28.12.07
Desponta uma luz no jornal do sr. Fernandes (ainda a novela BCP)
27.12.07
Ainda as lições de jornalismo do sr. Fernandes
As lições de jornalismo do sr. Fernandes
26.12.07
Profecias
23.12.07
O jornal de Belmiro, o BCP, o polvo, outros pecados inconfessáveis e uma grande falta de pachorra para tanta tolice
Fala-se da eventual escolha de Santos Ferreira como se estivéssemos perante mais uma golpada do polvo socialista, do próprio governo, para controlar tudo e mais alguma coisa na sociedade portuguesa. Mais uma declinação da parvoíce agora em moda, que é o “estamos a caminhar para uma ditadura”, alardeada com mais ou menos falta de vergonha na cara. Como se os accionistas do BCP fossem uma cambada de militantes socialistas (e se fossem, não tinham direito?) ou fossem simplesmente estúpidos e, portanto, inclinados a votar contra os seus próprios interesses na sua instituição.
Talvez só se pudesse satisfazer esta gente proibindo qualquer socialista de ser competente, de demonstrar capacidades que o torne apetecível para o exercício de cargos difíceis em grandes instituições – ou talvez até proibindo terminantemente qualquer socialista de pisar o solo sagrado de “sectores estratégicos”. Outra medida complementar que também poderia ser ponderada, para aplacar a ira dos amigos de José Manuel Fernandes, seria legislar para que qualquer governo socialista devesse ser constituído exclusivamente por funcionários das empresas do mesmo grupo do proprietário do Público, na condição de que demonstrassem não ser e não terem sido, pelo menos nos últimos dez anos, militantes, simpatizantes ou até aparentados com os socialistas.
Parece que já não importa nada que o que se tem passado no BCP seja a demonstração da falta de nível de um certo capitalismo português. Os que têm os olhos grandes para ver os erros do Estado, mas têm as pálpebras pesadas para ver as trafulhices dos privados, fartam-se de dar voltas ao miolo para inventar conjuras do partido no governo contra a liberdade de empresa neste país. No fundo, não estão muito longe daqueles dirigentes do PSD que usam o Parlamento Europeu para tentar contrariar o universal aplauso europeu à Presidência Portuguesa da União Europeia. No fundo, o ponto é o mesmo: em desespero, vale tudo. Até tentar arrancar os olhos aos portugueses, para que não possam reconhecer a distância entre a realidade e a demagogia.
"12:08 A Leste de Bucareste"...
22.12.07
19.12.07
18.12.07
o que é que uma miss tem de ter? se não conhece Alizée Poulicek devia pensar nisso
Se não estão surpreendidos por aqui se falar de "misses", deviam estar. Se, de qualquer modo, estão a considerar a minha questão, acalmem-se, não é bem isso. É cultura. Mais (ou pior): nação. Nacionalismo. Separatismo. Política da dura, da mais feroz das questões hoje em dia por todo o mundo.
Isto é: a jovem da foto, de seu nome Alizée Poulicek, estava para ser Miss Bélgica. Só que, filha de pai checo e mãe belga, residindo na zona francófona do país há apenas seis anos, não foi capaz de falar flamengo num momento crucial da sua cruzada para a mais efémera (mas lucrativa) das glórias. E agora parece que acham que ela não pode ser a Miss lá deles. Ora bolas!
POST SCRIPTUM: Se estão surpreendidos com esta nova linha editorial neste blogue (insisto: deviam estar), façam o seguinte: vão ao post anterior, sem título, onde se fala do blogue "À Mains Nues" e vejam o comentário que lá está. Inocente comentário, certo. Peguem no nome da senhora que assina o comentário e "informem-se". Quer dizer: googlem, por exemplo.
16.12.07
L'ouragane, L'orage, esculturas de Germaine Richier,
expostas no exterior do topo do Centro Pompidou. Paris, Fevereiro de 2007.
Foto de Porfírio Silva.
blogues em papel
14.12.07
Coisas Limpas (duas sugestões à ASAE do espírito)
Dado o enorme peso institucional que qualquer simples fármaco sujeito a prescrição comporta (investigação em organizações que limitam a sacrossanta liberdade de espírito do indivíduo-investigador; análise dos eventuais efeitos secundários do fármaco num processo que visa um selo de "autorizado" por parte de alguma entidade mais ou menos estatal ou pelo menos pública, quando cada um devia por si próprio ter a liberdade de analisar a química e tudo o resto do dito fármaco e decidir se o engolia ou não; venda sujeita a receita médica, restringindo a liberdade de comércio e, ainda mais, assim impondo uma intolerável ditadura de uns pretensos técnicos ou cientistas, ainda por cima sujeitos para o exercício da sua profissão a uma autorização de uma Ordem, mais um Big Brother a cercar o direito de cada um a pensar o que quiser em termos de química e derivados, em vez de deixar em aberto a máxima liberdade intelectual para cada um opinar o que lhe parecer certo em termos de medicina do corpo e do espírito) - estávamos a dizer: dado o enorme peso institucional que qualquer simples fármaco sujeito a prescrição comporta, devíamos acabar com tudo isso que antes mencionámos e liberalizar a produção e o consumo de fármacos, de toda a espécie, e condenar como "socialistas" (quer dizer, homens da pedra lascada) quaisquer aventesmas que se opusessem a essa liberdade pura e virginal. E mais devíamos mesmo acabar com qualquer sistema de saúde, não só porque isso acaba sempre por ter uma pitadinha de Estado, mas também porque não devíamos enviesar nenhum espírito a favor da ideia de que saúde é melhor do que doença, nem sequer pretender que vida é melhor que morte, e além do mais se calhar até seria bom que só ficassem os fortes e os fracos arredassem daqui, porque assim a competição seria mais pura e mais vigorosa.
Se esta sugestão, só esta, for aplicada, já nem preciso de avançar com a segunda que o título anunciava. E por isso por aqui me quedo.
Tratado de Lisboa
(Para estimar as complicações do Tratado, clicar na imagem e dar-lhe um pouco de tempo.)
12.12.07
O filósofo Cronenberg
Não temos a pretensão de uma visita (mesmo que breve) ao percurso fílmico de David Cronenberg. A ideia é lembrar alguns dos filmes que vimos do realizador Cronenberg e apresentá-lo como um filósofo do corpo, do corpo mutante: por dentro e por fora; na carne e nos neurónios; no jogo solitário com a transformação genética, tanto como no jogo social que usa diferencialmente os mecanismos de máscara; contra a máquina ou misturando-se com a máquina; entrando “de corpo e alma” na realidade virtual de imersão. Pensamos assim clarificar porque vemos o último Cronenberg como uma continuação.
Em “Crimes of the Future” (1970), a “doença de Rouge”, provocada pelos cosméticos, fez desaparecer todas as mulheres. Enquanto Adrian Tripod nos leva a percorrer uma série de instituições (com nomes como Instituto de Doenças Neo-Venéreas, Casa da Pele, Import/Export Metafísico) à procura de solução para o problema, essa ausência de mulheres vai fazendo emergir o lado andrógino dos homens e vai deixando emergir novas formas de relacionamento.
Em “Shivers” (1975), um médico conduz uma bizarra investigação que o leva a implantar parasitas dentro do corpo das pessoas para substituir órgãos vitais doentes. Vemos os enormes parasitas a espalharem-se por todo condomínio fechado de luxo Starliner, seja por via de ataques violentos, seja limitando-se a introduzir-se nos corpos das pessoas por algum dos respectivos orifícios. O facto de provocarem uma explosão de desejo sexual nos seus portadores multiplica as possibilidades desses parasitas encontrarem novos portadores. É a orgia no prédio. E, no final, vemos que todos juntos saem de carro à conquista da cidade, como no início de uma expedição de zombies.
Em “A Ninhada” (1979), a senhora Nola Carveth, em processo de divórcio/separação de Frank Carveth, está internada na clínica de um psiquiatra “inovador” e aí a sua raiva cria uma ninhada de pequenos monstros, umas criaturas deformadas que matam tudo o que ela odeia. A sua raiva comanda as crias que ela foi parindo, de forma não humana, mas que saem do seu corpo. O batalhão de pequenos assassinos, que habitam o anexo da sua cabana de madeira, corporiza a raiva e torna físicas as suas consequências.
(É favor clicar nesta foto...)
Em “Scanners” (1981), há uma espécie de “sondas” humanas, capazes de dominar telepaticamente outros humanos, que se dividem em duas organizações: uma deve ser “boa”, a outra deve ser “má”, mas torna-se por vezes difícil saber qual é o quê. Cada uma das organizações procura suplantar a outra por diversos meios, uma está até a procurar expandir-se “alimentando” os bebés de “sondadoras” grávidas. Na luta entre o bem e o mal (não se sabendo qual é o quê) revela-se que os dois grandes sondadores/telepatas, os dois mais poderosos, os que foram “alimentados” pelo medicamento durante mais tempo, são irmãos de sangue. Lutam – por telepatia – até que um é destruído e o outro sobrevive. O que sobrevive, pretendendo ser o “bom”, faz permanecer a dúvida que nunca se desfez durante todo o filme: onde está o “bom” e o “mau”? Quem decide tão magna questão, afinal – não apenas no filme, mas no mundo?
Em “Videodrome” (1983), o corpo embrenha-se numa luta desesperada com o banal televisor doméstico. É que as imagens, que todos sabemos poderem influenciar os comportamentos das massas – mas esse é um mecanismo cultural – tornam-se aqui causa directa, fisiológica, de comportamento individual. Pode inserir-se uma cassete vídeo numa ranhura na barriga daqueles humanos e obter assim um efeito de programação do respectivo comportamento. Porquê ficar espantado com isto? Será menos mau ser pressionado através de controlo mental do que ser pressionado por uma cassete nas entranhas? A diferença que isso faz é só o nojo pelo sangue? Mas, nojo por nojo, as emissões televisivas que escondem o mecanismo já são “televisão de sarjeta”, de qualquer modo.
Em “A Mosca” (1986), um corpo humano e um corpo não humano entram em confluência, fruto de uma experiência científica que tem lugar fora dos padrões de prudência que seriam desejáveis. E a mente não fica indiferente à sua base material. Se tivéssemos rodas em vez de pernas teríamos a mesma mente que nos caracteriza na forma actual?
Em “Irmãos Inseparáveis” (1988), os irmãos Beverly e Elliot Mantle, gémeos fisicamente idênticos, mas contudo um exibicionista e outro tímido e recatado, são médicos. Ginecologistas, mais precisamente. Nas relações amorosas exploram a identidade física, partilhando as parceiras à má-fila. Mas um dia isso complica-se, quando Claire se torna um interesse sério para Berverly e este quer a autonomia necessária para prosseguir a relação amorosa. Aí, quando a identidade e a diferença deixam de ser aliadas e se tornam inimigas, quando o que é semelhante na carne repugna à autonomia na mente, quando ser ginecologista não ajuda a lidar com o amor, já não sabemos se não poderemos nós mesmos um dia convencer-nos de que, em vez de sermos unos, somos um par de gémeos desavindos dentro da mesma pele. E, sendo ginecologistas, poderíamos dedicar-nos a inventar instrumentos científicos particularmente engenhosos, e estranhos, para as nossas deambulações...
Em “O Festim Nu” (1991) não há grande novidade: todos sabemos que as drogas fornecem ao corpo certas instruções que se desviam um pouco da relação habitual entre organismo e ambiente. Que as drogas sejam pesticidas, que as máquinas de escrever tenham hábitos estranhos, que certas partes do corpo próprio possam ser dispensadas em certas circunstâncias, que haja ideias a mais no ar ao mesmo tempo para que as possamos acompanhar com um mínimo de apercebimento, isso é pouco mais do que as inúmeras maneiras que nos fornecem as farmácias, ou mesmo os supermercados, para alucinarmos em sonhos suburbanos.
Em “M. Butterfly” (1993) é-nos dado a ver que aquilo que o corpo mostra, ou que o corpo oculta, não é tudo o que há a mostrar ou a ocultar em nós: aquele “M.” do título é ambíguo entre Mr. e Mrs. e isso, que no filme se passa com grande poesia e elevação, é toda uma odisseia para muitos concidadãos e concidadãs que por aí andam.
Em “Crash” (1996) há carros, carros velozes, amantes de carros velozes, acidentes e as próteses que se lhes seguem, corpos, sexo, malucos por sexo em carros velozes, … ou deveria antes dizer “malucos por sexo com carros velozes”? Sem qualquer ponta de pornografia, temos aí uma assumpção mais coerente da loucura automóvel que sofremos nas nossas cidades. Porque não hão-de carros e próteses para a carne viver no mesmo plano? É tudo uma questão de coerência, ou apenas de não desesperar – porque o futuro chega sempre, mais cedo ou mais tarde. Aliás, em Cronenberg, o tempo é sempre outro que não o presente. Talvez não necessariamente o futuro. Talvez a questão não seja “o futuro possível”. Talvez a questão seja simplesmente a de “outros tempos presentes possíveis”. Ou mesmo “outros tempos passados possíveis”.
Em “eXistenZ” (1999) já não se brinca com mecanicismos ingénuos: o que é maquínico e o que é propriamente biológico estão já na mesma família. E, uma vez que a passagem se pode dar pelo jogo, e porque o jogo por via da máquina se nos vai apresentando como inocente, até quase meio infantil, essa fronteira entra-nos pela casa dentro. Nós somos parte da consola de jogo. E quando nos apercebemos já a fronteira entre a máquina e o orgânico passa por dentro de nós e nos remexe na carne. E no espírito, porque a percepção sensível do virtual pode ser exactamente indistinguível da percepção sensível do real. O que, no limite, impede a própria possibilidade de fazermos a distinção entre o real e o virtual.
Em “Spider” (2002) mostra-se um certo número de consequências possíveis de um facto relativamente simples: se a nossa unidade de processamento central nos fornecer, intermitentemente, leituras diversas do mundo, o mundo torna-se para nós verdadeiramente numa intermitência entre vários mundos. E não há objectividade que resista a isso: nem o espectador escapa à dúvida acerca de qual das histórias possíveis esteve a ver. É que, quando a nossa vida se parte em várias peças, e em cada peça os actores fazem coisas diferentes, corremos o risco de nos tornarmos nós mesmos intermitentes, um corpo desligado das identidades narrativas plurais que lhe foram acontecendo.
Já a propósito do anterior filme de Cronenberg, “Uma história de violência” (2005), se pretendia o que agora alguns repetem: que era o fim do ”sujo Cronenberg” e o princípio de outra coisa. Mas o que aí se conta é a história de uma metamorfose reversiva, um re-des-fazer a transformação, o caminho da mutação inversa no desempenho do papel social que parecia classificar um homem como normal, como habitante do habitual. Só que, tal como em “Spider”, já não precisamos que a mutação seja no corpo: ela é igualmente brutal como mutação da mente. O homem velho, que dera lugar ao homem novo, regressa como homem novíssimo de velho – e leva na turbulência a rotina familiar e do lugarejo. Um incidente desfez o sono da larva e despertou, não a borboleta, mas o dragão. E não é impunemente que se vive com um dragão em casa, mesmo que ele pareça morar no corpo padrão de um pai de família. Isto é, lá por Cronenberg não sentir a necessidade de, neste filme, colocar o corpo no centro do processo de mutação, não devemos deixar-nos iludir por isso.
Até porque o lugar do corpo no desenvolvimento da metamorfose regressa, mais uma vez, em “Promessas Perigosas” (2007). Mas disso já falámos em apontamento anterior.
Para quem pensa que os inimigos da democracia não estão entre nós
Notável a aliança entre esta esquerda e a extrema-direita.
Notável que a forma de intervenção numa assembleia representativa, onde normalmente se argumenta e se vota, seja a barulhaça. (Porque não um cerco ao Parlamento, Europeu desta vez, por parte dos trabalhadores da construção civil?)
Notável que, dentro de uma assembleia representativa, se considere que só fora dela se encontra forma de ouvir o povo aí representado.
Os habituais inimigos da democracia representativa, que historicamente foram sistematicamente os inimigos da democracia tout court, perderam a vergonha. Simplesmente.
11.12.07
Natal
Enfim, não deixe que nós, os economistas, lhe estraguemos o Natal. Nunca fomos grande coisa a lidar com emoções. Além disso, há altruísmos que dificilmente são explicados racionalmente.»
Berlim, Dezembro de 2006, montra de Natal na Friedrichstrasse.
10.12.07
Promessas Perigosas (David Cronenberg, 2007)
Dois planos permanentes da metafísica dos filmes de Cronenberg são: o corpo como lugar do espírito e de todas as suas (e nossas) vicissitudes; a metamorfose, ou melhor, as múltiplas metamorfoses que conformam tudo o que percebemos (ou deixamos por perceber). Ora, a meu ver, esses dois temas continuam a fazer a trama mais profunda (também) deste filme.
Quanto ao corpo, está tudo às claras. A personagem nuclear de toda a história tem gravado no seu corpo, em tatuagens, o que é supostamente toda a história verdadeira da sua vida.
É o corpo tatuado que o grupo dirigente daquela instituição mafiosa analisa quando se trata de avaliar as credenciais daquele candidato a entrar para a organização.
E quando a decisão positiva é tomada, essa decisão vai inscrever-se no corpo do homem. São as estrelas tatuadas que acrescentam credenciais naquele corpo. O corpo é, assim, marcado institucionalmente. É preciso que o corpo tenha escrita uma certa história para que o homem que existe com esse corpo possa aceder a uma determinada instituição. O acesso institucional, passar a ser membro daquela organização, passa por um novo acto de escrita no corpo.
Há aqui um aspecto que é essencial sublinhar. Importa ver que essa "escrita institucional no corpo" tem um peso próprio, que aquelas tatuagens não são meros adereços, não são apenas um derivado da pertença institucional. O candidato foi proposto para, sendo aceite e passando a ser portador daquelas tatuagens, ser assassinado por quem procurava essas marcas. Havia, portanto, no acto do homem que propôs aquele candidato, uma fraude institucional: propunha a admissão daquele homem, não por o achar recomendável para essa pertença, mas apenas para ele ostentar os sinais físicos correspondentes e, assim, ficar marcado para morrer. Ora, acontece que, mesmo falhando essa conspiração, as consequências institucionais das tatuagens permanecem: agora que aquele corpo tem as tatuagens adequadas, mesmo tendo chegado a esse estado por caminhos ínvios, a pertença institucional que lhes está associada permanece. E isso virá, num futuro para além do fim do filme, a custar caro ao promotor da fraude institucional, que terá de suportar no seio da sua organização um corpo que ele quis que ficasse marcado para essa pertença, mas apenas para que isso o conduzisse à morte. Não tendo essa morte ocorrido, no entanto, a pertença permanece. O que se marca no corpo permanece.
E assim, digo eu, o tema do corpo, que sempre está no centro dos filmes de Cronenberg, volta a estar no cerne de Eastern Promises. Falta justificar porque entendo que o tema da metamorfose também é central, mais uma vez, neste filme.
Tal como a borboleta irá mais tarde emergir do casulo, depois da sua transformação tão peculiar, também, num futuro que não cabe no tempo do filme mas fica anunciado explicitamente, vai emergir daquele homem (o recém-admitido, o recém-tatuado) um ser totalmente surpreendente para aquela organização.
Aquele homem esconde já uma realidade outra para aquela instituição: aquela instituição vai ser o casulo de um ser que nada se parece, no presente, com o que se mostrará ser depois de consumada a metamorfose. O que aquele homem é, já hoje em estado larvar, anuncia-se como um grande acontecimento para aquela organização, acontecimento que tomará lugar na história daquele grupo humano depois da metamorfose. O bandido-larva vai chegar a chefe da organização criminosa para realizar uma metamorfose que só ao fim de uma longa maturação o mostrará como borboleta-polícia.
(Aproveitando a onda, um destes dias voltaremos aqui ao cinema de Cronenberg.)
7.12.07
Cimeira UE/África...
6.12.07
5.12.07
Linguajar
Testar a hipótese da ordem social espontânea (5/5)
A questão do poder em agentes artificiais (e talvez também nos naturais)
As segunda e terceira ordens de problemas da solução hobbesiana, tal como identificadas por Castro Caldas (cf. postal anterior desta série), remetem quase directamente para a questão do poder e da sua relação com interesses individuais diferenciados. Uma outra das suas experiências de SMA dirige-se precisamente para esse domínio. Tratemos de descrever os seus elementos essenciais, a partir de um dispositivo básico semelhante ao que encontrámos antes para o problema da cooperação.
Temos de novo um grupo de agentes. Cada agente faz uma contribuição monetária, a qual deve respeitar um mínimo estabelecido. O metagente inspecciona em cada ronda uma certa percentagem dos agentes para verificar o cumprimento desse mínimo e, no caso de detectar incumprimento, impõe uma sanção (uma “multa”) tanto mais pesada quanto maior for o desvio face ao mínimo regular.
A novidade é que cada agente tem uma dimensão (que pode ser interpretada, por exemplo, como o valor da sua participação no financiamento da experiência). A dimensão do agente determina quantos votos tem esse agente em decisões no seio do grupo.
O somatório das contribuições é “investido” (multiplicado por 10) e o resultado é repartido por todos os participantes. A repartição pode obedecer a um de dois regimes. Na “repartição utópica”, a parte que cada agente recebe do montante global que resulta do investimento é proporcional à parte da contribuição desse agente no total das contribuições. Na “repartição pragmática”, o pagamento a cada agente é proporcional ao peso da sua “dimensão” no somatório das “dimensões” de todos os agentes. As experiências que vão ser feitas contemplam a possibilidade de ser o próprio colectivo dos agentes a escolher qual dos regimes de repartição aplicar. A experiência no seu conjunto diz respeito à questão de saber como é que os agentes votam quando lhes for apresentada essa escolha e, mais precisamente, como é que a “dimensão” do agente influencia esse voto.
As simulações realizadas começam sempre com uma fase em que o regime de repartição é fixado pelo experimentador (300 gerações com a regra pragmática, 300 gerações com a regra utópica), para que os agentes experimentem as consequências de cada regime para o seu próprio comportamento. Só depois entra em jogo a escolha do regime futuro.
Numa primeira simulação, todos os agentes são “criados iguais”, isto é, todos têm a mesma dimensão. Por isso, as diferenças nos pagamentos percebidos dependem apenas das diferenças nas contribuições individuais. Neste cenário, a fase inicial de regime pragmático imposto exteriormente resulta na recolha de montantes globais (e em pagamentos individuais) relativamente baixos, determinados pela contribuição mínima de praticamente todos os agentes. A fase inicial de regime utópico imposto exteriormente resulta na recolha de montantes globais (e em pagamentos individuais) consideravelmente superiores. O valor que cada regime de repartição assume para cada agente particular é definido pelo pagamento líquido médio que esse agente obteve, no passado, quando vigorava esse regime. É, pois, sem surpresa que, quando os agentes são chamados a votar para escolher o regime de repartição a aplicar no futuro, o voto na regra utópica é unânime.
Numa segunda simulação, com uma distribuição de poder mais realista, o que muda é que os agentes deixam de ter todos a mesma “dimensão”. A dimensão dos agentes é determinada aleatoriamente, assumindo valores entre 0 e 20. Assim, desta vez, o “poder” (dimensão) poderá introduzir diferenças nos pagamentos individuais, sem que essas diferenças sejam resultado da maior ou menor contribuição individual.
A fase inicial desta segunda simulação, com regimes de repartição impostos exteriormente, revela o mesmo comportamento da fase inicial anterior. Contudo, uma diferença assinalável acontece quando os agentes são chamados a votar para escolher o regime de repartição a aplicar no futuro: a regra pragmática vence. Na verdade, mais agentes votaram na regra utópica, mas houve mais votos na regra pragmática, porque são os “grandes” que tendem a votar na regra pragmática, que premeia precisamente o poder e não a contribuição – regra essa que é desvantajosa para os “pequenos”. Note-se ainda que, por causa da menor influência da contribuição individual no pagamento final do mesmo indivíduo no caso em que vigora o regime pragmático, os níveis contributivos gerais baixam nesse regime – mas os “grandes” preferem-no, mesmo assim, porque conseguem pagamentos individuais maiores mesmo quando o montante global disponível é menor.
O poder (aqui representado pela “dimensão”) revela-se, pois, capaz de influenciar o funcionamento dos colectivos – muito para lá de um “interesse comum” ideal que pudesse ser alcançado de uma vez por todas e de forma separável dos interesses diferenciados dos indivíduos.
E assim se revela o carácter abstracto e tintado de irrealismo da hipótese da ordem social espontânea.