1. O passismo foi, no passado, essencialmente uma política. Transformou-se, com o tempo e com a táctica, essencialmente numa mentira. E, na hora da saída de Passos de cena, é nessa forma que o passismo sem rosto se prepara para ficar em cena: como uma mentira política.
2. O passismo foi uma política que, na sua ideia central, se resume a isto: retirar da esfera pública os instrumentos políticos de prossecução do bem comum e entregá-los às forças do mercado, em nome da eficiência. Concordando-se ou não com esse programa (nós nunca concordámos), é legítimo adoptá-lo e apresentá-lo ao eleitorado. Podemos lamentar que um partido que, anteriormente, misturava social-democracia com doutrina social da Igreja Católica (o PPD) se tenha transformado numa mistura de neoliberalismo económico com oportunismo (o actual PPD-PSD), mas a democracia faz-se de alternativas. O problema é outro, no caso do passismo: é que ele tenha agido sempre com base numa sucessão de mentiras políticas. Basicamente, duas grandes mentiras políticas estruturantes do passismo, que passo a enunciar.
3. Primeiro, uma mentira que, infelizmente, é relativamente frequente: uma mentira eleitoralista. Esconder em campanha o verdadeiro programa da governação que se pretende desenvolver. Quando estava na oposição e na primeira campanha eleitoral, Passos Coelho dizia que era contra o aumento de impostos, que o país não precisava de mais austeridade, que apertar demasiado o cinto podia matar o doente. Na oposição e em campanha eleitoral, Passos Coelho dizia que se estava a atacar o Estado Social, queixava-se de que havia desempregados sem subsídio, que se estava a atacar a classe média, que era preciso defender os reformados e pensionistas. Passos Coelho até se pronunciava contra a alienação de participações do Estado, dizendo que isso era vender os anéis. Tudo o que veio a fazer a seguir foi o contrário do discurso que fez para chegar ao poder. Essa é a primeira mentira fundamental do passismo. Passos, nos últimos tempos, ensaiava voltar a este tipo de discurso, fazendo reivindicações sociais incompreensíveis à luz das suas políticas e do que tinha apresentado como programa para uma tentativa de segundo governo sob a sua liderança.
4. A segunda mentira estruturante do passismo consiste em pretender que aquilo que fez na governação fê-lo obrigado pela Troika, pelo Memorando de Entendimento, pela herança socialista. Convém lembrar (aos esquecidos) as variadas razões pelas quais essa pretensão é uma mentira política.
Desde logo, se é verdade que o pedido de ajuda internacional foi apresentado pelo governo do PS, ele aconteceu quando o governo Sócrates já estava demissionário, enfraquecido, depois do empurrão que Passos Coelho lhe deu para conseguir eleições antecipadas. Como Lobo Xavier, o histórico do CDS, afirmou sem rebuços na "Quadratura do Círculo" de 16 de Maio de 2013, foram o PSD e o CDS que forçaram a entrada das três instituições em Portugal com o objectivo de pressionar o Governo da altura, ou seja, o de José Sócrates. Na mesma ocasião, Pacheco Pereira realça que este "formato foi desejado como instrumento de pressão externa para a política interna", considerando que "houve alguém que desejou e que o utilizou de forma teórica e política". Por causa deste comportamento, neste debate, tanto Pacheco Pereira como Lobo Xavier chamaram a Passos Coelho "aprendiz de feiticeiro".
Depois, e esta é a questão principal, o Memorando de Entendimento foi fortemente influenciado pelo PSD, que, no final do governo de Sócrates estava em trajectória ascendente e alinhado com as instituições da Troika para aplicar a Portugal mais uma experiência neoliberalizante. Quanto a isto, basta ouvir o que disseram os representantes do PSD. A 3 de Maio de 2011, Eduardo Catroga, representante do PSD (de Passos) nas negociações do "programa de ajustamento" entre Portugal e a Troika, afirmou que a negociação do programa de ajuda externa a Portugal “foi essencialmente influenciada” pelo PSD e resultou em medidas melhores e que iam mais fundo do que o chamado PEC IV. Também dizia que, assim, Portugal ganhava uma "oportunidade para fazer as reformas que se impõem". Depois, no final de Janeiro de 2012, Passos Coelho, já primeiro-ministro, afirmou sem rebuços que o seu partido tinha um "grau de identificação importante" com o programa acordado com a 'troika' e queria cumpri-lo porque acreditava nele. Nas suas palavras: "o programa eleitoral que nós apresentámos no ano passado e aquilo que é o nosso Programa do Governo não têm uma dissintonia muito grande com aquilo que veio a ser o memorando de entendimento celebrado entre Portugal, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional". Ainda segundo o presidente do PSD, "executar esse programa de entendimento não resulta assim de uma espécie de obrigação pesada que se cumpre apenas para se ter a noção de dever cumprido".
Acresce que o Memorando de Entendimento era susceptível de ser revisto em curso de execução – e, portanto, era possível mudar algumas das suas orientações políticas, desde que não se perdessem de vista os objectivos de recuperação financeira e económica. O governo de Passos podia ter feito isso. E fez. O governo PSD/CDS fez várias revisões do Memorando de Entendimento, nunca tendo chamado os partidos da oposição às negociações dessas revisões. Pela simples razão de que usou essas revisões para, usando uma expressão de Passos Coelho, “ir além da Troika”. Por exemplo em matéria de legislação laboral, indo mais longe no desmantelamento da protecção dos trabalhadores do que previa o Memorando inicial. Mas também houve revisões de política sem tocar no Memorando: é o caso da escola pública, onde o governo PSD/CDS cortou muitos milhões além do que pedia o Memorando, enquanto Crato não aplicou os cortes ao financiamento dos privados que estavam previstos no programa de ajustamento.
5. Importa, portanto, estar alerta para esta mentira política fundamental do passismo, que consiste em alijar as responsabilidades próprias do PSD na forma como o país foi governado durante os anos da troika, quando o PSD desejou, propiciou e aproveitou a vinda das instituições internacionais para aplicar o seu programa próprio sem o assumir como tal. A mentira política estruturante do passismo é que a austeridade ao serviço da privatização da sociedade e da destruição do Estado Social foi feita no modo “atirar a pedra e esconder a mão”.
6. Uma variante desta operação consiste em pretender que sem a austeridade de Passos não seria possível a actual governação e os resultados que tem alcançado. Trata-se da versão caseira da TINA (There Is No Alternative), que continua a insistir que não havia outro caminho para a recuperação económica e financeira que não fosse aquela política. Se há coisa que o actual governo do PS tem demonstrado é que é possível trabalhar para finanças públicas sólidas com outra política de distribuição do esforço. Só que, como já não paga defender abertamente a política de “ir além da troika”, alguns refugiam-se agora nessa variante envergonhada – e, mais uma vez, essencialmente enganadora e ligada à mentira política fundamental do passismo.
7. O que é que isto tem a ver com o futuro? Tudo. Porque as alternativas a Passos dentro do PSD, provavelmente, não se libertarão desta mentira política. Basta que nos lembremos de quem, com a Grande Depressão ao rubro, classificou a maior crise económica mundial em 80 anos como “uma constipação”. Perceberemos que, com ou sem Passos, o passismo vai continuar a andar por aí. Porque, provavelmente, não é desta que o PSD vai voltar à social-democracia.
Porfírio Silva, 4 de Outubro de 2017