1. A 1 de Outubro de 2017, o PS teve a maior vitória autárquica da sua história. Como titula um quotidiano, “há 32 anos que um partido no Governo não ganhava as autárquicas”. As eleições autárquicas costumam servir para dar cartões amarelos ou vermelhos aos governos, desta vez serviram para dar um cartão vermelho à oposição. Foi a hecatombe para o PSD e para o discurso desfasado da realidade imposto por Passos Coelho, enquanto o CDS de Assunção Cristas festeja muito por estar a disputar o campeonato da direita. Passos Coelho estragou a campanha dos seus candidatos com a insistência desbragada na sua agenda própria em variações do tema diabólico, Assunção Cristas deu uma heroína a um partido que sem isso não teria muito para se distinguir da concorrência no seu campo.
2. Numa nota interna, sublinho a importância que teve nesta vitória uma inovação organizativa introduzida por proposta de António Costa: quando o PS está no Governo, um Secretário-Geral Adjunto, rodeado de uma Comissão Permanente, todos sem responsabilidades governativas, cuidam de que o Partido não seja esquecido face às exigências da governação do país. Ana Catarina Mendes, tendo-lhe sido cometida essa responsabilidade como Secretária-Geral Adjunta, tem dado uma brilhante concretização a esta fórmula, trabalhando incansavelmente para que o Partido se mantenha como estrutura essencial de participação democrática cidadã dos socialistas de cartão ou de simpatia. O triângulo Governo-Parlamento-Partido, pela primeira vez, funciona dinamicamente. Isto prova que, em vez de descartarmos os partidos como colectivos políticos, o que temos é de melhorar e democratizar o seu funcionamento, uma tarefa sempre inacabada.
3. Os resultados destas autárquicas, pela dimensão que assumiram alguns dos números, pedem uma reflexão acerca das suas consequências. Quanto ao PSD, há quem diga que a maioria parlamentar vai perder o seguro de vida de um Passos Coelho ensimesmado nos seus sonhos de desforra – e, portanto, fechado nos limites do passado e incapaz de pensar virado para o futuro. Pelo meu lado, considero degradante para a política nacional em geral que o maior partido da oposição esteja, como tem estado, incapaz de assumir as suas responsabilidades e errático quanto às opções a tomar em matérias estruturantes. Se o PSD se livrar do negativismo passista e se tornar mais desafiante para a maioria, isso não nos facilitará a vida – felizmente, porque o poder democrático precisa de contraditório e de oposição a sério. Uma oposição séria, e à séria, obrigar-nos-á a sermos sempre mais exigentes connosco próprios, o que só pode ser saudável.
4. Outro aspecto dos resultados eleitorais tem a ver com os resultados dos partidos à esquerda do PS. Quanto ao BE, não há muito a dizer: uns ganhos aqui e ali não o arrancaram, para já, da irrelevância autárquica global. Isso poderá mudar no futuro, mas, nesse aspecto, o futuro não é já hoje. O PCP teve perdas que enchem o olho e entusiasmaram os que anseiam por uma crise política na maioria parlamentar. Embora parte dessas perdas do PCP sejam devidas a pequenas variações, ainda por cima comparadas com um grande resultado da CDU há quatro anos, não deixa de ser verdade que este elemento requer uma reflexão política mais geral sobre o futuro da esquerda plural. Tentamos aqui dar um contributo para essa reflexão, sem tentar dar lições ao PCP, partido que tem todos os mecanismos para analisar a situação e dar-lhe resposta sem precisar de paternalismos ou conselhos que alguns se apressam a oferecer.
5. O essencial já foi dito pelo Secretário-Geral do PS: estes resultados são uma grande derrota da direita e traduzem o valor da solução política que governa o país. Traduzem a afirmação do “novo tempo”. Podemos acrescentar que essa solução política está no governo do PS, mas está também na maioria parlamentar de esquerda. Um pouco para além das variações eleitorais locais, temos de considerar o apoio que estes resultados revelam a uma solução progressista para o país, que só pode ser liderada pelo PS, mas que tem beneficiado do contributo do PCP e do BE. Há que dizê-lo sem hesitações, em dois pontos. Primeiro, só o PS pode liderar uma governação de esquerda capaz de ter o apoio maioritário (político e sociológico) dos portugueses. É importante que se perceba isso, até por sabermos que alguns sonharam transformar o PS num partido de segundo plano na esquerda portuguesa. Segundo, o PCP e o BE têm contribuído muito relevantemente para o sucesso desta governação, quer pelos seus contributos programáticos, quer por manterem activa a ligação aos sectores sociais mais críticos e que pela primeira vez se sentem representados na responsabilidade de governar – aspecto essencial para manter viva a representação democrática. O PCP e o BE, nas suas diferenças face ao PS, têm feito do governo do PS um governo melhor. É na junção destes dois vectores que podemos perceber a dinâmica da esquerda plural.
6. Há, contudo, um fantasma de qual devemos falar. A maioria absoluta do PS. Convém começar pelo princípio: a aritmética eleitoral diz que uma maioria absoluta do PS, não sendo impossível, é sempre improvável. Contudo, na medida em que qualquer partido tem sempre de tentar alargar o seu apoio, o PS, mesmo que não o diga (e não deve dizê-lo, sempre tive dificuldade em perceber a lógica de “pedir maioria absoluta” quando cada eleitor só tem um voto) tentará aumentar a sua votação, no limite até à maioria absoluta. É por isso que faz sentido que António Costa já se tenha pronunciado sobre essa questão, dizendo que, mesmo nessas circunstâncias, o PS quererá o contributo dos seus actuais parceiros parlamentares. Sem surpresa, os mais altos responsáveis do PCP e do BE disseram mais ou menos o mesmo sobre essa eventualidade: não querem ser um adereço supérfluo numa maioria à qual não façam falta. Aritmeticamente. Entende-se. E isso suscita a seguinte questão: qual pode ser o elemento novo que leve o PCP e o BE a manterem-se na maioria da esquerda plural em caso de serem aritmeticamente dispensáveis?
7. Um elemento novo pode ser a participação no governo. Já confessei publicamente que, aquando do debate interno ao PS sobre esta solução política, eu era dos que preferiam a entrada da outra esquerda no governo. E também confessei que, bem vistas as coisas, que isso não tenha acontecido acabou por facilitar algumas coisas, como seja a frente europeia. Agora, olhando para o futuro, a entrada no governo do PCP e do BE pode ser o elemento novo que estabeleça um novo patamar de trabalho conjunto da esquerda plural, tornando significativa a continuação desta fórmula parlamentar mesmo com uma eventual maioria absoluta do PS. Como é bem de ver, isto implicaria politicamente algo diferente – e mais exigente – do que temos actualmente: um grau de acordo político explícito que teria de ir muito além das “posições conjuntas” dois a dois. E que exigiria trabalhos forçados em questões tão essenciais como a política europeia. Tudo isto é mais fácil de dizer do que fazer. Mas pode tornar-se necessário. E acontece que a necessidade aguça o engenho. E por vezes é assim que o mundo pula e avança.
8. O que é que tudo isto tem a ver com as autárquicas? Uma coisa muito simples: o cimento da maioria política é a maioria social. A esquerda plural está, de momento, condenada a continuar a ser esquerda plural, apenas e precisamente porque uma maioria de portugueses, de diferentes convicções políticas, da esquerda mais moderada à mais radical, depositam a esperança na viabilidade da sua visão para Portugal nesta fórmula que o país nunca tinha experimentado. Podem não gostar de certas coisas do PS, do PCP ou do BE, mas querem que “isto” resulte. Porque, nas grandes linhas, esta governação corresponde aos seus anseios. Porque esta governação está a cumprir o que prometeu. Porque, devagar devagarinho, vai-se fazendo caminho. E há que não deixar o caminho a meio. A esquerda tem obrigação de mostrar que serve para mais do que dar um correctivo aos excessos de um austeritarismo pouco sofisticado dos nossos neoliberais de trazer por casa. A esquerda tem obrigação de mostrar que é capaz de dar uma estratégia ao país: uma década de desenvolvimento social e económico sustentado. E, portanto, quem, excitado ou assustado com as autárquicas, despreze a base social dessa aspiração, poderá pagar cara a precipitação. Deverá pagar cara a precipitação.
9. E, noutro vector de raciocínio acerca da relação entre política nacional e política local, cabe anotar o seguinte. Mesmo tendo perdido algumas câmaras, o PCP continua a ser um elemento essencial da maioria social que suporta e dá sentido a esta maioria política. E, claro está, a compreensão deste ponto vai ser importante em muitas decisões de governação autárquica que serão tomadas nos próximos tempos: quando autarcas do PCP ou do PS tiverem que escolher parceiros, por serem relativas as suas maiorias de vereadores, preferirão outro polo da esquerda plural ou preferirão o PSD? E não pensem que esta seja uma tentação particular para o PS: muitas vezes, o PCP prefere dar a mão à direita nas autarquias, em vez do PS. No passado, foi assim. Mudará o raciocínio, hoje, face às novas realidades políticas nacionais? Deste ponto de vista, foi importante o sinal dado ontem por Fernando Medina, declarando, antes de ter os resultados finais de Lisboa, que queria uma governação alargada mesmo que tivesse a maioria absoluta na Câmara. E explicitando que nesse alargamento olharia especialmente para a esquerda da esquerda.
10. A esquerda plural só pode revelar todas as suas potencialidades se as suas forças somarem, em vez de subtraírem. Isso é tão verdade para a política nacional como para a política local, desde que, repito, não esqueçamos que o cimento da maioria política é a maioria social. Compreender isso ajudará todos a prescindir do excessivo tacticismo, a ultrapassar a tentação da contestação oportunista e sem olhar à sustentabilidade. Compreender isso ajudará todos a preservar a identidade própria de cada parte, investindo-a no bem comum no quadro de uma democracia renovada pela representação alargada.
Porfírio Silva, 2 de Outubro de 2017