evitar - a maior parte das vezes por meios extra-políticos - que o PS pudesse governar com tempo. E Passos Coelho também sabe do que fala quando fala de irresponsabilidade: da longa coligação negativa, do actual um-PSD-colaborante-das-8-às-10-e-um-PSD-traquinas-ate-ao-deitar. É o estilo com a verdade me enganas.

o problema das rosas


Isabel Sabino, São rosas, meu, 2010
(na Arte Lisboa 2010, que encerra hoje)

estudos


João Queiroz, Liber Studiorum, 1999-2010 (na exposição Professores, CAM)

bastonadas


De repente lembrei-me que houve eleições na Ordem dos Advogados e ainda não sabia o resultado. No sítio da OA diz que Marinho e Pinto foi reeleito bastonário, parece que com margem folgada. Não dei conta de grandes notícias sobre o assunto nos meios em rede. Fiz uma googlada e parece que há mais notícias sobre as eleições de 2007 do que sobre estas. Por que será?

26.11.10

o governo desligou o aquecimento central?


Está frio.

(Esculturas de gelo de Néle Azevedo)

a crise é para todos. mas não é igual para todos.


Segundo um estudo do FMI, o fosso entre ricos e pobres esteve na origem da crise financeira.
Prossegue o i :
O crescimento do fosso entre ricos e pobres esteve na base da crise financeira actual e da Grande Depressão dos anos 30. Segundo um estudo feito pelos técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI), há uma relação causa/efeito entre uma maior desigualdade na distribuição de rendimentos e a criação de condições para o surgimento de uma crise financeira. Processos que ocorreram nos anos 20, antes da Grande Depressão, e agora, antes da explosão da crise financeira.
O estudo é feito a partir de dados da economia norte-americana. No entanto, o modelo foi replicado em grande parte dos países desenvolvidos. Segundo dados do Eurostat, Portugal é o segundo país da zona euro com maior desigualdade na distribuição de rendimento entre os 20% mais ricos e 20% mais pobres, apenas ultrapassado por Espanha. Um fosso que esteve a subir até 2003 e que tem diminuído lentamente desde esse ano.
(...)
"O mecanismo-chave é que os investidores usam parte do seu rendimento mais elevado para comprar activos financeiros suportados por empréstimos de trabalhadores", pode ler-se no estudo. "Ao fazê-lo, permitem aos trabalhadores atenuarem a queda do consumo que resulta da sua perda de rendimento. Contudo, a subida contínua do endividamento dos trabalhadores gera fragilidades financeiras que, eventualmente, levam a uma crise financeira."
Vale a pena pensar nestas coisas.

sobre o recheio do inferno


Alexandre Abreu, no Ladrões de Bicicletas, a defender a tese de que, em matéria de "inovação social", de boas intenções está o inferno cheio:
«Os discursos e práticas das políticas sociais e do desenvolvimento são regularmente tomados de assalto por novas modas (...): Empoderamento (“empowerment”), microcrédito, capital humano, capital social ou inovação social são apenas alguns dos exemplos mais salientes das últimas três décadas. (...) Não é por acaso que cada um dos exemplos indicados em cima tem servido funcionalmente, de uma forma ou de outra, a agenda neoliberal (...). Ou como um conceito transgressor e progressista se torna funcional no contexto neoliberal – e como de boas intenções está o inferno cheio.»
Paulo Pedroso, no Banco Corrido, replica que o inferno está é cheio de grandes teorias que nada mudaram:
«[D]o microcrédito à inovação social, passando pelo empowerment, tenho uma visão completamente diferente de Alexandre Abreu do que deixaram. Nenhuma delas tornou o mundo pior do que era e se nenhuma delas provocou a revolução que alguns desejam, também não vejo onde integraram a ortodoxia neoliberal, que as olha da altura do poder com um misto de desdém e simpatia condescendente. Mas mudaram vidas. Poucas? Algumas. Mesmo assim, talvez milhões, um número que nunca me parece pequeno. (...) [D]esprezar as experiências localizadas, tratadas como "funcionais" ao modelo actual é negar o poder das práticas minoritárias e alternativas, localizadas e diferentes e, se o inferno está cheio de boas intenções, está ainda mais cheio de retóricas e grandes teorias que nunca conseguiram inspirar nenhuma acção transformadora. »
Acho que vale a pena cotejar os dois textos. Acho que nenhum deles tem completa razão. Alexandre Abreu parece-me demasiado apressado a desconsiderar a importância de experiências micro que, não sendo revolucionárias, retiram pessoas dos dentes mais aguçados da engrenagem - e podem, eventualmente, servir de exemplo da possibilidade de se construir outra vida. Paulo Pedroso parece-me demasiado benevolente com experiências que, dando resultados simpáticos para muitas pessoas, podem por vezes ser apenas a face pós-moderna da velha estratégia da (falsa) caridade servindo para evitar que se pense em verdadeira justiça social. Acrescentaria, contudo, o seguinte: "por nossas mãos, por nossas mãos". Quer dizer: acredito já muito pouco em transformações sociais globais que não passem pela experimentação micro e pelo envolvimento concreto e responsável de cada um.

temas "desinteressantes"


António Marujo, no Público:
«Pode o Papa dizer que "libertar" a humanidade da fome é uma das tarefas "mais urgentes" no mundo (fê-lo há um mês, em mensagem à FAO); pode ele gritar pela reforma necessária do sistema financeiro (na última encíclica, Caritas in Veritate, e em várias outras ocasiões, a última das quais há dez dias). Pode ainda dizer, como fez João Paulo II, a propósito da invasão do Iraque, que a guerra "é uma derrota da humanidade". Pode até pedir o fim do arsenal de armamento nuclear e do comércio de armas ou uma urgente reforma agrária - já o fizeram João XXIII; Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. Nenhum destes temas provocará a mesma excitação que o preservativo (ou a enésima condenação do aborto), num império mediático fundamentalmente acrítico em relação aos verdadeiros e obscuros poderes: esses que radicam no sistema financeiro e nos grandes grupos económicos, que os governos deixaram de querer controlar.»
Sim, há temas que parecem escondidos. Vá lá saber-se por quê.

o homem de ferro


Terminei o dia de ontem, dia de greve geral em Portugal, na Cinemateca Nacional. Está lá a decorrer o Ciclo «“SOLIDARIEDADE” – 30 ANOS», com cinematografia directamente marcada pela história recente da Polónia. Ontem foi "O Homem de Ferro", de Andrzej Wajda, realizado em 1981.
Realizado no auge da agitação política que se seguiu à fundação de Solidariedade, O HOMEM DE FERRO foi lançado apenas seis meses antes da proclamação da lei marcial. É um filme verdadeiramente político, situado no presente, em que um jornalista de televisão recebe a missão de denegrir os grevistas do estaleiro naval de Gdansk, onde nasceu Solidariedade. Wajda insere imagens de arquivo dos acontecimentos políticos de 1968 (quando a Polónia foi varrida por uma onda de purgas políticas, com forte conotação anti-semita) e 1970, ano de uma grande greve nos estaleiros de Gdansk, duramente reprimida (dezenas de operários foram mortos).
Lembro-me de quando, entre nós, mesmo na chamada esquerda democrática, a causa da oposição ao regime polaco, uma oposição ao mesmo tempo operária e intelectual, política e religiosa, heterogénea, era uma causa pouco apoiada pelos que estão sempre a navegar nos temas dominantes da política do momento. Em Portugal, mexendo-se por essas causas, havia uns poucos socialistas, que se encontravam numas sessões obscuras lado a lado com algumas espécies de trotskistas e outros minoritários, enquanto uma parte importante da "esquerda oficial" apostava que nada daquilo iria dar em nada.

24.11.10

saia um periscópio


A Juíza Desembargadora Adelina Barradas de Oliveira publica no seu blogue do Expresso, Ré em Causa Própria, um texto do Dr. Victor Calvete, Assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, intitulado Da inconstitucionalidade dos cortes salariais previstos no OE. Não tenho competência, nem a mais pequena, para discutir com um Assistente de Direito em Coimbra, nem com quem quer que seja, tão interessante questão jurídica. Apenas diria que, independentemente de concordar ou não com o tal corte neste caso concreto, se a Constituição não permite medidas que podem em certas circunstâncias ser incontornáveis - mude-se a Constituição.
Mas não é isso que me arrasta para aqui. É somente um excerto do parágrafo inicial do tal texto. Reza assim:
Os nossos governantes parecem especialmente atreitos a acreditar nesse nominalismo: plantam-se aero-geradores a esmo - e isso é uma "revolução energética"; resolve-se aspergir as escolas com computadores de brincar - e isso é um "choque tecnológico"; distribuem-se diplomas a eito a quem os queira - e isso é "requalificação profissional".
Coimbra tem muito encanto. Mas, manifestamente, há por lá sítios onde se vê pouco e mal a realidade. Já descontando a obscura referência ao programa Novas Oportunidades, que tende a ser visto por uma certa "elite" (que teve a sorte de ter a sua oportunidade a tempo e horas) como dar "pérolas a porcos", restam duas referências mais: os "aero-geradores a esmo" e os "computadores de brincar". Esses dois brincos de retórica, a abrir uma "tese" sobre matéria constitucional, mostram à saciedade até onde pode ir a arrogância da ignorância. Está aqui está aí a senhora Sarah Palin a convidar o ilustre Assistente para a assessorar na próxima corrida à Casa Branca.

(Sugestão de leitura, só para aero-geradores a esmo: aqui.)

ler


Tríade

O alívio que César terá sentido na manhã de Farsália,
ao pensar: É hoje a batalha.
O alívio que terá sentido Carlos I ao ver a alva no postigo
e pensar: É hoje o dia do patíbulo, da coragem e do cutelo.
O alívio que tu e eu sentiremos no instante que precede a morte,
quando a sorte nos livrar do triste costume de ser alguém
e do peso do universo.

Jorge Luis Borges, in Os conjurados, 1985

(lembrado pelo Peregrino)

o prejuízo das greves


Acho tão legítimo fazer como não fazer greve. Estar contra como estar a favor da greve. Eu não faço esta greve. E não suportaria que o soviete local tentasse restringir o meu direito a ir trabalhar. Como não suportaria que o patrão ou o chefe tentasse restringir o meu direito à greve. Mas, tendo dado uma espreitadela a alguns blogues, tenho que dizer: não engulo o argumento de que "a greve causa prejuízos à economia". Pois causa. Se não causar, é porque não existe. O que não dói não se sente. Temos dores no corpo para sermos alertados para os perigos. Ser contra as greves porque elas "causam prejuízos" é, simplesmente, estar na retranca contra a própria essência desse direito. E, especialmente aos meus amigos socialistas, gostava de lembrar que o "prejuízo das greves" é, desde sempre, um argumento da direita política. Que bem podemos dispensar, nós.

antes de Carvalho da Silva foi...


Perguntei anteriormente neste blogue, com o intuito de começar a refrescar a cultura geral em preparação para a greve geral (sim, não consegui evitar a cacofonia geral/geral), quem precedeu Carvalho da Silva na função de Coordenador da CGTP-IN. Sim, notei nas vossas caras o espanto por não fazerem a mínima ideia dessa transição, que evidentemente não pode ter ocorrido em tempos ancestrais. E notei uma azáfama tremenda em motores de busca com a questão "quem antes de Carvalho da Silva?" - sem grande resultado, deve dizer-se.
Vá lá, eu digo: o nome é Armando Teixeira da Silva, coordenador da CGTP-IN entre 1977 e 1986.

greve geral

(Diego de Rivera, O Homem Controla o Universo, 1934)


Antes das sete da manhã já Carvalho da Silva estava junto à Autoeuropa a fazer um primeiro balanço do arranque da greve geral, que considerava bem sucedido. João Proença juntou-se-lhe pouco depois, corroborando.
Prevejo que a greve geral de hoje será bem sucedida. No aspecto quantitativo (grande adesão, consequências visíveis no quotidiano da esmagadora maioria dos portugueses). E também num outro aspecto, talvez mais essencial: a legitimidade. A greve geral será bem sucedida na questão da legitimidade na medida em que traduz o sentimento, maioritário, de que os sacrifícios pedidos aos portugueses por causa da crise estão injustamente distribuídos. Alguns acharão que o principal culpado desse facto é o governo, outros acharão que a margem de manobra do governo para fazer diferente é escassa – mas, no essencial, a percepção de injustiça é real. Essa luta de convicção nem sequer foi ganha especificamente pelos promotores da greve geral: ela estava já ganha antecipadamente. Eu também estou entre aqueles que acham que esta greve geral expressa um protesto contra uma realidade bem concreta, que é a realidade da injustiça social agravada pela crise. Algumas empresas de nomeada vieram, aliás, recentemente, dar a sua ajudinha à greve geral: encontrando meios legais para contornar os apertos do próximo ano, apertos a que o vulgar cidadão não pode eximir-se, exibiram o seu desprezo pelas dimensões extra-legais da protecção do bem comum: mostraram a sua face amoral, deixaram sair as garras para que se saiba que nesta guerra todas as armas podem ser usadas quando as grossas maquias estão em causa.
A outra face da moeda é que esta greve geral é o espelho do impasse político da esquerda portuguesa (PS, PCP e BE). Por boas ou por más razões, não vou agora discutir isso, o sentimento dominante no país é, hoje, de um "anticapitalismo difuso", dominado pela percepção de que "os de cima" enchem os bolsos com as desgraças dos "de baixo" - e, pior, que nessa guerra os grandes têm todas as armas e os pequenos, nenhumas. Esse sentimento é alimentado por dados objectivos e por comportamentos ostensivos de certos agentes. Se as forças políticas têm o dever de representação, cabe perguntar-lhes, nomeadamente à esquerda, o que pensam fazer sobre isso. Como pensam traduzir isso em políticas, em soluções alternativas. Manifestamente, nenhum dos partidos que, a nosso ver, tinham obrigação de pensar nesses termos, se tem mostrado à altura da tarefa. Se a esquerda, como um todo, continuar a não se entender minimamente sobre uma estratégia de desenvolvimento sustentado para o país, será a direita, civilizada ou trauliteira, a ter a oportunidade de testar as suas soluções. Ou, terceira opção (não opção), o país acomoda-se a fazer o que tem de fazer muito mais devagar do que poderia ser, com maior dispêndio de energias do que seria necessário, envolto em permanente conflitualidade, com legitimidade diminuída provocada pela promessa de distribuição injusta do esforço e da recompensa. E, note-se, se os acomodados, os moles e os oportunistas navegam no barco do esforço dos outros, temos aí uma forma de distribuição injusta. É para este complexo de questões que esta greve geral não dá pistas. Protestar é legítimo, sem dúvida. E devemos estar satisfeitos de viver num país onde se pode fazer uma greve geral em liberdade. Mas, só com essa face, a moeda não rola.



«O atraso de Portugal é grande. A economia é deficitária. Mesmo que se eliminassem todos os lucros da grande burguesia e se procedesse a uma melhor distribuição da riqueza, o produto nacional não asseguraria, ao nível actual, a acumulação necessária para um desenvolvimento rápido e uma vida desafogada para todos os portugueses. Para o melhoramento das condições de vida gerais será necessário aumentar a produção em ritmo acelerado. E isso obrigará não só a investir como a trabalhar mais e melhor.»

Álvaro Cunhal, discurso ao VII Congresso do PCP, Outubro de 1974, citado por Carlos Brito em Álvaro Cunhal, Sete fôlegos do combatente, Ed. Nelson de Matos, Maio de 2010, p. 112



23.11.10

devem ser preparativos para a insurreição. ou então estão a verificar a lista de execuções


Não é a primeira vez que sou ameaçado, na qualidade de autor deste blogue, principalmente por correio electrónico. Desta vez a coisa está melhor. O comentador "Pedro", que aparece na forma que se pode ver nestes comentários a este post, começou uma perseguição, telefonando-me insistentemente para o meu local de trabalho, apesar de já lhe ter comunicado que não pretendo falar com ele por esse meio. Parece que a agressividade incontrolada de certas comentadores não cabe na caixa de comentários. Já falei com um advogado sobre o que se está a passar - e não tenciono ficar quieto se a perseguição continuar. Começou a caça ao homem? Não, a caça ao homem sempre esteve aberta, por sempre ter havido gente que funciona a esse nível.
De qualquer modo, quis deixar aqui a informação aos leitores deste blogue.

vamos lá então começar a refrescar a cultura geral em preparação para a greve geral


Manuel Carvalho da Silva é o actual secretário-geral da CGTP-IN. Antes, tinha sido "coordenador", a designação que então davam nessa central sindical ao respectivo líder nacional. Então, vamos lá a saber: quem precedeu Carvalho da Silva nessa função?

Rodapé. No caso da UGT é fácil: Torres Couto, talvez com receio de que João Proença não saiba explicar-se, desdobra-se em declarações sobre a greve geral, lembrando que "da outra vez", na outra greve geral conjunta, era ele que estava ao comando. Uma ajuda sobre a pergunta acima: da "outra vez" o coordenador da CGTP-IN já era Carvalho da Silva.

Outro rodapé. O que acima se escreve quer dizer alguma coisa. Mas não é o que tenho a dizer sobre a greve geral. Isso fica para amanhã.


22.11.10

o esquecido imbróglio dos 100 mil euros e da condição de recursos


No passado mês de Junho, a propósito da notícia «Apoios sociais vão acabar para famílias com mais de 100 mil euros em dinheiro e acções», publiquei aqui um comentário (os ricos que paguem a crise) que deixou horrorizados alguns editores de blogues com que frequentemente me sinto em sintonia. Por exemplo, o Tiago Tibúrcio ou o João Galamba. Acabei até por me sentir na obrigação de voltar ao assunto (os ricos que paguem a crise, again).
Um dos exemplos que eu dava, para ilustrar a minha discordância com aquela medida de "moralização", era assim apresentado: «Para que servem 100 mil euros? Por exemplo, para fazer face a situações aflitivas de saúde. Goste-se ou não, caro Tiago, vivemos num país em que, se não se tiver uns dinheiros de lado, pode-se morrer à espera do Serviço Nacional de Saúde. Se não está consciente disto, posso contar-lhe exemplos concretos do que isto quer dizer. Ora, pergunto eu, uma família que poupou 100 mil euros para não deixar morrer nem ficar inválido nenhum dos seus membros, por fragilidade do SNS, pode ser obrigada a esturrar esse pé de meia para subsistir numa situação de aflição - enquanto nós inchamos o peito e dizermos que o Estado deve poupar nesses casos?»

Ora, de novo a propósito do meu raciocínio, quero chamar a atenção de quem lê para a seguinte notícia: Relatório anual da Organização Mundial de Saúde: Todos os anos cem milhões ficam pobres por se tratarem. Lê-se no Público: «Portugal é referido pela OMS como um dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) em que parte da população enfrenta dificuldades financeiras para suportar os custos de saúde. “Ninguém deve ser forçado à ruína para se tratar”, indignou-se Margaret Chan, directora-geral da organização.»

Estão agora a ver qual era o meu ponto?

pacifismos e outras narrativas


(Foto de Juan Medina, da Reuters)

A fotografia acima é publicada por Carlos Botelho, d'O Cachimbo de Magritte, para ilustrar o que chama "zelo repressivo".
O Público escreveu, a propósito: «Os manifestantes anti-NATO concentraram-se esta manhã no cruzamento entre as avenidas Infante Dom Henrique e de Pádua com o objectivo de cortar a circulação no sentido da Estação do Oriente. Deitaram-se no chão da via, acorrentados e pintados de vermelho. As autoridades despacharam quatro carrinhas, tendo cortado o trânsito na área circundante e procedido à remoção dos manifestantes da estrada.»
Primeira nota: há quem tenha querido engolir o truque da vermelhidão. Dá "bom aspecto" tanto sangue para sugerir violência policial. "Pena" que seja tinta que os manifestantes levaram para impressionar.

No já citado post, ainda se faz uma ligação para o local onde o 5 dias chama a atenção para dois vídeos sobre a mesma manifestação. No vídeo que fica aqui abaixo é lido um comunicado dos participantes naquela acção. A acção auto-qualifica-se de desobediência civil. Dizem que optaram pela desobediência civil por, dessa forma, obterem um "efeito mais claro". Dizem que a desobediência civil é uma forma de exercício da cidadania, quando o Estado viola direitos e princípios fundamentais. Associam essa opção à impossibilidade da liberdade. Invocam o direito de resistência previsto na Constituição da República. Dizem que, embora não usando da força, resistirão a qualquer ordem que ofenda os direitos, liberdades e garantias. Os "políticos e militares que constituem a NATO" violam princípios fundamentais e "cometem crimes contra a vida". Depois lembram-nos que Portugal entrou para a NATO no tempo de Salazar, quando aqui se vivia em ditadura, pelo que a NATO não é democrática, dizem. Questionam a legitimidade da NATO invocando a invasão do Iraque e a guerra no Afeganistão, que consideram injusta. Dizem que "esta democracia" chegou a um "estado de ruína". (Achando que o meu resumo pode ser tendencioso, podem partir directamente para o vídeo.)


As declarações constantes deste vídeo representam uma parte não dispicienda da "ideologia informal" de certas correntes "alternativas". Trata-se de uma mistura heterogénea de desprezo pelas democracias que temos (a invocação do direito de resistência navega na ideia geral de que vivemos debaixo de um regime repressivo, mesmo ditatorial), de pacifismo simplista (há uma via directa para um mundo em paz, que só não é trilhada devido à maldade dos "políticos e militares que constituem a NATO", quer dizer, dos governos democráticos dos países membros), de renúncia à análise (exemplificada pela mistura da invasão do Iraque com a guerra do Afeganistão, passando ao lado do envolvimento da ONU naquilo que chamam uma guerra injusta), de vistas curtas sobre a realidade (o que esperam que aconteça de bom no Afeganistão quando os sacanas dos ocidentais de lá saírem? ou isso "não é da nossa conta"?). Esta ideologia iluminada é bem ilustrada por uma frase "lapidar" da voz que funciona como porta-voz do grupo no vídeo acima: «É preciso pôr em evidência que hoje em dia a democracia não é mais do que a articulação entre o estado de guerra de um lado e o fascismo financeiro do outro.» Ficamos à espera que nos expliquem qual é a outra democracia que nos querem oferecer. Só esperamos é que não nos imponham essa "outra democracia" pelos mesmos métodos "não violentos" que outras utopias usaram ao longo da história.

Devo confessar que estou um bocadinho cansado de iluminados que continuam a querer vender-nos o céu na Terra, já e fácil, como se a comunidade dos humanos não fosse muito mais complexa do que isso. A NATO, com os seus erros e imperfeições, é um instrumento de coordenação de esforços de segurança a nível internacional. Deve evoluir, talvez deva vir a desaparecer no futuro, já que foi efectivamente criada noutro quadro e com outro horizonte. Mas não se fazem e desfazem grandes organizações internacionais como quem come gelados na praia. A pulverização - cada um vai para seu lado - não é viável pelo menos enquanto a ONU não tiver os meios materiais e políticos para garantir a segurança global. E isso não está para breve. E os europeus em particular, pouco dispostos como continuam a estar para investir na sua própria segurança, não podem de ânimo leve enxotar os americanos. O mundo continua perigoso, na maior parte dos países não deixam os "alternativos" fazer "desobediências civis", na maior parte do mundo os manifestantes não precisam de se pintar de vermelho antes de irem para as manifestações (há lá quem os "pinte").

No tempo da "guerra fria" já nos debatemos com várias concepções muito diferentes de "pacifismo". Havia um pacifismo ingénuo, anti-política, que achava que a guerra estava nas armas. Quando isso não é verdade: a guerra está na política, na vontade de usar as armas; a fraqueza de uma das partes em termos de armamento pode ser um convite à guerra, um convite aos fortes para usarem as suas armas. Havia um pacifismo enviesado - bem caracterizado por aquela declaração de Mitterrand: "os misseis estão a Leste, os pacifistas a Oeste". Era o pacifismo que servia, de bom ou meu grado, os interesses do bloco soviético. E havia um pacifismo político da esquerda democrática, que queria medidas concretas de criação de confiança, desarmamento progressivo e mútuo - e, ao mesmo tempo, democratização, como última e única verdadeira garantia de paz. São caminhos diferentes que continuam a desafiar o mundo. É aí que o debate concreto acerca da construção da paz tem um sentido democrático. É nesse debate que a agitação da rua, só por si, não tem nada de interessante a dizer. Por muito que console as consciências radicais da malta que genuinamente sofre com o estado do mundo. Nessa procura concreta, que não faz de conta que é simples o que realmente é complexo, os contributos de alguns dos "políticos e militares" desprezados pelos manifestantes são mais relevantes para paz do que a facilidade em invocar, por dá cá aquela palha, o direito à resistência e à desobediência civil.

20.11.10

Paz sim, claro


(Fotos de Porfírio Silva.)

Saí de um almoço com um membro de uma delegação a essas variadas cimeiras internacionais deste fim de semana em Lisboa directamente para a rua onde se aproximava a manifestação "Paz Sim, NATO não".


Como estas manifestações pacifistas não se fazem sem exércitos, havia um mar de bandeiras do PCP.


O BE levou um batalhão pequeno mas unido, compacto e com uma fanfarra animada.



O tom deste pacifismo é muito antigo: as armas más são as da NATO. Nenhuma surpresa por esse lado.


Já me surpreendeu um bocadinho a completa amálgama do discurso contra a NATO, contra o governo, contra Sócrates, pela greve geral. Até parece ter havido quem tenha trocado os dizeres, trazendo desta vez as pinturas que eram para ter saído à rua daqui a mais uns dias - sem qualquer menção à paz.


A "proclamação", proposta às massas por Maria do Céu Guerra (um nome engraçado para uma manif tão pacifista), oficializava essa amálgama de pacifismo com oposição e greve geral (que foi mencionada como coisa exclusivamente da CGTP, apesar de ser sabido que a UGT também entra). A proclamação foi "aprovada" por aclamação, um método conhecido.


O aparato policial, pontualmente exuberante, não mexeu uma palha.


A cidade parecia despedir-se do fim de semana maluco sem sinal de aborrecimento.


Mas, afinal, a manif oficial tinha acabado demasiado cedo e havia uma malta que tinha um bocado livre e queria continuar na rua (manifestação não autorizada, que começou nos Restauradores).


Obviamente, estas coisas causam embaraços aos cidadãos. A parte baixa da Calçada da Glória estava controlada por uma força policial, que deixava passar para a praça, mas não deixava sair da praça. Um homem queixava-se ao polícia que entrava às seis da tarde na sex shop ali mesmo e não podia chegar atrasado. Acabou por conseguir passar, já que os manifestantes se deslocavam no sentido do rio e a força policial acompanhava.

Os manifestantes estavam com muita energia, pulavam muito, gritavam palavras de ordem bastante primárias, usavam truques de bairro (do tipo "quem não pula é fascista"), mas no tocante a violência não dariam nem para organizar uma claque de futebol da terceira divisão distrital. Os polícias concentravam-se em proteger as montras, para que os turistas pudessem continuar a bebericar chá no Nicola.

Os manifestantes, que não chegaram para desmentir que as cimeiras de Lisboa foram uma excepção à violência habitual, foram até ao Terreiro do Paço pela Rua Augusta e voltaram, em parte pelas laterais, dando momentaneamente a ideia de que alguém queria fintar a polícia.


Sem consequências.


A vida continua. O mundo não ficou mais pacífico por causa desta movimentação. Mas, com sorte, as cimeiras deste fim de semana em Lisboa terão efeitos positivos em alguns dos desarranjos que se têm mostrado difíceis de gerir pela comunidade internacional.

NATO anuncia acordo histórico com a Rússia
.

NATO e Afeganistão assinam parceria de longo prazo.

uma iluminação divina


Papa Bento XVI admite uso do preservativo para travar a sida.
Continua o Público: «Pela primeira vez na história um Papa admitiu a utilização do preservativo “para reduzir “em certos casos” os riscos de contaminação” do vírus da sida, segundo um livro de entrevistas que será lançado na terça-feira. O Papa Bento XVI mantém que não considera o preservativo “uma solução verdadeira e moral”, mas admite a sua utilização em casos concretos: “Num ou noutro caso, embora seja utilizado para diminuir o risco de contágio, o preservativo pode ser um primeiro passo na direcção de uma sexualidade vivida de outro modo, mais humana.”»

Os tempos estão difíceis para todos. E há, portanto, que desencantar trabalho. Até os teólogos precisam. Aquela coisa de o preservativo poder ser utilizado "num ou noutro caso" abre um imenso filão de interpretações possíveis. Alimentando, pois, a procura de teólogos para essa safra.

(Agora a sério. Já era tempo de a Igreja Católica tratar estes assuntos de vida ou morte com um mínimo de lucidez. Já estamos fartos de fundamentalismos e de radicalismos iluminados, que tendem a fazer vencimento nas cúpulas destes aparelhos complexos, com insuportável insensibilidade à vida concretas das pessoas.)

(Grafito em Madrid, fotografado por Porfírio Silva.)

Fim de Citação, na Cornucópia


Luís Miguel Cintra é, a meu ver, um excelente encenador e um grande actor de teatro. Como encenador, a dificuldade dos seus trabalhos é o resultado de mostrar sempre o aspecto mais metafísico, o plano mais abstracto, a dor mais profunda de qualquer texto. E nunca tenta tornar a vida mais doce ao espectador, honra lhe seja feita. Como actor, consegue convencer-nos de que está a fingir a dor que deveras sente.
Agora está na Cornucópia, onde no sentimos em sua casa, com um novo espectáculo: "Fim de Citação". Este espectáculo nasce de um imprevisto, de um buraco no mundo aberto por uma co-produção que não pôde realizar-se. E, como ele diz e bem, um imprevisto pode ser uma oportunidade. Neste caso, não acho que se tenha dado esse caso feliz.
Cintra diz que está na hora de se aventurar no caminho de ser ele próprio autor. Com esta série de recortes de espectáculos anteriores - e, talvez também, de espectáculos possíveis - não me parece que se tenha aproximado sequer de nos mostrar que pode ser um autor mais ou menos tão bom como é a encenar e a representar. Se é para ser autor assim, mais vale estar quieto. Em primeiro lugar, não gosto de teatro sobre o teatro - mesmo quando sai da pena de grandes autores. Gosto do teatro que fala do que está cá fora, nunca gostei suficientemente de uma peça sobre o que se passa dentro das casas de teatro. Em segundo lugar, esta peça tem um toque autobiográfico - e nela Cintra trata-se mal, demasiado mal. É preciso ter coragem para apontar o seu dedo às suas próprias fraquezas, mas dispenso o exercício. Aprecio a ausência de auto-comiseração, mas dispenso que Cintra faça espectáculos de humildade pessoal.
Não deixarei de insistir em ir à Cornucópia, espectáculo atrás de espectáculo, até ao fim dos dias. Mas ontem não gostei. Se bem que compreenda que uma companhia precisa de continuar a funcionar. É a vida.


cidadania, dizem os senhores magistrados


Quando haja uma noção de serviço ao interesse comum, e compreendendo-se que não existam no mundo dos humanos milagres, precisam-se mecanismos que promovam a maior adesão aos melhores padrões do tal serviço.
A diferenciação pelo mérito é um desses mecanismos. Os melhores são recompensados na justa proporção, os que se acomodam já retiram por suas próprias mãos (pelo descanso da acomodação) a recompensa que não esperaram que lhes fosse reconhecida como merecida. Os sistemas de avaliação com reflexos na carreira constituem um tipo de mecanismo pensado para essa diferenciação pelo mérito. Há, contudo, formas várias de torpedear tal mecanismo. Uma forma de boicote consiste em tornar a avaliação inoperante: por exemplo, dando a todos, ou quase, a nota máxima, consegue-se que a avaliação não sirva para nada, excepto calar os distraídos que querem mesmo ser distraídos.
O uso destas formas de aldrabrar os mecanismos de preservação do interesse comum, interesse comum que assim se vê preterido pela pura e simples defesa dos interesses privados dos agentes, tem de ser seriamente encarado como um ataque à comunidade. Ataque à comunidade por um grupo específico se comportar de molde a defraudar todos os outros, destruindo um mecanismos de monitorização essencial à confiança mútua e necessário para precaver e combater os comportamentos oportunistas.
Uma das formas de evitar esta falsificação consiste em criar quotas para os classificados como "melhores dos melhores". Se nem todos podem ser generais, introduz-se um princípio de comparação que estimula a verdade do mecanismo. Já quando foi a estória da avaliação docente essa questão se colocou.
A história repete-se. Mostrando como só é ingénuo quem quer. E como alguns, além de não serem ingénuos, sabem bem aproveitar-se das fraquezas do sistema. Tudo isto a propósito da seguinte notícia do Expresso de hoje: o número de procuradores do Ministério Público com a nota máxima duplicou nos últimos cinco anos; mais de 80% têm entre Muito Bom e Bom com distinção; trata-se apenas, parece, de uma astúcia para arredondar a carreira.


Entretanto (ah, isto está tudo ligado, uma visão mesmo a calhar para partidários das teorias da conspiração), o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público vem dizer-nos que a adesão à greve geral, "mais do que um direito, é um dever de cidadania de que nenhum português poderá demitir-se". Tenho a declarar, a benefício dos tais magistrados, ou do respectivo sindicato, que não recebo lições de cidadania desse formato nem com esse autor. E acho que é escandaloso que um sindicato de magistrados me queira convencer de que a greve se tornou um dever para um cidadão. Só se for na república dos magistrados, ora essa!


19.11.10

Obama foi a Belém lavar o carro


E eu a pensar que era uma visita de Estado.


o que podem as rotundas interessar a um filósofo?

(Foto de Mary F. Calvert, para o The New York Times)

Uma rotunda pode ser um objecto muito interessante para pensar. Espantados? Ora ouçam.

Uma rotunda, como a rotunda do Marquês em Lisboa, serve para criar uma certa ordem na circulação automóvel. Parece um objecto simples e parece tolo querer reflectir sobre rotundas. Só que, por vezes, as aparências iludem. Afinal, como funciona uma rotunda?
Em primeiro lugar, a rotunda fornece um constrangimento material: não se pode simplesmente ir em frente, para prosseguir em segurança é preciso contornar. Em muitas rotundas, as suas próprias características físicas impedem que se continue simplesmente em frente. Desde logo, isto quer dizer que há um "detalhe" do mundo físico que foi manipulado para modificar o comportamento humano. Aquele "objecto" é mais um "dispositivo", algo que serve uma finalidade, que foi feito e colocado em determinada posição com um propósito específico.
Em segundo lugar, que a rotunda funcione como se espera requer que os utilizadores reconheçam uma certa norma. No caso de Portugal, a norma manda que se contorne a rotunda pela direita. No caso de outros países, que se contorne pela esquerda. A rotunda só funciona devidamente porque a generalidade dos seus utilizadores conhecem essa norma (convenção: tanto faz circular pela direita como pela esquerda, desde que todos façam do mesmo modo) e respeitam-na. Mesmo assim, é possível que, em circunstâncias especiais, reconhecíveis apesar de dificilmente antecipáveis, se possa fugir a essa regra: um carro da polícia ou uma ambulância, em caso de perturbação muito grave, poderão circular na rotunda em sentido inverso. Isto quer dizer que a rotunda, como dispositivo, integra um aspecto "mental", uma norma, que não está talhada em nenhum aspecto material do mundo, existindo no ordenamento institucional: faz parte do código da estrada, que é uma lei, garantida por mecanismos institucionais mais gerais que estão articulados com muitos outros aspectos institucionais (outras leis, polícias, tribunais, penalizações possíveis, etc.).
A rotunda exemplifica, deste modo, uma característica talvez específica das sociedades humanas: estarem organizadas com o apoio de "artefactos de coordenação" em que "aspectos materiais" e "aspectos mentais" do ambiente são articulados de forma específica para se obter um certo tipo de ordem.

Se soubermos superar a generalizada falta de interesse pela profundidade dos detalhes, se formos capazes de interrogar o que parece evidente ou imediato, perceberemos que o "exemplo da rotunda" só é simples devido à nossa habituação. Não há presidente de câmara que se preze, por esse Portugal fora, que não tenha semeado rotundas como cogumelos, é certo. Só que... Vejam esta notícia: o pessoal da "outra banda do rio" está a descobrir as rotundas - e está um bocado às aranhas com elas, como se lê no The New York Times:
Traffic is going in circles. Armed with mounting data showing that roundabouts are safer, cheaper to maintain and friendlier to the environment, transportation experts around the country are persuading communities to replace traditional intersections with them. There’s just one problem: Americans don’t know how to navigate them. “There’s a lot of what I call irrational opposition,” said Eugene R. Russell Sr., a civil engineering professor at Kansas State University and chairman of a national task force on roundabouts, sounding mildly exasperated in a telephone interview. “People don’t understand. They just don’t understand roundabouts.”
O jornal lembra mesmo que o cinema já brincou com esta incapacidade para conduzir em rotundas, com potenciais efeitos trágico-cómicos (cena de European Vacation).

Afinal, uma rotunda pode dar que pensar...

(Obrigado, Matthijs, por me teres sinalizado a notícia.)

as benevolentes


Há assuntos que são tão escabrosos que me fazem fugir de escrever sobre eles. Às vezes pela necessidade de não dar ainda mais eco, por pequeno que seja (como pequeno é o eco deste blogue), às pulhices que campeiam no espaço público. Estão nessa categoria os episódios concretos da mentalidade de esbirro em acção. Algo que o Diário de Notícias fez recentemente, uma vez mais graças à degradação da "justiça", é o espécime perfeito desses fenómenos. Convicto de que qualquer pessoa bem formada perceberia a baixeza do acto, e convicto ainda de que não valeria a pena falar para quem ainda não tivesse consciência do seu significado, deixei passar.
Corto esse silêncio para pedir que seja lido o texto de Fernanda Câncio, Jornalismo totalitário, pela razão simples, completamente subjectiva, de que ele acrescentou algo à minha reflexão pessoal. Quando a jornalista escreve «A risota de Ana Gomes é o retrato da bonomia com que a generalidade das pessoas assiste à edificação de um totalitarismo que as devia aterrar», lembra que o vírus da indecência, a fraqueza moral de pactuar com o inaceitável, nem que seja com um encolher de ombros, é um perigo que corremos todos. Vem um momento de distracção e já está: fomos enrolados na armadilha moral de piscar o olho ao carrasco.
Falamos aqui do pecado da benevolência.
Um pecado moderno como há poucos. Um pecado que poderia afinal dar sentido útil ao dito "o inferno são os outros".

18.11.10

"O que se vai discutir é do âmbito do conceito democrático"


Sem medo, é como o Luís Novaes Tito coloca os pontos nos iiiii, quanto à cimeira da NATO, lá na sua barbearia.

mãos sujas


Milhares de documentos confirmam apoio dos EUA ao golpe de Pinochet.
E também se conhece o apoio da Baronesa Thatcher ao ditador, depois de ser muito público e sabido o torcionário que tinha sido.
Só para exemplificar.

Mesmo assim andam por aí muitos "comentadores" que fingem acreditar que só em nome da esquerda se cometeram crimes. E que falam do "ocidente" e da "direita" como depositários de uma pureza em que só acreditam os tontos-por-quererem-ser-tontos.

o governo de António Guterres deve ter sido abaixo de cão


Para ter tido um Secretário de Estado deste nível...

Nem é pelo "argumento" ser débil, como explicam os "alvos". É mesmo pela falta de nível a imitar uma estética "à Quarantino".

a teoria pragmática da observação


SILVA, Porfírio, "A teoria pragmática da observação", in Kairos, 1 (Outubro 2010), pp. 75-92
Este texto apresenta e discute a teoria pragmática da observação, um dos elementos da contribuição de Paul Feyerabend para a “nova filosofia da ciência”, que, nas décadas centrais do século XX, procurou renovar a filosofia da ciência a partir de uma maior atenção aos aspectos históricos do empreendimento científico. A teoria pragmática da observação é enquadrada no movimento teórico de problematização do estatuto da observação como fundamento das teorias científicas, movimento que constitui uma reacção às tendências fundacionalistas no seio do empirismo. A proposta de Feyerabend é exposta, tendo em vista a conveniência de sublinhar algumas das suas consequências menos intuitivas, para cujo efeito se propõe uma experiência de pensamento. A teoria exposta é depois analisada, quer à luz de algumas das críticas que ao tempo despertou, quer à luz de uma sua possível reconsideração.

Em linha, aqui.

post com bola vermelha (é um aviso)


De acordo com Eduardo Pitta, o que se segue é um excerto de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, sobre o uso da expressão "vá para o caralho" numa conversa entre um cabo da GNR e um seu superior hierárquico:
«[...] A utilização da expressão não é ofensiva, mas sim um modo de verbalizar estados de alma [...] pois tal resulta da experiência comum, que caralho é palavra usada por alguns (muitos) para expressar, definir, explicar ou enfatizar toda uma gama de sentimentos humanos e diversos estados de ânimo. Por exemplo pró caralho é usado para representar algo excessivo. Seja grande ou pequeno de mais. Serve para referenciar realidades numéricas indefinidas: chove pra caralho..., o Cristiano Ronaldo joga pra caralho... [...] não há nada a que não se possa juntar um caralho, funcionando este como verdadeira muleta oratória.»
Aqui se explicam as circunstâncias. Atenuantes?

a investigação forense continua pelas ruas da amargura


400 anos depois, a morte de Tycho Brahe ainda é um caso em aberto.
Continua o Público: «Há várias teses sobre a morte de um grande nome da astronomia do século XVI. Envenenou-se acidentalmente. Foi envenenado por outro astrónomo que lhe queria roubar as observações de uma vida. Ou envenenado a mando do rei dinamarquês, devido a um caso amoroso. A sepultura de Tycho Brahe foi aberta - procuram-se respostas.»

ai a paz

Há muitos, muitos anos mesmo, travei com o agora "Ladrão de Bicicletas" José Castro Caldas, no defunto Diário de Lisboa, um sustentado debate sobre desarmamento. Naquele tempo, páginas inteiras de jornal a discutir os SS-20 e os Pershing 2, artigo para cá, artigo para lá. Ele a defender um pacifismo que, dizíamos nós, era ao gosto da URSS (não gostavam dos Pershing 2 mas toleravam os SS-20), eu a defender um quase-pacifismo que muitos socialistas e sociais-democratas defendiam por essa Europa fora, tentando não distinguir entre armas boas e armas más, tentando não cair na ideia simplista de que desarmar é necessariamente bom para a paz em qualquer caso. Lembro-me de Piteira Santos, então ainda vivo e director do Diário de Lisboa, me ter manifestado o seu apreço pela nossa discussão, uma discussão claramente à esquerda dos dois lados, e ao mesmo tempo uma discussão frontal e séria.

Hoje vejo, com algum desencanto, que o meu querido amigo José Castro Caldas, por quem tenho um apreço que vai muito além do debate político, voltou aos velhos tempos de algum primarismo quanto às questões da paz. Quando escreve «Desculpem a perguntinha, mas porque é que não vão reunir para uma ilha, ou mesmo num porta-aviões?» - não sei se é para ter graça. Mas mesmo que seja: associada ao cartaz de propaganda de uma manifestação contra a cimeira da NATO em Portugal, parece-me apenas uma coisa. Ou melhor, duas. Retórica da guerra fria sem qualquer reciclagem. (Uma das coisas más da guerra fria era a retórica dos falsos pacifistas. E, sim, nem todos os "conselhos para a paz" são o que parecem.) E um certo provincianismo. (Nunca cheguei a achar piada às pichagens "Carter, go home", não é agora que acho graça a essa conversa de que seremos conspurcados por termos entre nós os líderes de uma organização internacional que, se cometeu pecados no passado, eles não foram certamente maiores do que os do grande urso.)

Nota de rodapé: a expressão "falsos pacifistas" não é, em geral, para acusar ninguém da intenção de nos enganar; é para apontar com o dedo uma posição política que, a nosso ver, não contribui nada para a paz neste mundo real em que vivemos.

17.11.10

as teorias da justiça intergeracional


Uma sugestão de leitura.
Para quem possa ler em francês:
Les théories de la justice intergénérationnelle, de Axel Gosseries.
Uma versão portuguesa (com os seus quês, mas que se lê):
As teorias da justiça entre as gerações.
Uma oferta de raison-publique.fr .

16.11.10

Uma investigação sobre a alma


Por que é que conseguem brincar com o vosso cão mas não lhe conseguem contar uma história?

Patrícia Gouveia lançou hoje o livro Artes e Jogos Digitais. Tendo já dado uma vista de olhos por algumas coisas que ela escreveu, conhecendo o seu blogue (mouseland), tendo-a entrevistado aqui para esta casa (jogos de realidade alternativa), tinha elevadas expectativas para o livro. O que a Autora disse na apresentação, mais o que disse na mesma ocasião Henrique Garcia Pereira (Professor Catedrático no Técnico e outras coisas mais), agravaram o meu estado de curiosidade e interesse.
O livro anda pelos jogos digitais. Pronto, pode parecer coisa simples. Sim, há a arte que não é digital. Há as comparações com o cinema. Há a história do meio que é mensagem, a lembrar McLuhan. Há o natural e o artificial e meterem-se os pés pelas mãos, mais o real e o virtual cujas fronteiras estão mais complicadas de policiar do que a fronteira terrestre entre o Afeganistão e o Paquistão. Tudo isso, pensado num horizonte filosófico, mas com os pés bem assentes na terra das práticas tecnológicas, já seria prato e sobremesa para uma bela refeição: e a Patrícia a dizer que se eu jogo jogos de computador nunca jogo o mesmo jogo quando vou outra vez ao jogo, isto é a pensadora a actualizar as palavras do Heráclito que tinha um problema com os rios, de tal modo que nunca se banhava no mesmo. Tudo isto já seria grande promessa. Há que ler, ainda não li.
Mas vou ler à espera de ter aqui uma investigação sobre a alma. Sim. É que se houve quem procurasse a alma no corpo, quem procurasse a alma no cérebro; se ainda há quem procure a mente com bisturi, ou alegue que não há mente por ela não se encontrar com o bisturi – quando a Patrícia Gouveia fala na simulação lúdica e na arte da jogabilidade como “narração sensorial” – alto lá, que há umas campainhas que começam a tocar por todo o lado no campo de minas dos meus interesses. Interesse pelo corpo sentido que sente, pelo corpo no mundo a fazer mundo, a ser mundo com a carne. Sentir, pois, primordial. Sim, é por aí que anda a alma, mesmo que ela não exista: nesse mundo por onde nos espalhamos por todos os meios.
Aquela pergunta lá em cima, que mete cão e narrativa, é uma maneira engenhosa de a Autora dizer que resume o primeiro capítulo. Ou que lança as questões que o primeiro capítulo abre. Pode começar por esse enigma e depois… continuar, claro. Vamos a isso.
A sério: livro para pensar. E apontado ao coração deste tempo que nos muda.

Luís Ana Amado Gomes


Senhora deputada Ana Gomes, peço-lhe humildemente desculpas: se toda a gente pode fazer cenários, como se andássemos em tempo de cenários, por que não há-de a senhora fazer os seus próprios? (Já, por outro lado, meter toda a gente que anda a falar de mais na máquina ejaculatória era capaz de irritar ainda mais os mercados.)

ao pelourinho


O Público noticia que o país está de fronteiras fechadas desde a meia-noite. Isto, no título. Depois, logo abaixo, diz que as fronteiras foram repostas. Na realidade, como previsto para circunstâncias em que a segurança deve ser reforçada, foram repostos os controlos nas fronteiras. Situação muito longe das "fronteiras fechadas", com cheiro a grande crise e/ou grande ameaça. Enfim, subtilezas que nada interessam aos espíritos finos do jornalismo de referência.



a Europa a duodécimos


Às primeiras horas da madrugada de hoje falhou, por desacordo entre o Parlamento Europeu e o Conselho, o processo de conciliação para aprovar o orçamento comunitário para o próximo ano. Agora, a Comissão Europeia vai ter de apresentar nova proposta. A "repetição" do processo pode durar vários meses; até lá a UE viverá em regime de duodécimos. Um assunto a seguir: a polémica não era tanto sobre os montantes, mas sobre quem manda no dinheiro dos contribuintes. O Parlamento quer ter uma voz na política orçamental, os Estados (pelo menos alguns) acham que são eles que mandam no dinheiro que os Estados entregam à União. Lá, como cá, a crise não pára a política.

15.11.10

soberania


A "crise", esse animal complicado, vem lembrar de novo a vexata quaestio da soberania que a pertença à Europa nos rouba ou não. A esquerda da esquerda, em particular, vê confirmadas da forma mais brutal as suas sempiternas acusações relativas à perda de soberania. Claro que não vale a pena tentar explicar que partilha de soberania é isso mesmo, que sozinhos no nosso canto apenas teríamos a deliciosa liberdade de fazer à vontade o que fosse irrelevante para o mundo, e para nós mesmos, numa espécie de ilha-apesar-da-continuidade-das-terras. Que sozinhos teríamos menos margem de manobra do que pertencendo ao clube.
Agora, há um ponto de substância em que o cepticismo acerca da Europa dessa esquerda da esquerda obteve nesta crise confirmação empírica: a solidariedade europeia, apesar de ser um pressuposto quase-constitucional de todo o edifício, na forma do princípio da prevalência do interesse comum, foi rasgado de forma mais brutal e mais descarada do que é costume. Os amigos alemães e franceses de Passos Coelho e Paulo Portas, a partir dos seus respectivos governos, assumiram à luz do dia o terrorismo de Estado contra o dito "interesse comum". De forma descarada, com um desplante inusitado. O que, obviamente, abre uma nova questão política para a esquerda europeísta. Uma questão para depois da crise. Se ainda valer a pena, depois, claro.

encontrar caminhos na relva por pisar


Miguel Vale de Almeida, com o post Transição permanente, no jugular, com uma reflexão que ajuda a perceber por que é que a vida em sociedades políticas sofisticadas não é facilmente redutível à guerra de trincheiras. Um texto longo, mas que vale a pena.
Deixamos um excerto.
Um exemplo actual. Tanto o PS como o BE propõem, para a próxima revisão constitucional, a eliminação de “raça” como uma das categorias segundo as quais ninguém pode ser privilegiado ou discriminado (artº 13º), e a sua substituição por “etnia”. A decisão radica no mal-estar sentido com a expressão em virtude da influência das ciências sociais que decretaram o carácter não científico da categoria. Não existem raças, em suma - elas foram criadas como categorias de exclusão e hierarquia. No entanto, uma outra afirmação das ciências sociais foi totalmente esquecida: a de que, no quotidiano, no senso comum, nas relações sociais e interpessoais, a categoria é operativa, é uma das usadas pelas pessoas para identificarem e se auto-identificarem – e portanto para percepcionarem as raízes das suas situações de exclusão. É por isso que muitos de nós nas ciências sociais grafamos raça entre aspas – para dizer que não é conceito cientificamente válido, mas é categoria efectivamente utilizada em muitos contextos sociais, vivida, para o bem e para o mal, pelas pessoas. A sua eliminação não constituirá uma forçada eliminação da legitimidade de alguém se queixar de ter sido discriminado em função da “raça”? Para mais, “etnia” não recobre o sentido de senso comum de “raça”. Um negro português não pertence a nenhuma “etnia” que não a genericamente designada como portuguesa, e a sua discriminação será muito provavelmente em função de aspectos do seu fenótipo. Só será discriminado etnicamente aquele negro que o seja em virtude de ser Balanta ou Wollof ou Quimbundo, algo muito improvável de acontecer em Portugal.
E, sobre este ponto em particular, relembramos um testemunho nosso: Política, Ciência, Linguagem (e Memórias).

14.11.10

a radical incompletude do mundo

Goya, O Cão, c. 1819–1823

Comentado por Rui Herbon, aqui.

12.11.10

o abc do amor


Ana Gomes pede remodelação governamental.
Parece que Vital Moreira também já pediu o mesmo.

Sou, por princípio (não é "em princípio", para depois derrogar; é "por uma questão de princípio")... dizia eu, Sou, por princípio, favorável a que os militantes dos partidos possam dizer, e digam, o que lhes parece conveniente para o país, seja isso coincidente ou não com a "linha geral" do respectivo partido. Acho que se trata de uma condição de salubridade da democracia.
Quanto ao tópico em causa, constituição do governo, até acho que esta "selecção Sócrates" tem vários "jogadores" mais fraquinhos do que os "titulares", os que jogaram na primeira parte, dando a ideia de que entraram em campo algumas reservas simplesmente por ter havido pernas e braços partidos no meio tempo inicial. E as reservas, em alguns casos, parece não terem tido tempo de proceder aos respectivos aquecimentos.
Posto isto, acho de eficácia duvidosa, e de interesse questionável, apelar a uma remodelação governamental. É uma espécie de voto piedoso que não ajuda nada. Algum PM fará uma remodelação se isso der o aspecto de uma cedência às vozes? Terão os proponentes dados para saber se há as disponibilidades desejáveis para entrar no barco a meio do vomitório provocado pela tempestade? Estarão certos de que é deste ou daquele ministro a verdadeira responsabilidade por não se terem tomado certas medidas em tiro mais certeiro a tempo e horas? Perguntas que me parecem pertinentes - a menos que se esteja apenas a pedir sangue para entreter as massas. Mas não o creio.
Ao fim e ao cabo, como ilustra bem, a meu ver, o excerto do filme "ABC do amor", de Woody Allen, que a seguir se deixa - há uma grande diferença entre estar no "acto" do lado de "fora" ou "residir lá onde se mexem os cordelinhos". São visões completamente diferentes da "função", essa é que é essa.


Everything You Always Wanted to Know About Sex But Were Afraid to Ask
(O ABC do Amor), Woody Allen, 1972.


percebe-se que Passos Coelho hesite


Economia portuguesa bem melhor que Grécia e Espanha. Exportações garantem manutenção da retoma no 3º trimestre
. Prossegue o Público: «A economia portuguesa manteve, no terceiro trimestre deste ano, a tendência de retoma, assegurando um crescimento de 0,4 por cento face ao trimestre anterior. De acordo com os dados hoje publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, a variação em cadeia do PIB passou de 0,2 por cento no segundo trimestre para 0,4 por cento no terceiro. Em termos homólogos, a variação foi de 1,5 por cento. (...) Portugal consegue, neste período, registar um crescimento em cadeia idêntico à média europeia.»

Não, isto não é deitar foguetes. Mas notícias como estas explicam algumas das hesitações de Passos Coelho. O homem, dotado de um patriotismo que não me atrevo a discutir, tem pesadelos só de ouvir falar em "retoma". Tem suores frios só de considerar a possibilidade de Sócrates ressuscitar, graças a um comportamento da economia onde sobrelevem os resultados das boas apostas sobre os efeitos recessivos da política ao estilo Merkel-Barroso.

artes para a poesia


Lançamento de mais um livro de Sofia ("defender o quadrado"), apresentado por Ricardo Leite Pinto. Na ocasião, guitarra de Manuel d'Oliveira e leitura de poemas por Maria Celeste Pereira.




doenças nada infantis


O ódio é uma doença grave. Destrói o sistema nervoso dos seus veículos individuais, destrói a comunidade se se espalhar muito. Há quem ache que é preferível esconder os focos dessa doença. Pensa-se evitar desse modo a contaminação. Especialmente quando o ódio é político. Acho, pelo contrário, que devemos mostrar o ódio em exposição. Para que se veja o que ele é. Por isso peço a vossa atenção para este exemplo, mais um de uma fonte muito produtiva, de ódio sem pingo de argumento, de ódio em estado quimicamente puro. Para quem não saiba: o fautor neste caso é um membro da elite científica, um Doutor; e, além disso, um artista (um bom fotógrafo). Para que não pensem que o ódio que conta é o ódio dos famélicos. Não. O ódio vale por si. É uma partícula fundamental.

o fenómeno de Alenquer não é uma greve de zelo


Bo Bartlett, House of Cards, 2004

Podemos aproveitar um dos detalhes do "fenómeno de Alenquer" para uma breve reflexão sobre a acção humana. Um dos pontos bicudos do caso consistiria em ser ou não ser correcto interpretar aquele comportamento do meritíssimo como greve de zelo. Ora aí está o nosso tema.

Chama-se "greve de zelo" a uma prática de contestação laboral usada em certa altura em alguns países. Coisas de uma luta de classes sofisticada, em que não se encontram (as classes) a meio da noite para traulitarem mutuamente nas respectivas cabeças - antes procuram maior subtileza, pela qual conseguem, mais do que amassar a classe antagonista, encher-lhe o peito de espanto e a cabeça de dificuldades de compreensão. Numa greve de zelo, os grevistas não se recusam a trabalhar: limitam-se a aplicar de forma estrita todas as regras formalizadas (escritas nos regulamentos) que enquadram a sua actividade. O resultado de uma greve de zelo não é que as coisas funcionam melhor, como qualquer racionalista da acção haveria de esperar. Esses pensam que nas regras miúdas e precisas é que está o segredo do bom funcionamento da máquina do mundo. Pelo contrário, o verdadeiro resultado de obedecer total e exclusivamente a todas as regras escritas e bem assentes é... a inoperância!
É que, no domínio exclusivo das regras formais e bem firmadas, faltam aquelas práticas que, fugindo à letra dos regulamentos, fazem funcionar as coisas. Por exemplo, quando um funcionário subalterno toma uma iniciativa sem autorização superior, porque “sabe” que ela seria dada se o chefe estivesse presente, apesar de, em rigor, arriscar uma sanção por avançar sem uma assinatura no papel apropriado. A assinatura virá. E normalmente vem. Mas emperra tudo se eu insistir que espero pelo chefe. E isto multiplicado a cada momento dos dias longos e complicados de qualquer organização humana sofisticada, por muito burocrática que seja.
Há quem confie que a acção dos humanos segue as regras escritas que aparecem nos manuais de procedimentos (relativos, por exemplo, à reparação de máquinas ou à autorização de pagamentos dentro de uma organização). Esses racionalistas da acção, tão ingénuos por demasiados admiradores da razão, nunca compreenderão o segredo de uma greve de zelo. Não estranha: muitos políticos também não percebem. E, não percebendo, descuidam "ninharias" e "perdas de tempo" que consistem em envolver, mobilizar e interagir com os agentes.
Agora, há uma ressalva a fazer. Não pode haver greve de zelo sem, antes, haver, propriamente, zelo. Contas de outro rosário.