20.10.17

Ritos mortuários para robôs.




No "Caderno de Tóquio", onde descrevo e penso sobre os meus meses de trabalho no Japão, uma das coisas que explico é a particular relação que os japoneses têm com o mundo material inanimado. Compreender isso é útil para perceber a relação que têm com os robôs e com os produtos da Inteligência Artificial em geral.
Este vídeo do The New York Times, sobre a forma como os produtores do robô AIBO trataram dos respectivos "ritos mortuários", ilustra a mesma realidade.

Porfírio Silva, 20 de Outubro de 2017

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12.10.17

Conhecimento e Criação de Valor


Hoje, na Assembleia da República, teve lugar um debate (marcação do PSD) sobre "Conhecimento e Criação de Valor", no qual estavam em discussão três Projectos de Lei e três Projectos de Resolução apresentados pelo PSD. Coube-me fazer a intervenção de fundo pelo PS. Deixo aqui o respectivo registo.




Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados,

O PSD apresenta hoje a debate um conjunto de propostas enquadradas genericamente pelo tema “Conhecimento e Criação de Valor”. O PS reconhece a importância do tema. E não é de hoje esse reconhecimento: ele está claro logo no programa do XXI Governo Constitucional e encontra-se no cerne do Programa Nacional de Reformas.

Mas o Partido Socialista, e o Governo, não se limitam a reconhecer a questão. Agimos. Concretizamos. Não podemos deixar de referir, por exemplo, o Programa Capacitar a Indústria Portuguesa, que representa uma das iniciativas Interface e que se destina, designadamente, a aumentar a capacidade de I&D e de inovação nas PME, potenciando a sua ligação ao sistema de inovação através dos Centros de Interface Tecnológico. Nesse contexto, há incentivos à contratação de doutorados para desenvolverem as suas atividades em contexto empresarial; incentivos para que docentes e investigadores desenvolvam parte das suas atividades de investigação nos Centros de Interface Tecnológico, incluindo a sua participação em projetos de I&D; ou incentivos para que os Centros de Interface Tecnológico funcionem como entidades de acolhimento de bolseiros de doutoramento.

Podíamos referir também o reforço do investimento nos Politécnicos, para que se desenvolvam como instituições estratégicas nos seus territórios, por via de reforçada ligação ao tecido económico, social e cultural.

E não podemos deixar de referir os Laboratórios Colaborativos, agora que está aberto em permanência, desde o dia 10 de Outubro, o concurso para o reconhecimento do título de Laboratório Colaborativo, sendo que esse reconhecimento permitirá, depois, concorrer a financiamento específico. Estes Laboratórios Colaborativos vêm para criar emprego qualificado e emprego científico através da implementação de agendas de investigação e de inovação orientadas para a criação de valor económico e social. Os Laboratórios Colaborativos vêm para responder, também, a um desafio de equidade territorial, na medida em que devem democratizar, para todo o território nacional, as atividades baseadas em conhecimento, através de uma crescente consolidação da colaboração entre instituições de ciência, tecnologia e ensino superior e o tecido económico e social, o sistema hospitalar e de saúde, as instituições de cultura e as organizações sociais.

No seu pacote de propostas, o PSD faz de conta que nada disto existe. Nesse sentido, as propostas que o PSD nos apresenta hoje a debate vivem numa ficção, numa irrealidade, de quem não quer olhar para o que está a ser feito, talvez porque lhe custe reconhecer que está a ser feito o que deve ser feito.
Assim, se o PS reconhece a importância do tema “Conhecimento e Criação de Valor”, que o PSD quis trazer hoje a debate, não reconhecemos nas propostas apresentadas valor acrescentado significativo.

E vemos até alguns erros políticos criticáveis.
Com o Projeto de Lei 619/XIII, o PSD propõe uma alteração pontual à lei orgânica da FCT. Ora, desde logo, não nos parece produtiva esta opção por alterações pontuais e desgarradas da lei orgânica de uma instituição como a FCT. Mas menos ainda podemos concordar com o que se propõe em termos de avaliação do Sistema Científico e Tecnológico Nacional e da transferência de conhecimento. O PSD insiste nos erros do seu próprio passado, quando, sob responsabilidade do seu governo, minou gravemente a credibilidade e a equidade dos procedimentos de avaliação de ciência, por ignorar a voz e a experiência da própria comunidade científica. Desta vez, não há nas propostas do PSD qualquer traço de ter tido minimamente em consideração os trabalhos do Grupo de Reflexão sobre o Futuro da FCT, nem o relatório do Grupo de Reflexão sobre a Avaliação de Ciência e Tecnologia pela FCT.
Pelo contrário. Enquanto o Grupo de Reflexão acolhe as preocupações mais avançadas da comunidade científica a nível internacional, pugnando por uma visão de ciência que “vá para além da simples contabilização de impactos quantificados”, por uma avaliação de ciência que vá além da “exagerada proliferação de métricas mal informadas e mal aplicadas” (estou a usar expressões do relatório), a proposta do PSD insiste nas tais métricas e perde de vista as perspetivas mais avançadas a nível internacional, que abrangem as múltiplas dimensões pelas quais a investigação influencia o avanço do conhecimento e que, mais do que apenas a quantidade, apreciam a qualidade do desempenho científico e a apropriação dos resultados da investigação pelo tecido social, económico e cultural.

Outro elemento do pacote de propostas do PSD consiste numa alteração minimalista ao Estatuto da Carreira Docente Universitária e o Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico. É, aliás, uma alteração tão minimalista que parece não permitir nenhuma inovação real, nada que não caiba nos Estatutos em vigor. E vemos até aí alguns problemas, como seja a possibilidade de colocarmos as instituições de ensino superior a financiar recursos humanos a proveito exclusivo de alguma empresa.

Dispersas pelas várias propostas, também há recomendações para se fazer aquilo que já se faz. Por exemplo, não é preciso recomendar ao governo que aposte na promoção da I&D empresarial, porque aquilo que o PSD propõe que se recomende ao governo é menos do que aquilo que já está a ser feito. E, também por exemplo, as bolsas de doutoramento já podem ser executadas em cooperação com empresas ou outras instituições.

Está tudo feito? Não estará. É perfeito tudo aquilo que está a ser feito? Não será. Mas o Governo e o Partido Socialista têm uma estratégia que está em execução e aquilo que o PSD propõe ignora essa realidade.

Precisamos de evoluir institucionalmente. Temos instituições relevantes do lado do ensino superior e da ciência. Temos boas empresas, capazes de desenvolvimento assente em estratégias inteligentes baseadas em conhecimento. Precisamos de desenvolver as instituições que ligam conhecimento e criação de valor, instituições que fazem a ciência puxar pelas empresas e que fazem as empresas puxar pela ciência. Essa estratégia de desenvolvimento institucional está em curso. Infelizmente, o conjunto de projetos que o PSD tem a debate no dia de hoje não acrescenta ao que está a ser feito.


Porfírio Silva, 12 de Outubro de 2017


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4.10.17

O segundo passismo




1. O passismo foi, no passado, essencialmente uma política. Transformou-se, com o tempo e com a táctica, essencialmente numa mentira. E, na hora da saída de Passos de cena, é nessa forma que o passismo sem rosto se prepara para ficar em cena: como uma mentira política.

2. O passismo foi uma política que, na sua ideia central, se resume a isto: retirar da esfera pública os instrumentos políticos de prossecução do bem comum e entregá-los às forças do mercado, em nome da eficiência. Concordando-se ou não com esse programa (nós nunca concordámos), é legítimo adoptá-lo e apresentá-lo ao eleitorado. Podemos lamentar que um partido que, anteriormente, misturava social-democracia com doutrina social da Igreja Católica (o PPD) se tenha transformado numa mistura de neoliberalismo económico com oportunismo (o actual PPD-PSD), mas a democracia faz-se de alternativas. O problema é outro, no caso do passismo: é que ele tenha agido sempre com base numa sucessão de mentiras políticas. Basicamente, duas grandes mentiras políticas estruturantes do passismo, que passo a enunciar.

3. Primeiro, uma mentira que, infelizmente, é relativamente frequente: uma mentira eleitoralista. Esconder em campanha o verdadeiro programa da governação que se pretende desenvolver. Quando estava na oposição e na primeira campanha eleitoral, Passos Coelho dizia que era contra o aumento de impostos, que o país não precisava de mais austeridade, que apertar demasiado o cinto podia matar o doente. Na oposição e em campanha eleitoral, Passos Coelho dizia que se estava a atacar o Estado Social, queixava-se de que havia desempregados sem subsídio, que se estava a atacar a classe média, que era preciso defender os reformados e pensionistas. Passos Coelho até se pronunciava contra a alienação de participações do Estado, dizendo que isso era vender os anéis. Tudo o que veio a fazer a seguir foi o contrário do discurso que fez para chegar ao poder. Essa é a primeira mentira fundamental do passismo. Passos, nos últimos tempos, ensaiava voltar a este tipo de discurso, fazendo reivindicações sociais incompreensíveis à luz das suas políticas e do que tinha apresentado como programa para uma tentativa de segundo governo sob a sua liderança.

4. A segunda mentira estruturante do passismo consiste em pretender que aquilo que fez na governação fê-lo obrigado pela Troika, pelo Memorando de Entendimento, pela herança socialista. Convém lembrar (aos esquecidos) as variadas razões pelas quais essa pretensão é uma mentira política.
Desde logo, se é verdade que o pedido de ajuda internacional foi apresentado pelo governo do PS, ele aconteceu quando o governo Sócrates já estava demissionário, enfraquecido, depois do empurrão que Passos Coelho lhe deu para conseguir eleições antecipadas. Como Lobo Xavier, o histórico do CDS, afirmou sem rebuços na "Quadratura do Círculo" de 16 de Maio de 2013, foram o PSD e o CDS que forçaram a entrada das três instituições em Portugal com o objectivo de pressionar o Governo da altura, ou seja, o de José Sócrates. Na mesma ocasião, Pacheco Pereira realça que este "formato foi desejado como instrumento de pressão externa para a política interna", considerando que "houve alguém que desejou e que o utilizou de forma teórica e política". Por causa deste comportamento, neste debate, tanto Pacheco Pereira como Lobo Xavier chamaram a Passos Coelho "aprendiz de feiticeiro".
Depois, e esta é a questão principal, o Memorando de Entendimento foi fortemente influenciado pelo PSD, que, no final do governo de Sócrates estava em trajectória ascendente e alinhado com as instituições da Troika para aplicar a Portugal mais uma experiência neoliberalizante. Quanto a isto, basta ouvir o que disseram os representantes do PSD. A 3 de Maio de 2011, Eduardo Catroga, representante do PSD (de Passos) nas negociações do "programa de ajustamento" entre Portugal e a Troika, afirmou que a negociação do programa de ajuda externa a Portugal “foi essencialmente influenciada” pelo PSD e resultou em medidas melhores e que iam mais fundo do que o chamado PEC IV. Também dizia que, assim, Portugal ganhava uma "oportunidade para fazer as reformas que se impõem". Depois, no final de Janeiro de 2012, Passos Coelho, já primeiro-ministro, afirmou sem rebuços que o seu partido tinha um "grau de identificação importante" com o programa acordado com a 'troika' e queria cumpri-lo porque acreditava nele. Nas suas palavras: "o programa eleitoral que nós apresentámos no ano passado e aquilo que é o nosso Programa do Governo não têm uma dissintonia muito grande com aquilo que veio a ser o memorando de entendimento celebrado entre Portugal, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional". Ainda segundo o presidente do PSD, "executar esse programa de entendimento não resulta assim de uma espécie de obrigação pesada que se cumpre apenas para se ter a noção de dever cumprido".
Acresce que o Memorando de Entendimento era susceptível de ser revisto em curso de execução – e, portanto, era possível mudar algumas das suas orientações políticas, desde que não se perdessem de vista os objectivos de recuperação financeira e económica. O governo de Passos podia ter feito isso. E fez. O governo PSD/CDS fez várias revisões do Memorando de Entendimento, nunca tendo chamado os partidos da oposição às negociações dessas revisões. Pela simples razão de que usou essas revisões para, usando uma expressão de Passos Coelho, “ir além da Troika”. Por exemplo em matéria de legislação laboral, indo mais longe no desmantelamento da protecção dos trabalhadores do que previa o Memorando inicial. Mas também houve revisões de política sem tocar no Memorando: é o caso da escola pública, onde o governo PSD/CDS cortou muitos milhões além do que pedia o Memorando, enquanto Crato não aplicou os cortes ao financiamento dos privados que estavam previstos no programa de ajustamento.

5. Importa, portanto, estar alerta para esta mentira política fundamental do passismo, que consiste em alijar as responsabilidades próprias do PSD na forma como o país foi governado durante os anos da troika, quando o PSD desejou, propiciou e aproveitou a vinda das instituições internacionais para aplicar o seu programa próprio sem o assumir como tal. A mentira política estruturante do passismo é que a austeridade ao serviço da privatização da sociedade e da destruição do Estado Social foi feita no modo “atirar a pedra e esconder a mão”. 

6. Uma variante desta operação consiste em pretender que sem a austeridade de Passos não seria possível a actual governação e os resultados que tem alcançado. Trata-se da versão caseira da TINA (There Is No Alternative), que continua a insistir que não havia outro caminho para a recuperação económica e financeira que não fosse aquela política. Se há coisa que o actual governo do PS tem demonstrado é que é possível trabalhar para finanças públicas sólidas com outra política de distribuição do esforço. Só que, como já não paga defender abertamente a política de “ir além da troika”, alguns refugiam-se agora nessa variante envergonhada – e, mais uma vez, essencialmente enganadora e ligada à mentira política fundamental do passismo.

7. O que é que isto tem a ver com o futuro? Tudo. Porque as alternativas a Passos dentro do PSD, provavelmente, não se libertarão desta mentira política. Basta que nos lembremos de quem, com a Grande Depressão ao rubro, classificou a maior crise económica mundial em 80 anos como “uma constipação”. Perceberemos que, com ou sem Passos, o passismo vai continuar a andar por aí. Porque, provavelmente, não é desta que o PSD vai voltar à social-democracia.


Porfírio Silva, 4 de Outubro de 2017


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2.10.17

As autárquicas e a esquerda plural




1. A 1 de Outubro de 2017, o PS teve a maior vitória autárquica da sua história. Como titula um quotidiano, “há 32 anos que um partido no Governo não ganhava as autárquicas”. As eleições autárquicas costumam servir para dar cartões amarelos ou vermelhos aos governos, desta vez serviram para dar um cartão vermelho à oposição. Foi a hecatombe para o PSD e para o discurso desfasado da realidade imposto por Passos Coelho, enquanto o CDS de Assunção Cristas festeja muito por estar a disputar o campeonato da direita. Passos Coelho estragou a campanha dos seus candidatos com a insistência desbragada na sua agenda própria em variações do tema diabólico, Assunção Cristas deu uma heroína a um partido que sem isso não teria muito para se distinguir da concorrência no seu campo.

2. Numa nota interna, sublinho a importância que teve nesta vitória uma inovação organizativa introduzida por proposta de António Costa: quando o PS está no Governo, um Secretário-Geral Adjunto, rodeado de uma Comissão Permanente, todos sem responsabilidades governativas, cuidam de que o Partido não seja esquecido face às exigências da governação do país. Ana Catarina Mendes, tendo-lhe sido cometida essa responsabilidade como Secretária-Geral Adjunta, tem dado uma brilhante concretização a esta fórmula, trabalhando incansavelmente para que o Partido se mantenha como estrutura essencial de participação democrática cidadã dos socialistas de cartão ou de simpatia. O triângulo Governo-Parlamento-Partido, pela primeira vez, funciona dinamicamente. Isto prova que, em vez de descartarmos os partidos como colectivos políticos, o que temos é de melhorar e democratizar o seu funcionamento, uma tarefa sempre inacabada.

3. Os resultados destas autárquicas, pela dimensão que assumiram alguns dos números, pedem uma reflexão acerca das suas consequências. Quanto ao PSD, há quem diga que a maioria parlamentar vai perder o seguro de vida de um Passos Coelho ensimesmado nos seus sonhos de desforra – e, portanto, fechado nos limites do passado e incapaz de pensar virado para o futuro. Pelo meu lado, considero degradante para a política nacional em geral que o maior partido da oposição esteja, como tem estado, incapaz de assumir as suas responsabilidades e errático quanto às opções a tomar em matérias estruturantes. Se o PSD se livrar do negativismo passista e se tornar mais desafiante para a maioria, isso não nos facilitará a vida – felizmente, porque o poder democrático precisa de contraditório e de oposição a sério. Uma oposição séria, e à séria, obrigar-nos-á a sermos sempre mais exigentes connosco próprios, o que só pode ser saudável.

4. Outro aspecto dos resultados eleitorais tem a ver com os resultados dos partidos à esquerda do PS. Quanto ao BE, não há muito a dizer: uns ganhos aqui e ali não o arrancaram, para já, da irrelevância autárquica global. Isso poderá mudar no futuro, mas, nesse aspecto, o futuro não é já hoje. O PCP teve perdas que enchem o olho e entusiasmaram os que anseiam por uma crise política na maioria parlamentar. Embora parte dessas perdas do PCP sejam devidas a pequenas variações, ainda por cima comparadas com um grande resultado da CDU há quatro anos, não deixa de ser verdade que este elemento requer uma reflexão política mais geral sobre o futuro da esquerda plural. Tentamos aqui dar um contributo para essa reflexão, sem tentar dar lições ao PCP, partido que tem todos os mecanismos para analisar a situação e dar-lhe resposta sem precisar de paternalismos ou conselhos que alguns se apressam a oferecer.

5. O essencial já foi dito pelo Secretário-Geral do PS: estes resultados são uma grande derrota da direita e traduzem o valor da solução política que governa o país. Traduzem a afirmação do “novo tempo”. Podemos acrescentar que essa solução política está no governo do PS, mas está também na maioria parlamentar de esquerda. Um pouco para além das variações eleitorais locais, temos de considerar o apoio que estes resultados revelam a uma solução progressista para o país, que só pode ser liderada pelo PS, mas que tem beneficiado do contributo do PCP e do BE. Há que dizê-lo sem hesitações, em dois pontos. Primeiro, só o PS pode liderar uma governação de esquerda capaz de ter o apoio maioritário (político e sociológico) dos portugueses. É importante que se perceba isso, até por sabermos que alguns sonharam transformar o PS num partido de segundo plano na esquerda portuguesa. Segundo, o PCP e o BE têm contribuído muito relevantemente para o sucesso desta governação, quer pelos seus contributos programáticos, quer por manterem activa a ligação aos sectores sociais mais críticos e que pela primeira vez se sentem representados na responsabilidade de governar – aspecto essencial para manter viva a representação democrática. O PCP e o BE, nas suas diferenças face ao PS, têm feito do governo do PS um governo melhor. É na junção destes dois vectores que podemos perceber a dinâmica da esquerda plural.

6. Há, contudo, um fantasma de qual devemos falar. A maioria absoluta do PS. Convém começar pelo princípio: a aritmética eleitoral diz que uma maioria absoluta do PS, não sendo impossível, é sempre improvável. Contudo, na medida em que qualquer partido tem sempre de tentar alargar o seu apoio, o PS, mesmo que não o diga (e não deve dizê-lo, sempre tive dificuldade em perceber a lógica de “pedir maioria absoluta” quando cada eleitor só tem um voto) tentará aumentar a sua votação, no limite até à maioria absoluta. É por isso que faz sentido que António Costa já se tenha pronunciado sobre essa questão, dizendo que, mesmo nessas circunstâncias, o PS quererá o contributo dos seus actuais parceiros parlamentares. Sem surpresa, os mais altos responsáveis do PCP e do BE disseram mais ou menos o mesmo sobre essa eventualidade: não querem ser um adereço supérfluo numa maioria à qual não façam falta. Aritmeticamente. Entende-se. E isso suscita a seguinte questão: qual pode ser o elemento novo que leve o PCP e o BE a manterem-se na maioria da esquerda plural em caso de serem aritmeticamente dispensáveis?

7. Um elemento novo pode ser a participação no governo. Já confessei publicamente que, aquando do debate interno ao PS sobre esta solução política, eu era dos que preferiam a entrada da outra esquerda no governo. E também confessei que, bem vistas as coisas, que isso não tenha acontecido acabou por facilitar algumas coisas, como seja a frente europeia. Agora, olhando para o futuro, a entrada no governo do PCP e do BE pode ser o elemento novo que estabeleça um novo patamar de trabalho conjunto da esquerda plural, tornando significativa a continuação desta fórmula parlamentar mesmo com uma eventual maioria absoluta do PS. Como é bem de ver, isto implicaria politicamente algo diferente – e mais exigente – do que temos actualmente: um grau de acordo político explícito que teria de ir muito além das “posições conjuntas” dois a dois. E que exigiria trabalhos forçados em questões tão essenciais como a política europeia. Tudo isto é mais fácil de dizer do que fazer. Mas pode tornar-se necessário. E acontece que a necessidade aguça o engenho. E por vezes é assim que o mundo pula e avança.

8. O que é que tudo isto tem a ver com as autárquicas? Uma coisa muito simples: o cimento da maioria política é a maioria social. A esquerda plural está, de momento, condenada a continuar a ser esquerda plural, apenas e precisamente porque uma maioria de portugueses, de diferentes convicções políticas, da esquerda mais moderada à mais radical, depositam a esperança na viabilidade da sua visão para Portugal nesta fórmula que o país nunca tinha experimentado. Podem não gostar de certas coisas do PS, do PCP ou do BE, mas querem que “isto” resulte. Porque, nas grandes linhas, esta governação corresponde aos seus anseios. Porque esta governação está a cumprir o que prometeu. Porque, devagar devagarinho, vai-se fazendo caminho. E há que não deixar o caminho a meio. A esquerda tem obrigação de mostrar que serve para mais do que dar um correctivo aos excessos de um austeritarismo pouco sofisticado dos nossos neoliberais de trazer por casa. A esquerda tem obrigação de mostrar que é capaz de dar uma estratégia ao país: uma década de desenvolvimento social e económico sustentado. E, portanto, quem, excitado ou assustado com as autárquicas, despreze a base social dessa aspiração, poderá pagar cara a precipitação. Deverá pagar cara a precipitação.

9. E, noutro vector de raciocínio acerca da relação entre política nacional e política local, cabe anotar o seguinte. Mesmo tendo perdido algumas câmaras, o PCP continua a ser um elemento essencial da maioria social que suporta e dá sentido a esta maioria política. E, claro está, a compreensão deste ponto vai ser importante em muitas decisões de governação autárquica que serão tomadas nos próximos tempos: quando autarcas do PCP ou do PS tiverem que escolher parceiros, por serem relativas as suas maiorias de vereadores, preferirão outro polo da esquerda plural ou preferirão o PSD? E não pensem que esta seja uma tentação particular para o PS: muitas vezes, o PCP prefere dar a mão à direita nas autarquias, em vez do PS. No passado, foi assim. Mudará o raciocínio, hoje, face às novas realidades políticas nacionais? Deste ponto de vista, foi importante o sinal dado ontem por Fernando Medina, declarando, antes de ter os resultados finais de Lisboa, que queria uma governação alargada mesmo que tivesse a maioria absoluta na Câmara. E explicitando que nesse alargamento olharia especialmente para a esquerda da esquerda.

10. A esquerda plural só pode revelar todas as suas potencialidades se as suas forças somarem, em vez de subtraírem. Isso é tão verdade para a política nacional como para a política local, desde que, repito, não esqueçamos que o cimento da maioria política é a maioria social. Compreender isso ajudará todos a prescindir do excessivo tacticismo, a ultrapassar a tentação da contestação oportunista e sem olhar à sustentabilidade. Compreender isso ajudará todos a preservar a identidade própria de cada parte, investindo-a no bem comum no quadro de uma democracia renovada pela representação alargada.


Porfírio Silva, 2 de Outubro de 2017

(O gráfico é do Expresso.)

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