30.11.09

perplexidades


Aparentemente o PCP preferiu votar contra as medidas de combate à evasão contributiva, e de protecção social dos trabalhadores. Eu até percebo que o Paulo Portas o tenha feito. Mas, o PCP?? E o BE?? Em que medida é que favoreceram os trabalhadores com o sentido de voto?

Espantada/o? Veja por qual razão Carlos Santos afirma aquilo mesmo. AQUI.

o nariz de Judite



Judite de Sousa estava ainda agora a perguntar (a António Vitorino, na RTP1) que diferença fazia o Tratado de Lisboa para o "cidadão comum" (seja lá isso o que for). O homem respondeu-lhe que, na verdade, nenhum Tratado faz diferença para o cidadão comum. Tem razão AV, num certo sentido: as camadas superiores da realidade institucional de sociedades complexas só muito indirectamente se ligam ao dia-a-dia das pessoas em geral. Isso, contudo, não quer dizer que essas camadas institucionais sejam menos importantes para o "cidadão comum". Por exemplo, se um sistema político bloquear e, desse modo, impedir a tomada de decisões que seriam necessárias à resolução de problemas que não se resolvem espontaneamente - será o cidadão comum, finalmente, a pagar as favas. Mas, claro, para perceber isso é preciso olhar um bocadinho mais longe do que a ponta do nariz de uma famosa entrevistadora com chavões sempre prontos a disparar para atingir o olho e o ouvido do "espectador comum" (seja lá isso o que for).


fazer umas contas ao truca-truca geral


Professores pedem números para avaliar propostas do Governo. «Os sindicatos de professores querem saber qual será a duração da carreira proposta pelo Ministério da Educação, bem como o número de professores em cada escalão e o tempo necessário para a transição, antes de qualquer compromisso.»

É um projecto reconhecível: eliminar a incerteza da vida. Ter todos os dados para julgar o que vai acontecer ao longo de uma carreira de dezenas de anos.
Digo já: se eu estivesse no lugar da ministra da educação aceitaria, com uma condição: os sindicatos teriam de se comprometer com os número da demografia para os próximos 20 ou 30 anos. Sim, porque as necessidades da escola pública devem estar relacionadas com o número de pessoas que procuram o sistema, que são maioritariamente crianças e jovens, em maior ou menor número consoante as variações do truca-truca geral. Portanto, queridos sindicatos, comecem a fazer as contas. E a explicar como compensarão as perdas se as contas do truca-truca não baterem certo.
Ou os sindicatos acham que o número de professores no sistema não tem nada que ver com as necessidades do país e com a tal demografia?

[produto A Regra do Jogo]

os minaretes e o clítoris


Na discussão sobre os minaretes os minaretes são o menos importante. A proibição da excisão feminina não é um sinal de intolerância religiosa?

Confundir um minarete com o clítoris parece-me um evidente sinal de cegueira. E não da espécie oftalmológica. Mas, tirando isso, devia ser acrescentada uma alínea à lista dos direitos humanos: «Todo o ser humano tem direito a não ser instrumentalizado como objecto de debates pretensamente sábios que não tomem o cuidado devido à sua concretude». É que com as pessoas não se brinca. Não se devia brincar. Não se deveria brincar com o sofrimento concreto imposto a pessoas concretas. Os direitos humanos abstractos não serão direitos humanos. A menos que se acredite que as vítimas de mutilação genital feminina querem que isso aconteça lá por serem tementes a Deus. Meter tudo no mesmo saco pode ser - e acho que neste caso é - um sinal de irresponsabilidade e de absoluta falta de respeito pelo outro concreto e sofredor.

o último grande abraço


Não há nada no mundo que interesse apenas aos que estão perto. Todas as tentativas para reduzir o mundo onde os humanos vivem ao plano achatado das interacções directas, imediatas - são estultícia. O nosso mundo é o universo das consequências que nos fugiram das mãos, dos inúmeros efeitos não intencionados das nossas acções intencionais. Não andamos sempre a calcular consequências. E se andássemos não teríamos sucesso suficiente para isso nos evitar complicações. É por isso que, se ser-se mau pode ser mau, querer ser bom (ou mesmo ser bom) é altamente insuficiente. Quando dizemos que "não há nada no mundo que interesse apenas aos que estão perto", por perto queremos significar perto no espaço ou perto no tempo. As nossas responsabilidades só podem caber numa ética que não pense apenas nas consequências que podemos compreender ou dominar.
Tendes dúvidas? Lede, no Blogkiosk, a posta intitulada Maite, 26 anos, vítima da I Guerra Mundial..., por Patrícia Fonseca.



Gustavo Diaz Sosa, série Ultimo Gran Abrazo, 2009
(na Arte Lisboa 2009)



29.11.09

gente "com tomates". em vez de miolos.


O país dos referendos diz hoje se proíbe os minaretes.

Suíça: mais de 57 por cento da população votou contra minaretes nas mesquitas.

Ora aí está um povo cheio de ideias firmes sobre arquitectura no espaço público.
Por lá, como por cá, há muita gente com ideias bizarras acerca do que é ser ou não ser civilizado.

Homem mata mulher e militar da GNR a tiro. Em Montemor-o-Velho.


Ernesto Melo Antunes - Um Homem Imprescindível


José Leitão, no Inclusão e Cidadania, faz uma oportuna evocação de Ernesto Melo Antunes, a propósito de recente iniciativa de revisitação dessa figura ímpar da transição para a democracia em Portugal, numa posta intitulada Ernesto Melo Antunes - Um Homem Imprescindível.
Devemos confessar que este escrito corrige um defeito de muitas das referências recentes a Melo Antunes na blogosfera, defeito a que nós próprios não escapámos: centrar-nos demais na indignação com a atitude de Cavaco (faltando à homenagem) e menos no valor próprio de Ernesto Melo Antunes. A bem dizer, até parece ofensivo para a grandeza de Ernesto Melo Antunes misturá-lo com estes episódios de pequena política. Ler Ernesto Melo Antunes - Um Homem Imprescindível será uma possível, embora pequena, correcção a essa entorse.

Aditamento. Vale a pena, para os mesmos efeitos: MELO ANTUNES - A minha homenagem, por Maria Manuela Cruzeiro.

28.11.09

Melo Antunes e os anões


Vasco Lourenço lamenta ausência de Cavaco na homenagem a Melo Antunes.

A incapacidade pessoal de Cavaco Silva para compreender a estatura de Melo Antunes não me espanta. Mas não tenho nada a ver com isso: a sua pessoa privada não me interessa nada.
O crescente desplante com que Cavaco Silva dá sinais de ser presidente apenas de alguns portugueses, isso já me diz respeito. As teorias de Cavaco acerca do PREC, supondo-se que ele sabe o que isso seja, não me interessam. (Como se vê, quase nada no senhor me interessa.) Mas já me diz respeito que ele não se mexa quando se trata de fazer justiça a pessoas que representaram muito para este país. Mesmo que este país não saiba. Por exemplo, que esteve para haver uma guerra civil e que, se ela foi evitada, não foi uma bênção da Nossa Senhora de Fátima. Foi o fruto da acção de certas pessoas. Como Melo Antunes.
Mas Cavaco Silva não quer saber de nada disso. Fica lá sentado no seu Pulo do Lobo permanente. Talvez porque os demasiado pequenos não gostam de se perfilar ao lado dos gigantes. Fica-lhes pior submeterem-se à comparação ou fugirem a ela?

27.11.09

ele há democratas assim



Infelizmente, alguns ainda não perceberam que só há democracia quando ela é para todos. E que devemos muito aos que, nas horas decisivas, pouparam ao país a tentação de fazer uma democracia onde só coubessem os amigos.


the fun theory


O conceito: «something as simple as fun is the easiest way to change people’s behaviour for the better.»
Eis um exemplo:




The Fun Theory site


eles não sabem nem sonham...


... que nem tudo os seus poderes podem confiscar.

Este título do Público
Irão: autoridades confiscaram prémio Nobel da Paz da activista Shirin Ebadi.

é enganador.

A mesma notícia é, noutro passo, mais compreensível:
«A activista iraniana dos direitos humanos Shirin Ebadi revelou que as autoridades de Teerão lhe confiscaram a medalha e o diploma recebidos quando foi premiada com o Nobel da Paz em 2003. Os objectos foram retirados de um cofre pessoal num banco em Teerão há cerca de três semanas, no que a Noruega – país sede do comité do Nobel da Paz – avaliou como um acto “chocante e inacreditável”.»

As autoridades iranianas podem roubar certos objectos, uma medalha e um diploma, e isso tem o efeito chocante de representar a falta de respeito dessas autoridades pelo símbolo e pelo simbolizado. Mas as autoridades iranianas não podem roubar o prémio, pelo facto de não serem elas quem tem o poder institucional de atribuir o Nobel. Nem sequer de o tirar. E os humanos, além de serem uma espécie simbólica, são também uma espécie institucional. E, para uma espécie institucional, nem tudo o que parece estar à mão - efectivamente o está. Tal como não retiro a proibição de circular de carro num certo sentido de uma rua por roubar o sinal de trânsito que lá estava a assinalar essa proibição. Vai ser preciso repor o sinal, por razões pragmáticas e por questões de implementação da proibição - mas o sinal e a proibição são coisas diferentes.

Será que as autoridades iranianas percebem isto?

umas perguntas futuras a Cavaco presidente, acho que ainda


«Código contributivo adiado, fim do PEC e mudança no IVA. A oposição parlamentar impôs hoje a aprovação, na generalidade, de 11 dos 13 diplomas com medidas “anti-crise” do PSD, CDS-PP e PCP, vencendo a maioria relativa do PS, que votou contra.» (Diário de Notícias online)

«O ministro das Finanças, Teixeira dos Santos afirmou hoje que as medidas aprovadas hoje pelos partidos da oposição em relação ao Pagamento Especial por Conta e ao Código contributivo "terão complicações muito lesivas", considerando mesmo que "não há condições para poder levar por diante correcções das contas públicas".» (Jornal de Negócios online)

«Governo acusa oposição de ameaçar gerar desequilíbrio de 2300 milhões de euros ao Estado.» (Público)

«Ou trata-se apenas de tentar criar a ideia de que acabou a diferença entre governo e parlamento, estando o país à beira de ser governado em regime de soviete?»

«Sócrates alerta para “Governo da Assembleia”.» (Económico online)

A procissão ainda vai no adro, já que estas votações ainda foram "na generalidade", mas há desde já uma pergunta a fazer: Cavaco Silva, um PR que no que vai de mandato não se tem coibido de vetar diplomas do Parlamento, tomará que atitude quando lhe chegarem às mãos os resultados deste governo de soviete? Se o Presidente se tornar cúmplice desta forma de "governo da Assembleia", isso não será por força do destino. Será por opção política. Cá estaremos para avaliar essas opções.


26.11.09

a verdade é mais forte que as algemas


Só agora, pela mão do Rogério da Costa Pereira, do jugular, cheguei aos cinco minutos que José Pacheco Pereira dedicou na televisão ao Câmara Corporativa. Basicamente, JPP está aborrecido por o Câmara Corporativa ser eficaz a divulgar informação favorável ao governo. Na enchurrada, JPP chama vários nomes ao Câmara Corporativa, por exemplo dizendo que é um blogue "bizarro". Pena é que, no seu exercício, JPP não tenha indicado um único exemplo - um único exemplo - de uma informação falsa veiculada pelo Câmara Corporativa. O que dói, numa blogosfera dominada pelo ódio primário a Sócrates, ao PS e ao governo, é que haja quem publique verdades como punhos que tantos tratam de tentar ocultar.
Obrigado, Câmara Corporativa, Miguel Abrantes incluído, por combaterem a desinformação. A isso chamo serviço público. Cidadania. Democracia a funcionar. Contra os que prefeririam que os factos fossem escamoteados, marchar! marchar!

há gente que sabe cada coisa


Associação Sindical dos Juízes repudia acusações de “espionagem política” no caso Face Oculta.

Porquê?

«Os dirigentes da ASJP consideram não ter havido “qualquer coincidência temporal entre os actos eleitorais de Setembro e as operações policiais de Outubro.» É suposto eles saberem essas coisas?

«Os subscritores deste comunicado salientam o “infundado da imputação da violação do segredo de justiça aos elementos da investigação ou às autoridades judiciárias da comarca de Aveiro”.» Como é que eles sabem? Só contaram p'ra eles? Ou será que sabem quem não foi por saberem quem foi?

«O comunicado lembra ainda que contrariamente ao que foi noticiado, “as escutas autorizadas pelo juiz de Instrução de Aveiro nunca tiveram por alvo o primeiro-ministro, mas sim os arguidos no inquérito”.» Contrariamente ao que foi noticiado? Onde é que eles andam a ler notícias? Tanta confusão será de propósito? Será?!



f,rol



O f-world, da Fátima, é provavelmente o blogue que mais prazer me dá ler. E ver. E ouvir. (É por isso, pelo ouvir, que é dos que normalmente não visito quando estou no gabinete, que é partilhado com um colega.) Por razões que nem vale muito a pena explicar, é um objecto diferente. (Eu não conheço a Fátima de lado nenhum, note-se - a não ser da bloga.) É ir lá, ler, ver e ouvir. Se não gosta, não vou tentar explicar-lhe nada. Se gosta, apareça para conversarmos: alguma coisa havemos de ter em comum.
A forma que o f-world toma faz com que não tenha um rol como os demais. Calha, agora, ter um. Tirando a vaidadezinha deste Machina lá constar, é lista que vale a pena verificar. É o que vou fazer para um ou outro caso que constitui para mim novidade absoluta.

o Estado como empregador de última instância



«O combate ao desemprego e às suas consequências tem de ser a prioridade orçamental. Nenhum desempregado pode estar sem rendimento, nem que para isto seja preciso puxar pela imaginação política e encontrar forma de fazer do Estado o empregador de última instância» - lê-se, propõe-se, aqui.

Como ilustração do conceito, João Rodrigues aponta para um artigo cuja versão integral não estou a conseguir descarregar, mas em cujo resumo se faz uma ligação directa entre a ideia do "Estado como empregador de última instância" e a ideia do "desemprego zero". A ligação entre essas duas ideias é dada, nesse resumo, pela possibilidade de o Estado garantir uma taxa de desemprego zero, definindo-se "desemprego zero" assim: todos os que estão prontos, dispostos e capazes de trabalhar pelo salário que se oferece terão um emprego; "apenas" aqueles que não querem (ou não podem) trabalhar com os salários oferecidos ficariam sem trabalho (e esses normalmente já não são contados como desempregados).

Além da confusão que me faz, como ideia de sociedade, pensar no Estado como empregador de última instância - mas, manifestamente, isso não faz confusão a toda a gente -, esta proposta deixa-me outra dúvida. Aquela noção de desemprego zero faz-me lembrar aquelas teses segundo as quais quem quer trabalhar apanha o que há, seja o que for. Segundo essas teses, só merece ser realmente considerado desempregado quem não se recusa a vender a sua força de trabalho nas condições que o mercado permite, sejam elas quais forem. Quem é esquisito e não vende a sua força de trabalho a qualquer preço, paga as favas: nomeadamente, não tendo direito a protecção no desemprego. Ao mesmo tempo, essas teses convivem mal com "distorções" na formação dos salários, por exemplo com salários mínimos.

Será que a proposta de João Rodrigues passa por aceitar esta noção de desemprego zero? Estranho, porque isso seria a absoluta mercantilização do humano trabalhador, esquecendo que na condição de trabalhador (empregado ou desempregado) não conta somente a possibilidade de ser "factor de produção". Nem tudo aquilo que é "economicamente" aceitável é aceitável, humanamente. Acredito piamente que JR pensa como eu neste ponto. Deve, então, haver qualquer coisa que não percebi - e sobre isso gostava de ser esclarecido. Ou talvez não: talvez até haja experiências históricas concretas do verdadeiro significado do "Estado como empregador em última instância". São as experiências históricas do "eles fingem que nos pagam, nos fingimos que trabalhamos". Safa! como dizia o outro.

[Um produto A Regra do Jogo]


por que não passamos à democracia electrónica?


Governo: entre recuos e o fantasma da coligação negativa.Segundo executivo de José Sócrates posto à prova quando completa um mês.

Tal como as coisas estão, ou nem estão nem deixam de estar, aproxima-se a hora de testar a democracia electrónica. À hora do jantar toda a gente se senta em frente ao botão e vota sim/não/abstenção ao cardápio de "decisões" que tenham sido postas à "consideração" nesse dia. Votando cada dia umas quatro ou cinco "magnas questões", é um ver se te avias. Toda a minha gente "participa", acaba-se com os "intermediários políticos" (essa bagunça dos partidos) e só é preciso o tipo que junta cada noite as perguntas a fazer e as anuncia na televisão. E tudo se torna muito mais célere.
Com este jogo do "não governo nem deixo governar", aproximamo-nos do conceito da "democracia" electrónica. É que ter rumo não é bem a mesma coisa que ter uma molhada de rumos à compita. Já para admitir que podemos chamar "rumos" a certas coisas.

sócrates, vital moreira, portas o paulo, moderna a universidade


Aos que ontem exultaram com o artigo de Pedro Lomba no Público, só posso recomendar a leitura desta chamada à memória.
A certas pessoas não dá jeito nenhum que haja memória.


a minha comemoração do 25 de Novembro



Clicar na imagem para mais informação.

estas coisas são mais simples do que parecem




Tem toda a razão o Eduardo Pitta, do Da Literatura.
Estas coisas são mais simples do que parecem.
Tão simples como isto: os apoiantes - sejam fervorosos apoiantes, simpatizantes moderados, companheiros de estrada, militantes do mal menor, ou qualquer outro grau na escala - dizia eu: os apoiantes deste governo deviam ser proibidos de expressar opiniões em público. Passados à clandestinidade, não, já que convém que continuem a mourejar e estejam bem à vista para melhor identificação e controlo. Mas deviam ser silenciados. Aquilo que é permitido, e aplaudido, e premiado, em qualquer escriba que jure por alma de sua mãe que Sócrates é um filho de p***, é, pelo contrário, um crime de lesa-pátria se ocorrer na pena de qualquer desgraçado que não cumpra o ritual diário de cuspir em cima da "mãozinha". Esta é a cultura que muitos andam por aí a plantar, por variadas vias: desde conversas em família para intelectuais comprometidos em televisões simpáticas, até militantes do insulto soez em caixas de comentários.
À sombra dessa "cultura" medra uma nova classe de pidezinhos de meia tigela: aqueles tipos que googlam o teu nome e depois, pensando que te toparam, à falta de compreensão do que lêem implicam com coisas que não perceberiam nem que comessem enciclopédias ao pequeno almoço. São como aqueles pides que deixavam passar textos retintamente oposicionistas por nem lhes passar pela cabeça o que aquilo queria dizer. E, em geral, fazem isso a coberto de identidades manhosas, nem isso os inibindo de atacar com pedras e ferros os que escrevem sob pseudónimo. Mas, do fundo da sua caverna escura, mostram ter resolvido, afinal com facilidade, o problema da avaliação de desempenho de todas as classes profissionais: qualquer tolo que tenha um ódio cego a Sócrates, ao PS ou a este governo é, apenas por isso, o mais competente avaliador universal de qualquer distraído que ainda não se tenha convertido à mesma religião.

Ah, já me esquecia: isto tem tudo a ver com a minha política de aprovação de comentários aos meus posts. É só para que não venha ninguém ao engano.


uma pergunta a dois ilustres Ladrões de Bicicletas



Médicos vão receber mais 750 euros para ir para o interior, noticia o jornal i.

E acrescenta: «Os médicos que queiram ir trabalhar para o interior vão receber uma bolsa mensal de 750 euros, durante os anos de formação da especialidade que se seguem à faculdade (internato). Em troca, comprometem-se a ficar nos hospitais e centros de saúde que se ressentem da falta de profissionais pelo mesmo tempo que dura a formação (entre cinco e sete anos, consoante a especialidade médica). Caso contrário, têm de devolver o dinheiro. (...) Este incentivo representa um aumento de 69% sobre o ordenado base de um interno a partir do segundo ano de formação.»

A propósito disto, disto, disto , disto e disto, gostava, para continuar um debate que me parece útil, de perguntar ao João Rodrigues e ao José Castro Caldas, dois ilustres Ladrões de Bicicletas, o seguinte: esta medida, acima mencionada, também é mercantilização da saúde?


auto-retrato



Auto-retrato. Hong-Kong, Novembro de 2006.

24.11.09

eu nem peço muito



As notícias são boas: as coisas estiveram para ser piores. O que quer dizer que as notícias são más. O desemprego, a actividade, as expectativas, a confiança, a ideia de que se pode alimentar a família e pagar o aquecimento com umas poucas centenas de euros por mês, as caixas de comentários nos jornais on-line e as praças públicas nas televisões a mostrar que toda a gente acha tudo e o seu contrário sobre qualquer magno assunto e sempre com a máxima arrogância e certeza, os partidos todos no parlamento entrincheirados cada um na sua bancada à espera que algum deputado da outra banda ponha o nariz de fora para lhe atirar com um balde de merda, o juiz que vai à televisão e pediu para ser o último a falar por ter um estatuto diferente dos outros e não se ter ouvido nesse instante uma gargalhada nacional que até acordasse os espanhóis do seu sono reparador, os pobres que são sempre culpados de serem pobres e portanto merecem que lhes chamemos politicamente nomes feios por o Estado lhes dar umas esmolas que estariam de certeza muito melhor empregues a dar subsídios às piquenas e médias empresas, as piquenas e médias empresas que merecem a atenção de toda a gente pela simples razão de que são na sua esmagadora maioria tão mal geridas que deviam mesmo era desaparecer e deixarem o seu lugar ser ocupado por empresas a sério com salários a sério e produção a sério, o desemprego, a actividade, as expectativas, a confiança, está tudo pintado de cinzento. De negro, não; nós por cá nunca vemos nada negro. Cinzento é que vai bem connosco.
Eu nem peço muito. Só queria que arranjassem um governo que não estivesse obrigado a fazer-se de morto para tentar fazer alguma coisa pela calada da noite ou a coberto do nevoeiro. Um governo que não estivesse permanentemente a contar deputados pelos dedos. Um governo que pudesse colocar as cartas na mesa e deixar-se de palavrinhas mansas. Eu só queria que este país não fosse governado por uma coligação negativa, ainda por cima coadjuvada pela reunião de todos os ódios numa federação bizarra de vale tudo. Se esse governo tiver que ser PCP+PSD+BE+CDS, que seja. Mas não nos obriguem a ficar dois anos com os pés de molho a ler edições antigas do Tarzan, à espera das próximas eleições.

[Primeiro-ministro afasta aumento de impostos em Portugal.]

andamos todos a perder a candura


Houve um tempo próprio dos que eram verdes por fora e vermelhos por dentro, e quando esse partido-melancia, encomendado para fins bem estabelecidos, era a própria imagem da política que não era corrupta por dinheiro mas o era pelo vale-tudo de quantos têm sempre tudo muito justificado haja o que houver e faça-se o que se fizer.
Nesse tempo, nós, em vez de verdes por fora e vermelhos por dentro, éramos mais do feitio vermelhos por fora e verdes por dentro. Democratas radicais por fora, ingénuos até à medula por dentro, gozávamos ainda de uma certa candura.
A tragédia é que não há candura que resista a tanta miséria.
Andamos todos a perder a candura.


Graz (Áustria), Julho de 2009 (Foto de Porfírio Silva)

recomendação


Para visitar um blogue de Banda Desenhada.




aos leões, aos leões


BPN: Juiz mantém Oliveira e Costa em prisão domiciliária.

Assim à partida não temos meios para julgar correcta ou incorrecta tal decisão. Entretanto, indo por um aspecto que alguns talvez considerem lateral, um jornal escrevia no fim de semana que Oliveira e Costa, por ter as suas contas bancárias "bloqueadas", foi impedido de pagar uma dívida ao Fisco e, por acréscimo, foi para a lista negra dos que passam cheques carecas (o cheque não pôde ser honrado por não ter sido autorizada a movimentação da conta). E, segundo a mesma notícia, o tribunal nem sequer respondeu ao requerimento de Oliveira e Costa sobre essa matéria. E o mesmo terá acontecido ao requerimento para cessar o impedimento de acesso do homem à sua pensão de 2500 euros. Bom, tudo isto pode ser mentira. Vendo pelo mesmo preço que li. Mas, a ser verdade, é uma vergonha. E maior a vergonha se estes procedimentos são legais. Isso significaria que uma espécie de estado kafkiano faz as delícias de alguns em Portugal. E não só da populaça.

Design



O que sempre me atraiu no design: as coisas devem ser bonitas (são uma forma de arte), mas têm de funcionar (cumprir o fim a que as destinam). Nisso, uma qualquer peça de design é um magnífico representante das muitas coisas que na vida aguardam uma correcta série de decisões da nossa parte. Os utensílios que desempenham o seu papel no meio da maior fealdade: vai havendo quem o consiga. As peças bonitas que em absoluto se recusam a colaborar com a vida prática: entopem as casas tanto como os remorsos das utopias mal pensadas. Ideias com pés para andar que façam algo pela suavidade dos contornos: é mais raro. Também assim é em muitos departamentos da nossa complexa colmeia. Na filosofia, por exemplo. Em todas as filosofias abundam as abstracções (e algumas virão a tornar-se assassinas). E na política. Em todas as políticas. No dia a dia. Em todos os dias de todos nós há pecados que estão no desprezo do concreto. Contra essa maré, proponho a seguinte paráfrase do que dizia o outro: "a minha política é o design". Ou será antes "o meu design é a política"?


20.11.09

Um argumento a favor da diversidade


Eis um argumento a favor da diversidade (de Leibniz, via Borges). Consideremos duas bibliotecas com exactamente o mesmo número de livros. Vamos supor que há um livro que é o melhor livro do mundo: o livro perfeito. Suponhamos que o livro perfeito é a Eneida, de Vergílio. Uma daquelas bibliotecas só tem exemplares da Eneida. A outra biblioteca tem um exemplar da Eneida e todos os outros livros são exemplares de livros inferiores ao livro perfeito. Qual das bibliotecas é a mais interessante? (lembrado por G.J. Chaitin)

19.11.09

just take your time


Remember Shakti (Saturday Night in Bombay)- Shringar (Parte 1/3)



Remember Shakti (Saturday Night in Bombay)- Shringar (Parte 2/3)


Remember Shakti (Saturday Night in Bombay)- Shringar (Parte 3/3)






Long books, like large bureaucracies, can easily get bogged down in a ba­roque layering of summary within summary. The United States House of Representatives has a Committee on Committees (I kid you not), undoubt­edly embellished with subcommittees thereof. And we must not forget Jona­than Swift's famous verse on the fractality of growing triviality in scholarly commentary:

So, naturalists observe, a flea

Hath smaller fleas that on him prey;

And these have smaller still to bite 'em

And so proceed ad infinitum.

Thus every poet, in his kind,

Is bit by him that comes behind.


Stephen Jay Gould, The structure of evolutionary theory, p. 53

17.11.09

Uma questão sobre máquinas e humanos

Céline Lafontaine, em L'Empire cybernétique, diz (lendo A crise da cultura, de Hannah Arendt) que a perspectiva de criar máquinas que ultrapassam em capacidade de entendimento o humano supõe um descentramento completo do sujeito. Não li esse trabalho de Arendt e tenho dúvidas de que ela tenha falado exactamente nesses termos. De todo modo, há algo muito mais perturbador do que termos máquinas que calculam melhor do que nós. É haver máquinas cujo processo de construção foi lançado por nós e que, no entanto, "evoluem" de tal forma que nós deixamos de as entender. Isso passa-se, por exemplo, com máquinas cujo sistema de controlo são redes neuronais que foram objecto de um processo de evolução artificial (por exemplo, com algoritmos genéticos). Em muitos desses casos o resultado é opaco para os próprios "pais" da máquina (vêem o que ela faz mas não sabem exactamente como ela o faz). Isso é relativamente novo na história das relações entre humanos e máquinas. Contudo, de outro ponto de vista, isso pode não ser assim tão relevante: compreendemos nós os "mecanismos" de funcionamento dos nossos filhos?

tabagismo e crise económica


O Público escreve que «Crise económica leva fumadores a optar pelos cigarros de enrolar».
Solução insuficientemente radical. Mais vale passar para o fumo passivo. É (ainda) mais barato. E menos trabalhoso (não há nada para enrolar).

predadores?! (ou: descer aos infernos sem perder o pé)



João Rodrigues (JR), do Ladrões de Bicicletas, a propósito do fim das taxas moderadoras no internamento e na cirurgia de ambulatório, escreve que "agora só falta acabar com as outras taxas no SNS. Eliminar os mecanismos que tomam os cidadãos por predadores. Romper com a herança liberal de Correia de Campos".
Um ponto é concordar que foi tolice do governo do PS introduzir "taxas moderadoras" em "consumos" que não são susceptíveis de serem moderados, pelo menos por vontade própria de quem paga. E aplaudir a correcção.
Outro ponto, de natureza mais geral, é o ataque de JR a todas as taxas moderadoras com base numa certa metafísica da natureza humana. JR parece acreditar que as pessoas são naturalmente cooperantes, cuidadosas com o bem público, atentas às consequências dos seus actos no plano dos mecanismos colectivos, altruístas e esclarecidas acerca do próprio funcionamento do altruísmo. JR parece acreditar que quem não tenha essa visão da "essência" dos indivíduos em sociedade só pode estar a tratar os cidadãos como predadores.
Também sou dos que pensam que os cidadãos não devem ser basicamente tratados como máquinas de estímulos, disponíveis para as receitas de "incentivos" que os economistas gostam de cozinhar. Também sou dos que acreditam que a melhor forma de avançar na melhoria dos laços sociais é investir nos laços sociais enquanto tal, enquanto estrutura de significados. Também sou dos que não acreditam que tudo isso se resuma a prémios e castigos. Contudo, considero perigosíssima a ingenuidade de JR: os mecanismos colectivos são, realmente, muito sensíveis aos verdadeiros predadores. Tal como são sensíveis aos que simplesmente não param para pensar nas consequências das suas acções. Bem como aos que simplesmente não compreendem os efeitos indesejáveis, em termos agregados, de muitas acções individuais aparentemente inócuas.
Não sei bem qual seja a origem da aparente desvalorização destas dificuldades por parte de JR. Será JR um racionalista extremo que acha que os indivíduos puxam pela cabeça até compreenderem o que fazer por puro cálculo intelectual? Será JR um metafísico da natureza humana, que vê as pessoas como naturalmente, ou essencialmente, boas e altruístas? Não sei, mas sinto uma curiosidade crescente pela sistemática abordagem metafísica de certa esquerda ao problema da natureza humana em sociedade. Eu acredito que mecanismos tão imperfeitos como as taxas moderadoras são importantes dentro de um realismo moderado acerca da forma como funcionamos em colectivos: mesmo que sejamos razoavelmente altruístas, e que sejamos determinados mais por valores e por uma genuína implicação na relação social do que por incentivos, precisamos de "sinais de trânsito". Precisamos de marcas que nos chamem a atenção para o significado último de certos actos, cujas consequências não são directas nem imediatas. Precisamos de alertas.
Reflectir nisto é algo que só interessa a quem o bem comum e as suas ferramentas mereçam cuidado. Acredito piamente que JR está nesse grupo. Eu também estou. Mas bato-me para reduzir a carga metafísica de certos pressupostos. E não estou disposto a ser tratado como neoliberal por causa disso. Porque verdadeiramente desastroso para a promoção do bem comum seria transformá-lo numa piedosa abstracção iluminada por uma qualquer metafísica apressada acerca da natureza humana. Especialmente se essa metafísica apressada servir para condenar a priori certas possibilidades de organização colectiva.

(produto A Regra do Jogo)

15.11.09

only the stars



Jorge Martins, Only the stars to teach us light, acrílico sobre tela (1976)

a quadratura do círculo



Ontem à noite, a fechar a Quadratura do Círculo, a propósito da "Face Oculta", António Costa disse para Pacheco Pereira e Lobo Xavier algo deste género: resulta das vossas afirmações que concordam comigo em geral, mas discordam da aplicação das minhas teses no caso concreto. O ponto é que o caso concreto, sendo uma figura do caso geral, não deveria ser assim excepcionado. Essa é a tragédia: o estado de direito tornou-se, para muitos na luta política, uma teoria geral que continua a ficar bem nos livros, mas que na prática tem de ser objecto de sistemática derrogação por conveniência da luta política. À falta de melhor argumento, para curar as derrotas eleitorais, como unguento para disfarçar o odor da incapacidade.


a entrevista da ministra da educação


A ministra da educação, entrevistada ontem por Judite de Sousa, mostrou saber do que fala: não fugiu aos problemas, mostrou segurança nos princípios basilares, deixou claro que há muitas formas de apanhar ratos, afirmou com naturalidade e sem drama a sua identidade própria como nova responsável da pasta.

Só falta um elemento no seu discurso, que se compreende que não seja ela a trazer à colacção, mas que decidirá muito do seu futuro próximo: só há verdadeiras possibilidades de êxito negocial quando todas as partes efectivamente negoceiam. Parte da tragédia do ciclo anterior consistiu no facto de se ter imposto a estratégia daqueles que efectivamente não queriam negociar, mas apenas usar a aparência de negociação como meio de bloquear as mudanças substanciais. Estamos para ver se isso mudou.


um partido falhado?



As instituições vivem do facto de servirem certos fins, próprios de uma sociedade organizada e como tal reconhecidos. Um partido político numa democracia, por exemplo, supõe-se ser o instrumento de certos sectores com interesses e visões do mundo específicas, dando a esses sectores a possibilidade de concretizar aspectos dessa mundividência. Uma instituição definha caso se instale a convicção de que se arrasta na mera aparência de servir os seus fins próprios.

O PSD de hoje tem, como instituição, um problema grave, que consiste em já terem passado muitos anos desde o tempo em que o país e os próprios dirigentes social-democratas viam esse partido como uma força com uma ideia para o país e com realizações concretas na governação. É que passar pelo governo não chega, é preciso deixar obra que certifique que tal e tal governo não foi uma causa sem efeitos. Compreender para que serve na prática o PSD começa a ser apenas um exercício de memória histórica – e não de mobilização para o futuro. Isso torna real o risco de o PSD vir a caracterizar-se como uma instituição falhada, com os enormes riscos que isso comporta para o regime.

O sinal mais recente desse risco foi dado por Manuela Ferreira Leite, ao defender no Parlamento que a legalidade no funcionamento da Justiça seja atirada às urtigas desde que isso possa trazer elementos “interessantes” para o debate político. A tal ponto chegou este PSD na sua renúncia à vocação de governar o Portugal democrático. No fundo, MFL despreza a “forma” – que é o aspecto da democracia que historicamente se tem revelado de mais difícil entendimento para muitos sectores ideológicos. Faz, desse modo, uma confissão pública de inadequação radical à “democracia formal” e ao Estado de direito. Vivemos dias perigosos: ter um partido falhado no centro do regime pode ter consequências desastrosas. Essa é razão suficiente para todos os democratas esperarem sinceramente que o PSD encontre rapidamente o rumo que lhe devolva as características próprias de um partido com ideias alternativas para o país e com a ambição de as concretizar.


[Um produto A Regra do Jogo]

12.11.09

Ana Vidigal, Matar o Tempo


I WAKE UP IN YOUR BED, 2009

Na Galeria 111, inaguração hoje às 19 horas.

a avaliação dos professores e o governo da coligação negativa



Tendo entrado em funções um novo governo, havendo uma nova ministra da educação, tendo a nova ministra iniciado imediatamente conversações com os representantes dos professores acerca da avaliação de desempenho e estatuto da carreira, estando (de momento) todos a falar num quadro que admite que as perspectivas de entendimento sejam boas - não se percebe o afã das oposições no parlamento a lançar confusão para cima da mesa. Três projectos de lei mais três projectos de resolução - servem para quê? Para dificultar qualquer tentativa de acordo? Para limitar as possibilidades de desenhar uma solução? Para criar a ilusão de que há soluções evidentes para a questão? Ou trata-se apenas de tentar criar a ideia de que acabou a diferença entre governo e parlamento, estando o país à beira de ser governado em regime de soviete?

PSD apresenta projecto "mais aberto" para os professores.


(também aqui)

11.11.09

pousio



Como dizia a Professora T.A., "pousio". Para pensar, é preciso dar pousio. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, pousio é "período geralmente de um ano em que as terras são deixadas sem semeadura, para repousarem". O resultado é que as terras voltam, depois disso, a uma maior força produtiva. Quando se deixa de querer remeter para o cultivo da terra, a referência ao ritmo anual deixa de ser importante. O pousio pode ter outros tempos. Mas permanece necessário.

Entretanto, no mesmo (magnífico) dicionário, a entrada seguinte é "pouso", que pode ser, por exemplo, "lugar onde uma ave descansa de voar". Diria que o pousio pode ser o pouso de quem pensa. Para voar com outro rumo.

Pode um blogue dar a pensar? O pousio o dirá. Quanto a este blogue, isso quer dizer: devagar, um(a) (a)post(a) de cada vez. De vez em quando. Dar pousio aos elementos que rolam pelos dias ao sabor das razões e das emoções, da diversidade que falta à máquina.

O problema desta explicação é ela ser apenas "racional", dando a aparência de ser desinteressada (a lógica serve-se fria?).

A outra explicação, mais interesseira, talvez seja, então, o "ritmo biológico". Pegando, por exemplo, em O Polegar do Panda - Reflexões sobre História Natural, de Stephen Jay Gould (versão portuguesa na Gradiva), lemos que ele nos diz(ia) que o tempo biológico dos animais se distingue do tempo newtoniano. Nos mamíferos, por exemplo, todos respiram uma vez por cada quatro batimentos cardíacos - mas os mamíferos pequenos respiram e batem os seus corações mais depressa do que os grandes mamíferos. A taxa metabólica também aumenta com o aumento do peso do corpo. Também o cérebro. "Medidos pelos seus relógios internos, os mamíferos de diferentes tamanhos tendem a viver a mesma quantidade de tempo. É um hábito profundamente entranhado no pensamento ocidental que nos impede de conceber este importante e reconfortante conceito. Somos treinados desde muito novos para encarar o tempo absoluto newtoniano como único estalão válido de medida num mundo racional e objectivo." (p. 338)

Gould, falando-nos dos "tempos de vida que nos couberam em sorte", relacionando tamanho com tempo, dá-nos uma pista: porque não viver como um grande animal? Por que não "postar" apenas semana a semana, aumentando o nosso tempo de vida (talvez cheguemos a ser tão velhos como a baleia ou o elefante). Claro que os animais mais pequenos são mais irrequietos, dão mais cor à praça. Paciência. Se os blogues apelam a que sejamos autores, usemos os truques do ritmo biológico para sermos autores do nosso tamanho.

É claro: é preciso reconhecer que, quando a vida ferve, todas estas reflexões são ultrapassadas pelas urgências...

10.11.09

Logicomix, An Epic Search for Truth

Recomendo vivamente a leitura desta BD a quem se interesse por lógica, por filosofia da matemática, por filosofia das ciências, por história do pensamento filosófico e científico no século XX e no século XIX que o influenciou. E não é necessária nenhuma preparação especial para o efeito.

Explico tudo isto mais detalhadamente no meu blogue de Banda Desenhada, aqui.



LOGICOMIX, texto de Apostolos Doxiadis e Christos H. Papadimitriou, desenho de Alecos Papadatos e Annie Di Dona, editado pela Bloomsbury, 2009



Memórias. Berlim, 1989, um dia como este, um muro como qualquer outro.




Na noite de 9 de Novembro há 20 anos, o governo da então chamada República Democrática Alemã anuncia de forma desastrada (por não corresponder exactamente ao que queriam fazer, que era uma liberalização cautelosa das saídas para o estrangeiro), anuncia, dizíamos, que os cidadãos desse país poderiam atravessar as respectivas fronteiras (de dentro para fora...) livremente. Em consequência, logo nessa noite, cerca de vinte mil alemães de leste atravessaram o posto fronteiriço de Berlim Leste para Berlim Oeste. No dia 11, as máquinas começaram a abrir mais passagens através do muro da vergonha, já que os postos normais não davam vazão à enchente dos que queriam experimentar o sabor dessa nova liberdade. Logo foram anunciadas conversações para a abertura da simbólica Porta de Brandemburgo, que só viria a tornar-se uma ampla passagem entre dois mundos em Dezembro desse ano. No fim de semana seguinte à abertura, cerca de dois milhões de alemães orientais visitaram Berlim Ocidental.
Tive a sorte de estar nessa Berlim esfuziante por esses dias. Tinha ido à conferência "Security in Europe: Challenges of the 1990's", organizada pelo Politischer Club Berlin e pela Amerika Haus Berlin,  que decorreu entre 15 e 17 desse mês, tendo ficado mais uns dois ou três dias. A conferência acabou na tarde de sexta-feira (17) e, desde aí até ao regresso no domingo, deambulei como uma esponja pela cidade que era nessa altura o centro do mundo. Havia, além do povo que estava a fazer a sua história, uma multidão de jornalistas por todo o lado, especialmente postados em frente à Porta de Brandemburgo, por haver então a expectativa de esse local histórico ser aberto imediatamente.
Descobri há algum tempo duas folhinhas que escrevi na altura, "do lado de lá", no meio da agitação. Estão a ficar roídas pelo tempo. Antes que desapareçam, transcrevo-as para este arquivo-pessoal-público.

Folha 1. "Aqui é a Marx-Engels Platz, em Berlim Leste. Hoje são 17 de Novembro de 1989. O Muro já tem aberturas mas ainda falta muita coisa. Aqui está a ocorrer uma manifestação (ou concentração) de estudantes (pelo menos parecem, pela sua juventude, apesar de também haver gente mais velha). Vim para aqui directamente da estação de metropolitano, onde comprei o meu visto e troquei os obrigatórios 25 DM por 25 marcos da DDR. Do lado de lá vale, não 1 para 1, mas 1 para 10 ou ainda mais. Há o pequeno pormenor de que tenho a máquina fotográfica da Guida ao ombro, mas não consigo tirar nenhuma fotografia. Até o azar pode ser histórico... Outro pormenor é que está um frio danado, que entra por todo o lado apesar de estar com dois pares de meias calçados, camisa, camisola de gola alta, casaco de inverno e gabardina. São aqui 15.50H."
Folha 2. "No mapa, tenho aqui uma indicação sobre a Igreja de S. Nicolau, no centro histórico de Berlim. Fui para entrar, vi que se pagavam entradas e que havia um museu. Como não estou com grande tempo para museus, fui perguntar se também se pagava para ver a igreja. Resposta: «Isto não é uma igreja. Isto é um museu.» Entendi: estamos, realmente, no Leste. São 16H 13M."

Memórias das minhas ingenuidades, pois. Como se vê, ainda havia muita coisa por mudar. Eu não falava uma palavrinha de alemão, mas recolhi um comunicado da SPARTAKIST - Herausgegeben von der Trotzkistischen Liga Deutschlands, com o título "Für eine leninistisch-trotzkistische Arbeitpartei!". E em baixo de página: "Für den Kommunismus von Lenin, Luxemburg und Liebknecht!". Ainda tenho uns jornais, uns autocolantes, uns "alfinetes de peito", desses dias. E, claro, umas pedrinhas pequeninas que eu próprio rapei do muro, à unha, enquanto outros já andavam em cima dele com picaretas.

O mundo, realmente, mudou muito. Nem tudo correu bem, como se sabe. Só que ninguém, sabendo do que fala, pode desprezar o valor da liberdade - haja o que houver, com todos os defeitos que as democracias possam ter. Isso sentiu-se naqueles dias (e ainda se sente) em Berlim. Claro, ainda há quem, por cegueira ideológica, ache que tudo não passou de uma operação das forças reaccionárias conspirando por todo o mundo. Por hoje, a esses nada a dizer.

6.11.09

um novo internacionalismo



O Público noticia que «Um grupo de deputados do Parlamento Europeu (PE) liderado por Rui Tavares, do Bloco de Esquerda, lançou esta semana uma petição em favor da atribuição de novo cargo de presidente do Conselho Europeu a Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda e ex-Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos.»
E mais informa, acerca dos promotores da ideia:
Segundo os signatários, que incluem a socialista Ana Gomes, dois verdes, dois liberais e um comunista de várias nacionalidades...
Um comunista de várias nacionalidades? Isso é que é internacionalismo, caramba!

comunismo





O Avante! on-line, num texto intitulado "20 anos de retrocesso", refere-se às "comemorações" (as aspas são do original) do 20.º aniversário da queda do muro de Berlim como "pretexto para mais uma campanha anticomunista". Acrescenta, reafirmando as posições mais reaccionárias do movimento comunista internacional, que cabem sempre ao PCP, o seguinte:
Toda a imprensa ocidental dominante faz coro em qualificar a queda do muro, e portanto a derrota do socialismo, como a «libertação» do povo da RDA e sinónimo de avanço civilizacional.Porém, a realidade das últimas duas décadas, não só na Alemanha de Leste, mas também na generalidade dos antigos países socialista do Centro e Leste Europeu, já para não falar da URSS, não testemunha qualquer progresso, por mínimo que seja, para o povo, mas antes um tremendo retrocesso económico e social que reduziu à miséria amplas camadas da população, condenou a juventude ao desemprego, privando a grande maioria de uma perspectiva optimista de futuro.

Este texto ilustra mais uma vez, se ainda faltassem disso mostras, o desprezo oficial do comunismo português pela democracia política e pela liberdade, que foram ganhos inequívocos dessas transformações a Leste. Hoje, em crónica no jornal i, Pedro Adão e Silva comenta este tipo de posicionamento do PCP escrevendo que ele denota "por trás das falas mansas do comunismo de sociedade recreativa", um partido "envolvido num crescendo de ortodoxia sem paralelo no mundo ocidental" - e lembra o enlevo de Bernardino Soares com a Coreia do Norte ou a deputada Rita Rato a tentar passar uma esponja pelo Gulag.
Tem toda a razão Pedro Adão e Silva. Mas deve acrescentar-se mais alguma coisa. Sem qualquer compromisso quanto à liberdade, cujo valor nunca é demais salientar - e por isso comemoramos mesmo a queda do Muro de Berlim - há que reconhecer que, à luz do princípio segundo o qual todos os direitos humanos merecem promoção, a democracia nem sempre tem sido lesta a garantir os direitos sociais e económicos que não deviam ser menos valorizados que os direitos políticos. E é por isso que, como nota o mesmo texto do Avante! , muitos alemães de Leste continuam a achar que havia mais coisas boas do que más na antiga República Democrática Alemã. Isto deve questionar-nos, principalmente a quem se assuma como socialista (ou social-democrata, ou trabalhista, consoante as tradições). E não será a cegueira histórica do PCP que nos impedirá de ver quando o erro que ele comete aponta para uma questão genuína e a que não devemos fugir. A democracia não tem medo da comparação com o comunismo, contrariamente ao que defende o PCP. Mas também não deve ter medo de fazer face às suas fraquezas.

nem o fim da História, nem mesmo o fim da estória



imagem daqui


O debate que corre no parlamento sobre o programa do governo está a mostrar que as oposições enchem a boca com a demanda de que o PS e o PM se consciencializem de já não terem maioria absoluta - pela simples razão de não saberem como lidar com as suas novas responsabilidades.
Tirando o CDS/PP, que logo na primeira intervenção fez uma demonstração de como podem as minorias jogar responsavelmente o novo jogo e vir a capitalizar com isso, as oposições mostram não perceber que não chega repetir até à exaustão o discurso eleitoral. (O CDS fez aquela demonstração no caso da avaliação dos professores, aceitando uma parte do que quer o governo - não suspender sem alternativa - e dando publicamente o seu próprio menu de exigências, algumas fáceis de aceitar, outras para deixar cair, outras que lhe darão óptimos troféus de caça).
Na verdade, deixando de lado o PCP, que há muitos anos não tem nada a ver com as verdadeiras decisões que se vão tomando em política nacional (Sócrates já nem se preocupa em lhe dar rebuçados, enquanto quer sempre tirar as palavras da boca a Louçã), os demais, PSD e BE, estão seriamente preocupados com as suas novas responsabilidades - por estarem a ver, e bem, que Sócrates não os vai deixar fugir com o rabo à seringa, agora que todos os partidos contam. O novo quadro de responsabilidades partilhadas cria dificuldades estratégicas essenciais à coligação negativa. O risco que corre a oposição é de ser ridicularizada, se, e quando, Sócrates mostrar que percebeu melhor do que eles o que é uma cultura de negociação. E isso é bem possível, porque Sócrates não é um letrado mas aprende depressa.
Contudo, e a pensar no horizonte da legislatura, há um ponto que certas forças de oposição e certos comentadores têm levantado e onde tocam na ferida. Ainda não se sabe bem o que Sócrates propôs aos demais partidos, mas, de qualquer modo, que o tenha feito a todos, provavelmente nos mesmos termos, demonstrou falta de uma coisa que o SG do PS tanto preza: rumo. Ou seja: nesse "avanço" faltou, pela própria natureza do cenário, uma ideia do que se queria. Porque não se queria, certamente, uma coligação total: tudo ao molho na "maioria".
Como alguém defendeu já, e eu concordo, o PS devia ter proposto um acordo à esquerda, devia ter feito isso claramente - e devia ter pedido negociações sérias, reservadas, concretas e detalhadas, se tivesse surgido um sinal de abertura, por mais frágil que ele fosse. E só se devia ter virado para outras possibilidades depois disto falhar. Eventualmente, para o próprio PSD. (Não cabe aqui explicar-me acerca desta opção. Já o fiz há muito tempo, provavelmente voltarei a isso, mas isso são contas de outro rosário.)
Curiosamente, o CDS é o único partido que fala claramente deste problema. Curiosamente, mas não estranhamente. É que o CDS, ao contrário de outros, já percebeu a lógica da actual situação. É que o CDS será, provavelmente, o único partido que, nas circunstâncias adequadas, poderá agarrar com ambas as mãos uma proposta dessas, caso ela lhe seja feita. Nas circunstâncias adequadas, repito. Só que, e nisso residem as tais "circunstâncias adequadas", não pode mostrar-se demasiado interessado, para não baixar o preço.
Isto, claro, enquanto a cultura de negociação entre os agentes políticos não der um salto em frente, que terá de ser gigantesco. Até lá, enquanto todos estiverem convencidos de que as melhores soluções são as quimicamente puras, todos quererão mostrar-se limpos do pecado de falar com os parceiros.

[também n'A Regra do Jogo, com ilustração alternativa]

seis graus de separação



O jornal i publica, suponho que desde o primeiro número, uma rubricazinha chamada "seis graus de separação". Aí se repete cada dia a seguinte explicação: "A teoria dos seis graus de separação, também conhecida por Human Web, determina que cada pessoa no mundo está ligada a todas as outras através de um máximo de seis ligações. Esta teoria está na base de muitas redes sociais, como o Small World e o Orkut". Diariamente se apresenta o que parece ser tomado como um exemplo da tal teoria.
Por pura bizarria filosófica, interroguei-me sobre o significado deste procedimento. O mais provável é que achem, simplesmente, lá os feitores do jornal, que a coisa tem piada e entretém os leitores. Não obstante, há a remota possibilidade de que alguém pense estar, desse modo, a demonstrar ou a confirmar a "teoria". Nesse remoto cenário, vale um esclarecimento.
Não se pode demonstrar a verdade de uma teoria universal ("cada pessoa no mundo", quer dizer, todas as pessoas) com exemplos: a menos que se possa fazer uma exemplificação exaustiva (demonstrar para cada humano que ele está ligado a cada um de todos os outros humanos de acordo com os requisitos da "teoria"). O número astronómico de casos implicaria, ao ritmo de um exemplo por cada edição do jornal, uma esperança de vida para esse periódico que deve ser considerada irracionalmente optimista.
Pode, contudo, tentar-se de outra forma apreciar a verdade dessa teoria com recurso a exemplos: tentando contra-exemplos. Se pegarmos numa teoria universal e encontrarmos um caso que não se conforma com ela, conseguimos começar a compreender onde é que ela não funciona. Conseguimos saber alguma coisa acerca dela, afinal. Se tentarmos muito, e com muita habilidade, e mesmo assim não conseguirmos encontrar um contra-exemplo, não demonstramos a teoria mas começamos a acomodar-nos à ideia de que ela seja mesmo provavelmente verdadeira. No exemplo mostrado acima podiam, por exemplo, fazer o exercício de me tentar ligar a mim com o Cronenberg: como, provavelmente, isso não seria possível, começariam a aprender algo sobre o valor da tal teoria. Isso faria muito mais sentido do que sugerir que, lá por a teoria funcionar para uns tantos casos, ela é uma teoria verdadeira.
Com um pouco mais de sofisticação, é este raciocínio que está na base da ideia central de Karl Popper acerca do que é uma teoria científica: uma teoria científica é um enunciado universal falsificável, isto é, para o qual podemos procurar contra-exemplos. Não quer dizer que encontremos, mas podemos procurar. Não podemos procurar falsificar um enunciado sem valor empírico, que não diga nada sobre o mundo em que podemos experimentar. E, segundo Popper, o melhor modo de testar uma teoria científica é tentar essa falsificação. Talvez com a esperança de não conseguirmos, mas tentando - por método. Por fidelidade à procura das boas teorias científicas.


Uma curiosa fraude científica




Com brevidade, conta-se assim a história do "Homem de Piltdown". Em 1912, foram encontrados na localidade de Piltdown, na região de Sussex, em Inglaterra, umas ossadas que foram consideradas vestígios de um antepassado dos humanos modernos com 500 mil anos, um "elo perdido" da evolução, que apresentava características de homem e de macaco. Os fósseis foram levados para o Museu de História Natural de Londres e lá ficaram, durante mais de 40 anos, até cientistas da Universidade de Cambridge terem conseguido provar que os fósseis eram falsos. O museu só reconheceu o engano histórico a 21 de Novembro de 1953, há cerca de 56 anos. O autor da fraude, no entanto, nunca foi descoberto.
Dado que este é um curioso motivo de reflexão acerca das relações entre ciência, pseudociência e sociedade, gostaria de acrescentar aqui qualquer coisa. Socorrendo-me de quem saiba mais do que eu, é claro. Stephen Jay Gould faz, em O Polegar do Panda (Gradiva), uma análise deste caso (pp. 120-138), extraindo dele certas conclusões. Resumo como segue a leitura de Gould.

Nos anos 1910, foi apresentado na Grã-Bretanha o que ficou conhecido como "o homem de Piltdown": fragmentos de uma caveira, incluindo partes de um crânio e o maxilar inferior, datados como muito antigos. O notável é que o crânio era claramente humano e a mandíbula claramente simiesca. A descoberta foi considerada notável pelos maiores paleontólogos ingleses e demorou trinta anos a estabelecer com segurança que se tratava de uma fraude: uma mistura intencional de remanescentes de dois animais diferentes. Gould pergunta-se "porquê?" e aponta quatro razões:
(i) a imposição de fortes esperanças sobre evidências dúbias: a paleontologia inglesa desesperava com falta de indícios dos seus antepassados, enquanto os franceses lidavam com superabundância de restos de Neanderthaler e Cro-Magnons - e agora, de repente, o homem de Piltdown, nosso antepassado mais antigo, reduzia o Neanderthaler a ramo lateral;
(ii) redução de anomalias ("buracos" numa teoria científica) encaixando-as em preconceitos culturais: favorecia as teorias da primazia do cérebro na evolução humana: foi um cérebro moderno disponível desde o princípio que nos deu vantagem evolutiva e inspirou as modificações no corpo;
(iii) redução das anomalias equiparando os factos à expectativa: o crânio era completamente moderno, mas na altura foi descrito como se tivesse características próprias para ser tão antigo como era necessário para o engano funcionar;
(iv) prevenção da descoberta pela prática: o comportamento do Museu Britânico tornava praticamente impossível a outros investigadores, que não os proponentes do achado, examinar os originais da caveira.
No global, Gould considera que isto mostra a ciência "como uma actividade humana, motivada pela esperança, pelos preconceitos culturais e pela busca de glória, cambaleando na sua trajectória errática em direcção a um melhor conhecimento da natureza".


fintar o tratado de lisboa




Depois de muitas peripécias, o Tratado de Lisboa está em condições de entrar em vigor. Ainda bem, porque as regras de funcionamento dos colectivos são tão importantes como as questões substantivas que mais facilmente se encaram como o verdadeiro objecto desses colectivos. E, tudo somado, o Tratado de Lisboa, mais do que mexer nas políticas, foi pensado para arrumar a casa.

Um dos mais relevantes aspectos institucionais renovados pelo Tratado de Lisboa está relacionado com a liderança da União Europeia, e com a respectiva visibilidade, quer em termos internos quer em termos globais. A ideia seria ter, além de um Presidente da Comissão (a garantir a coesão do braço comunitário), um Presidente do Conselho Europeu em vez das presidências rotativas (a garantir a continuidade da componente intergovernamental) e um Alto Representante para a Política Externa (pertencendo simultaneamente à Comissão e ao Conselho, a garantir que o resto do mundo saiba para quem deve "telefonar" querendo falar com a UE). O desejável seria que estes três líderes de topo da União Europeia fossem, todos, figuras com marcada personalidade própria, com o conjunto a traduzir a riqueza complexa da dinâmica comunitária.

Entretanto, o que se está a passar é que, com Barroso já sentado na cadeira do executivo, tudo se cozinha para que sejam figuras relativamente fracas a ocupar os dois outros lugares de liderança. Os fortes têm sempre desvantagens - e por elas morrem. Por exemplo, Blair seria, certamente, uma personalidade marcante no lugar de Presidente do Conselho Europeu. Mas, argumentam alguns, está ligado ao erro iraquiano. Pois está. E Barroso não está? Vi um membro do governo luxemburguês a fazer esta barragem a Blair, provavelmente para tentar abrir caminho a Jean-Claude Juncker, PM desse país. Mas, claro, como Juncker apareceu a barrar Blair, essa oposição provavelmente queimará também Juncker. Com o derrube dos gigantes, avolumam-se os pequenos que entretanto vão subindo as escadas da oportunidade: os primeiros-ministros da Holanda ou da Bélgica, por exemplo.

Pode dizer-se: Jacques Delors, um dos melhores presidentes da Comissão Europeia destas décadas, também lá chegou como uma alternativa "menor" aos pesos-pesados que causavam dissensões entre os Estados-Membros - e deu a volta a esse estatuto. É certo. E, que os deuses nos ouçam, isso pode sempre voltar a acontecer. Mas não há milagres todos os dias. E, entretanto, vai-se cumprindo o sonho de Barroso, que é afirmar-se como a única referência da União Europeia, com base na sua experiência e por contraste com figuras pouco firmes e muito desconhecidas que, provavelmente, os líderes europeus vão colocar nos outros lugares de comando.
Se as coisas se passarem assim, o Tratado de Lisboa começou cedo a ser fintado.

3.11.09

cousa pouca



UE: Tribunal Constitucional checo dá luz verde ao Tratado de Lisboa.


Pode ser que, desta vez, a maioria larga dos que querem avançar consiga contornar os obstáculos dos que apostam no pauzinho na engrenagem. Sim, porque há sempre quem, em nome do óptimo, faça todo o trabalho do péssimo. E, infelizmente, há uma sistemática falta de atenção à importância que tem sermos capazes de decidir em conjunto. Um tratado como este é um exercício de "decidir acerca de como decidir" - e isso, a muitos, parece pouco. Ou irrelevante. Mas não é: está mesmo no cerne da viabilidade de uma sociedade democrática.

gravitas




O PS, seguindo uma prática já vetusta para os ciclos da política nacional, apresenta como programa de governo, ao Parlamento, o programa que propôs aos eleitores. Tendo sido na base desse programa que recolheu os votos que o levam ao governo, nada parece mais saudável do que a transparência deste procedimento. Nem todos concordam, contudo. Um coro de críticas troou contra este, dizem alguns, ignorar dos resultados eleitorais. O líder parlamentar do PSD, em particular, fez uns malabarismos verbais para dizer que o programa do governo é "absoluto". Até fez umas ameaças para o futuro, no caso de o Orçamento de Estado também ser "absoluto". Mentiria se escrevesse que isto me espanta: já nada me espanta nesta oposição. Vale a pena, não obstante, tentar perceber o significado último deste ataque a esse acto de transparência que consiste em um partido apresentar ao Parlamento o programa com que pediu o voto popular.
Creio que a oposição ainda não percebeu que acabaram as facilidades para a oposição. É fácil clamar contra a maioria absoluta, mas ela protege os partidos da oposição na sua própria irresponsabilidade. Votar aquilo que lhes parece mais popular num dado momento, sem que isso tenha quaisquer consequências, por se poder imputar toda a responsabilidade ao partido maioritário, é um truque que deixou de funcionar. Quando o voto da oposição pode "governar" o país, bloqueando medida após medida, a coisa pia mais fino. A vida está hoje mais complicada para a coligação negativa que funcionou nos últimos anos com o mero fito de dificultar a governação.
É a essa realidade nova que a oposição custa a habituar-se. Como a oposição não percebeu isto, ainda, queria que fosse o PS a fazer o trabalho dos outros partidos: queria que fosse o PS a assumir, não apenas a sua parte, mas também a parte dos outros partidos, e talvez também a parte do mediador. A oposição queria que o PS apresentasse um programa de governo negociado - sem o ter negociado, por falta de parceiros. A oposição queria que o PS apresentasse um programa de um governo de coligação - sem coligação. A oposição queria desnatar o programa de governo mais votado pelo eleitorado - sem mexer um dedo para discutir o como e o por quê. Isto é o que significa esta reacção das oposições. (O sinal mais claro de que Marcelo ainda pensa ser líder do PSD é ter vindo demarcar-se da posição do seu partido nesta matéria: ele não quer que a sua futura liderança seja ensombrada por este disparate.)
Assumir as responsabilidades é, por vezes, doloroso. É bom que a oposição se habitue a isso. Por que é no Parlamento que vão jogar-se os argumentos e os votos, agora que tudo isso tem muito mais peso e gravidade na realidade da governação. Uma gravidade de que esta oposição já se tinha esquecido. Ficar sentado à espera que o artista em palco se espalhe, para depois vender os cacos pelo melhor preço, deixou de ser a opção simples para uma oposição que só saiba repetir o apelo ao diálogo para esconder a sua própria rigidez. Chegou o momento de saber onde está verdadeiramente a arrogância...