30.12.13

incendiar o Extremo-Oriente.



O Público noticia a visita do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, ao santuário xintoísta de Yasukuni, em Tóquio, tal como noticia o desagrado da Coreia do Sul e da China por esse gesto.

Para compreender o que está em causa, relembro um texto anterior deste blogue, escrito em Tóquio após ter visitado esse mesmo santuário: Vale dos Caídos (Caderno de Tóquio, 22).

27.12.13

infantilidades.


Poucos terão escrito coisas piores acerca de Cavaco do que eu aqui neste espaço. Quer pelo lado do desempenho político, quer pelo lado da estatura humana.
Mas, quando um ministro guineense chama infantil ao Presidente da República do nosso país e há quem ainda aproveite isso para zurzir em Cavaco, em vez de denunciar como inadmíssível a pesporrência de um membro de um governo de legitimidade duvidosa de um Estado falhado - isso quer dizer que a tolice tomou a cidade por dentro e por fora.

23.12.13

votos para a quadra.


Os meus votos estão todos num: que mereçamos este poema.

Porque


Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Mar Novo (1958)






20.12.13

acórdãos.


O cidadão que se quer informado sobre a vida pública, mas que tem a sua própria vida a fazer, encontra dificuldades em encontrar chão seguro para se posicionar. Na verdade, saber o que pensar com um dispêndio razoável de energia não é fácil. Estamos entalados entre dois perigos. Por um lado, especialistas obscuros, gente que sabe muito mas que se exprime como um oráculo, com terminologia e raciocínio destinados a só poderem ser escrutinados pelos pares da mesma obscuridade. Por outro lado, comentadores que não sabem do que falam ou, se sabem, se empenham mais em nos empurrar para uma determinada opinião do que em nos dar elementos de juízo próprio. Não é fácil a vida de cidadão...

Venho sugerir-vos uma alternativa segura. Não deixa de ser trabalhosa, mas é um investimento de notável retorno. Já antes, quando trabalhei em Bruxelas, tendo como função sentar-me dois ou três dias por semana a defender posições meio políticas, meio jurídicas, em geral com uma história longa, sem eu próprio ser jurista, resolvia muitas vezes o meu problema de densidade argumentativa lendo as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia. É que essas decisões, além de fazerem um enquadramento histórico e legal de cada caso, explicam com extraordinário rigor o que está em causa e o percurso racional que leva à decisão. Agora, por cá, há acórdãos de tribunais portugueses que nos podem servir para o mesmo. Por exemplo, o acórdão do Tribunal Constitucional que ontem foi tão falado (pela rama) a propósito da chamada convergência dos regimes de pensões.

Estes acórdãos são tudo o contrário da poluição que por aí vai em termos de opinião pública. Tudo tem de ser explicado detalhadamente: um juíz de um tribunal superior arrisca a sua credibilidade se, por exemplo, fizer uma declaração de voto imbecil ou falha de rigor. Tudo fica claro e sujeito a escrutínio: está escrito, pode ser analisado e criticado (contrariamente aos comentários que navegam ao sabor dos ventos nas nossas televisões). Os argumentos contrários são tidos em conta: um acórdão que não clarifique as razões de tomar esta em vez daquela decisão é um acórdão inconcebível (ao contrário dos comentadores que escondem metade dos factos para melhor se aquecerem). E, contrariamente à lotaria do "ganhou" ou "perdeu", as decisões são matizadas: desenham-se alternativas, objecções possíveis, incertezas (ao contrário da vozearia dominante, onde todos têm certezas e as certezas só podem estar alinhadas num rebanho qualquer). E, talvez surpreendentemente, estes acórdãos, sendo longos, não são particularmente obscuros. E como me delicia ler um raciocínio tão organizadamente exposto, tão meticuloso, tão bem encadeado - e tão elegante.

E nada do que deixo dito depende de concordar ou não concordar com esta ou aquela decisão em concreto.

Devia haver uma prova pública de acesso ao comentário na praça pública: "quantos e quais acórdãos do TC leu antes de os comentar?"

(ACÓRDÃO Nº 862/2013 do Tribunal Constitucional)

19.12.13

letras e ciências.


Ontem à noite, por razões que não vêm agora ao caso, estive uns minutos à conversa com alguém que, não apenas pelo meu critério pessoal, mas também a julgar por critérios mais largamente admitidos, é um dos intelectuais mais relevantes e genuínos desta nossa terra. Um homem das artes. Às tantas, diz-me. "Actualmente, a gente das ciências é muito mais interessante do que a gente das letras. Por exemplo, nas escolas, muitos professores preferem dar português a alunos virados para as ciências do que a alunos virados para as letras." E, sabendo que ando pelo Técnico nestes tempos, acrescentou: "Por exemplo, no Técnico há gente muito interessante culturalmente."

Fiquei a pensar, confesso. Não que me cause estranheza o valor das gentes das ciências. Mas fiquei a pensar na comparação.

Pergunto: é justa a comparação?

Pergunto, mais: se a comparação é justa, como explicar a realidade que ela descreve?


muitas unidades à esquerda.



Multiplicam-se as iniciativas para "unir a esquerda". "Livre", "3D", pelo menos. Uns querem unir a esquerda toda, outros querem unir alguns: a julgar pelo que dizem, porque tenho dúvidas sobre o que quer dizer a palavra "unidade" em cada um desses casos. Não sou dos que criticam essas iniciativas por serem, como alguns dizem, "divisionistas". Dividida já a esquerda estava antes de aparecerem estes novos rebentos, não vale a pena castigar por isso os que chegam agora. Embora, chegados de novo, não são novos: quase todos andam por aí há muitos anos e partilham das mesmas responsabilidades que os demais pela desunião.

E aí é que a porca torce o rabo: não é por tocarem mais na nota da unidade que farão mais pela unidade. Não há unidade possível, pela positiva, sem uma convergência básica sobre o que fazer pelo país em termos de governação. Unidade de oposição, a mim, não me interessa nada. Interessa-me unidade para fazer. Interessava-me que o "arco da governação" incluisse toda a gente e não apenas o PS e a direita; interessava-me que a "maioria constitucional" fosse do PS com a esquerda, pelos menos às vezes, em ver de ser o PS mais a direita, como tem sido (apesar do passos-coelhismo ter esquecido isso repentinamente); interessava-me que os sindicatos tivessem outro relevo na concertação social e nas lutas socias; interessava-me um sistema político menos partidarizado, sem ser contra os partidos; e interessava-me que tudo isto servisse para trazer mais gente à democracia, tanto ao voto como à participação mais activa.

Ora, sendo nós membros da União Europeia e participantes no sistema Euro, não é possível nenhuma unidade em torno da governação que não passe, ou não assente, numa convergência substantiva acerca da posição de Portugal na Europa. Portugal governa-se, em grande parte, pela nossa partilha de responsabilidades no quadro europeu. Acabou a autarcia. O nacionalismo é pão para tolos. Podemos empobrecer sozinhos, não podemos prosperar isolados na jangada de pedra. Da mesma maneira que, no tempo da Guerra Fria, os comunistas não entravam nos governos ocidentais por uma questão geostratégica global, concordasse-se ou não com esse enquadramento, também agora é impossivel um governo europeu ser bem sucedido como governo se não tiver uma ideia clara e definida sobre o seu lugar na UE.

Portanto, se alguém quer mesmo unidade à esquerda, tem por onde começar: gizar um debate de convergência sobre a política europeia de Portugal. É um debate difícil, crucial, estratégico. Talvez seja, por isso, a morte do artista tentar entrar por aí. Mas deixar de colocar esse debate no centro do jogo é confessar que a retórica da unidade é apenas conversa. Nesse caso, muitas unidades à esquerda não farão mais unidade da esquerda.

História da Crise.


O meu amigo Rui desenha, pinta e escreve - e há muito tempo que junta essas coisas todas ao seu cepticismo para nos propor visões desafiantes do mundo que nos rodeia. Visões que, a mim, nunca me deixam indiferente: mesmo quando não concordo inteiramente com a "tese", reconheço o seu olhar clínico e sem condescendência sobre as nossas pequenas misérias.

Agora, o Rui acaba de disponibilizar um dos seus cocktails com o título "História da Crise". Tirando umas pequenas coisas de amador (que está ao seu alcance técnico melhorar), já fiz ao autor uma observação que aqui partilho, porque se dirige a um ponto que pode enviesar a recepção. Eu sei, porque conheço um pouco do pensamento do Rui, que a ironia está presente nas palavras desta peça, bem colocada em pontos estratégicos, mas, a meu ver, isso não é evidente a quem receba sem qualquer pré-conceito este objecto de intervenção. Não há marcadores de ironia! Bom, isso só pode tornar mais exigente a nossa própria recepção. Mas, afinal, isso não tem de ser mau.

Ainda por cima, pensar na companhia destas "pinturas de alma" que desfilam neste pequeno vídeo, é pensar com estímulo.

Aproveitem. E, depois, visitem o Homem do Farol lá na sua morada habitual.



18.12.13

haverá nisto uma explicação para a situação política nacional ?




Everything You Always Wanted to Know About Sex But Were Afraid to Ask (O ABC do Amor), Woody Allen, 1972.

Willy Brandt.


Willy Brandt faria hoje 100 anos. Merece uma pausa para reflexão. Um gigante que talvez não se orgulhasse muito dos herdeiros (que somos nós, todos os social democratas).

Ainda tive uma fugaz visão pessoal do homem: a oportunidade de estar sentado à mesma mesa, numa reunião de cúpula da Internacional Socialista, onde estavam também dirigentes como Jacques Delors, Gro Harlem Brundtland e, julgo, Filipe González. Em Milão, ainda no tempo dessa má companhia que depois se revelou ser Bettino Craxi. Eu, claro, estava lá só para carregar a pasta de quem, pelo lado português, contava.



pequenos deuses patronais.


O Público de ontem relata o seguinte caso:

"Duas médicas dos serviços de saúde da TAP que trabalhavam para a companhia aérea há mais de 15 anos foram informadas pelos seus directores que o seu horário de trabalho seria aumentado em dez horas, mantendo-se o salário inalterado. Opuseram-se. A partir desse momento, começaram a marcar-lhes doentes para as horas em que não estavam, informando os seus pacientes que tinham faltado sem avisar; quando estavam no consultório, mantinham-nas sem doentes para atender. Isabel Aureliano e Maria Irene Prayce acabaram por ser diagnosticadas com depressão." (Duas médicas despedidas ilegalmente processam TAP por assédio moral)

Os despedimentos das médicas foram já considerados ilegais pelos tribunais, mas elas querem ainda que os tribunais condenem a entidade patronal por assédio moral. E fazem muito bem. Note-se que não se trata de uma empresa de vão de escada, gerida por um tonto qualquer sem formação para empresário, movido pelo apetite de ser patrão - como há tantos por aí. Estamos a falar de um trabalho assalariado desenvolvido na órbita de uma grande empresa (ainda) pública. E, no entanto, se forem verdadeiros todos os factos relatados (não me antecipo aos tribunais), aconteciam coisas como as assim relatadas:

"As médicas de clínica geral, que seriam as mais velhas do serviço, respondem que lhes é impossível cumprir o horário proposto. A partir daí os seus superiores dão ordem para que lhes sejam marcadas consultas para os dias em que sabem que estão ausentes. Nos dias em que estão no consultório dizem aos pacientes que as médicas faltaram.
Começam a chover reclamações dos utentes contra as médicas. Nas respostas aos doentes descontentes, o serviço responde que não se podem responsabilizar por ausências não justificadas: “O dia e a hora a que a paciente se refere corresponde ao período do horário da Dra, a qual faltou sem aviso ou explicação”, lê-se.
A situação arrasta-se durante cerca de três meses, a cada mês são-lhes descontadas as ditas ”faltas injustificadas”. Às clínicas acabam por ser abertos processos disciplinares que servem de fundamento aos seus despedimentos por “justa causa”, que têm lugar nesse ano. São afastadas do serviço."

Se isto fosse a excepção... Infelizmente, isto é o retrato de uma mentalidade muito espalhada entre nós, nos mais diversos locais de trabalho: a gestão de pessoal é gestão do terror, do arbítrio, do puro desmando. A selva. O capitalismo que temos é isto. Em inúmeros casos. E quem fala de "competitividade", "produtividade" e coisas que tais, fazendo de conta que os trabalhadores é que têm a culpa de tudo, esquecendo a tacanhez de muitos grandes e pequenos "chefes", comete um crime social contra a nossa dignidade.

E calamo-nos?

15.12.13

Será que o Parlamento Europeu foi manipulado? Ainda o Relatório Estrela.


Aqui há dias referi aqui o "Relatório Estrela", ou seja, o “Relatório sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos” produzido no Parlamento Europeu sob o impulso de Edite Estrela.

Depois informei, mais brevemente, sobre a derrota à tangente dessa iniciativa no plenário do Parlamento Europeu.

Deste então, várias notícias deram conta de um certo número de deputados que se queixam de que o sistema de voto electrónico alterou o sentido do seu voto: votaram de modo favorável ao Relatório Estrela e o seu voto foi contabilizado em sentido inverso.

A questão é que todas as direitas, incluindo as extremas, apresentaram uma moção alternativa para impedir a votação do Relatório Estrela. Foi nessa manobra que o relatório foi travado. Já tinha começado a cheirar a esturro quando se percebeu que o sistema de voto electrónico "tinha opinião própria" e levava votos da esquerda para a direita do hemiciclo de Estrasburgo. Agora, surge uma nova denúncia.

Segundo a realizadora de documentários engajados Myriam Tonelotto, a tradução simultânea do Parlamento Europeu, pelo menos em algumas línguas, aldrabou a mensagem de Edite Estrela. Enquanto esta, numa mensagem imediatamente antes da votação, pedia EM PORTUGUÊs que votassem CONTRA as moções que impediam a votação do seu relatório, alguns grupos linguísticos recebiam em tradução o apelo contrário, como se Edite Estrela pedisse que eles votassem A FAVOR, baralhando assim, possivelmente, alguns parlamentares.

Deixo o vídeo que expõe esta tese - e pergunto: será que o Parlamento Europeu foi manipulado?



14.12.13

compras de natal.


Esta coisa é uma máquina de escrever | mas não escreve. Quer dizer, só imprime palavras | no papel se eu lhe disser o que tem de fazer. Mas | isso não é escrever, é obedecer. E não há nada mais | contraditório do que escrever e obedecer.

13.12.13

emprego científico em Portugal.


Divulgo aqui a Carta Aberta ao Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), remetida pela Plataforma Em Defesa da Ciência e do Emprego Cientifico em Portugal.

*

Exmo. Sr. Dr. Miguel Seabra,

Nas últimas horas, duas semanas depois do prazo, chegaram aos investigadores do Concurso FCT 2013 as avaliações. Como comissão representativa da Plataforma Em Defesa da Ciência e do Emprego Cientifico em Portugal, vimos por este meio, no espírito da moção aprovada por centenas de investigadores, docentes e bolseiros, em plenário, comunicar-lhe o seguinte.

Verificamos que os candidatos não tiveram direito a uma avaliação em condições de absoluta igualdade e repudiamos o processo, relevador de desrespeito pela comunidade científica.

Vários candidatos – recordamos que este que é um concurso publico que leva meses a preparar individualmente - desconhecem, depois do recente email enviado pela Instituição a que vossa excelência preside, os seus avaliadores no âmbito da préselecção, os CV dos seus avaliadores do painel de pré avaliação bem como a sua instituição para garantir que é cumprido o regime de incompatibilidades; se foram avaliados pelo painel internacional como previa a lei. Ao contrário da informação fornecida no esclarecimento publicado pela FCT, muitas das candidaturas não têm nenhuma avaliação ou receberam menos dos que as 3 avaliações previstas no concurso.

Os candidatos, não tiveram, na sua maioria, acesso aos relatórios completos da avaliação elaborados pelos “avaliadores externos” e/ou pelos painéis internacionais. Em muitos casos, a avaliação disponibilizada aos investigadores não indicia que tenha sido feita uma avaliação detalhada dos seus cvs e projectos. Em vários casos ainda, o resumo da avaliação recebido mostra claramente que os avaliadores não têm conhecimentos na área ciêntifica dos candidatos. Está por publicar a listagem da avaliação detalhada, como em qualquer concurso público, de todos os candidatos seleccionados e rejeitados, aberta ao público, condição sine qua non de transparência e de garantia de defesa dos candidatos (por termo de comparação) em sede de audiência prévia. Recordamos que o painel de pré-selecção não estava previsto na lei que rege este concurso e que não houve lugar a recurso a quem foi rejeitado por esse painel. Há candidatos a quem foram comunicados os resultados, hoje, na forma, acintosa e desrespeitosa de meia dúzia de linhas gerais e generalistas, sem evidência empírica, sem qualquer quantificação da avaliação por item. Consideramos este processo inaceitável.

Assim, exigimos:

- A garantia de que todas as candidaturas no concurso Investigador FCT 2013 sejam avaliadas em condições de igualdade por um painel composto exclusivamente por peritos internacionais.

- A comunicação aos candidatos do concurso Investigador FCT 2013 da identidade dos seus avaliadores externos, dos seus currículos e das instituições científicas a que pertencem.

- A comunicação aos candidatos deste concurso dos pareceres completos que esses avaliadores redigiram.

- O acesso público a todas as actas de avaliação, com os argumentos/pareceres do júri respeitantes a cada um dos candidatos, quer dos que obtiveram financiamento, quer dos que foram excluídos do mesmo.

- A constituição de mais painéis de júri internacionais, mais abrangentes e com um número maior de membros para que seja possível proceder a uma avaliação correcta, objectiva e de mérito não só do currículo dos candidatos mas também dos projectos de investigação propostos em todas as candidaturas submetidas.

O financiamento da ciência tem de ser pautado por critérios científicos e transparentes. A Fundação para a Ciência e Tecnologia não pode permitir-se conduzir concursos que deixam uma ampla indignação, de suspeitas e dúvidas, na comunidade científica nacional. Esta não é uma questão que diga respeito à colocação de cientistas individuais no concurso ou aos avaliadores dos painéis, individualmente considerados, mas a todos os docentes e investigadores, à gestão dos dinheiros públicos, à condução de políticas transparentes no campo administrativo e científico.

Aceitar um processo obscuro, eivado de irregularidades e suspeitas no ar, significaria abrir um grave precedente para todos os concursos (de projectos, de investigadores, de unidades) daqui para a frente. Caso não haja um cabal esclarecimento público de todo o processo, até dia 16 de Dezembro às 16 horas, avançaremos com uma acção judicial no sentido de se impugnar este concurso e de se proceder a um novo, que coloque os candidatos em condições de igualdade, que preencha rigorosamente todas as disposições legais a que um concurso desta natureza está obrigado.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2013

12.12.13

um teste ao vosso nervo sobre o Papa Francisco.


A 9 de Janeiro de 2012 o Público publicava esta notícia: Vaticano censura livro sobre “diversidade familiar”.
Lia-se no Público: «Uma editora católica argentina foi obrigada a retirar do mercado um livro sobre sexualidade e diversidade das famílias. O seu autor, o pastor metodista Pablo Manuel Ferrer, defende que “a sexualidade é um desejo válido”.»
Como se aplicou essa "condenação"? Por carta do responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal norte-americano William Levada. A editora foi obrigada a retirar das lojas todos os exemplares da obra, a eliminá-la do seu catálogo e ficou proibida de a publicitar em qualquer das suas publicações.
Censura é censura, uma prática que conhecemos das ditaduras. Não se tratou neste caso, sequer, de reafirmar a "linha oficial" perante uma divergência no seio das hostes. Tratou-se de impedir uma editora de ter à venda um livro, cujo autor nem sequer é católico, onde se expressava uma interpretação do Novo Testamento que difere da interpretação dos detentores do poder dentro da Igreja Católica.
Aberrante.
Aqueles que seguem com expectativa, ou apenas curiosidade, a acção do novo Papa, Francisco, talvez gostassem de ter resposta à seguinte pergunta: poderia aquele tipo de censura acontecer hoje?
Não venho para vos dar uma resposta simples. Uma possível resposta simples seria: o Cardeal Levada continua no seu posto: escândalo! Outra resposta também simples, embora de sinal contrário, seria: este Papa mudou o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé: aleluia, confirma-se a mudança! Nenhuma destas respostas simples funciona. É que, mesmo antes da mudança de Papa, já tinha mudado o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, por resignação do Cardeal Levada (por motivo de idade, aos 75 anos têm de pedir a resignação). Em Julho de 2012 passou a ser Monsenhor Gerhard Ludwig Müller. Não há, portanto, uma resposta simples para aquela pergunta. Isso torna o assunto mais estimulante para pensar: poderia aquele tipo de censura acontecer nestes tempos de Francisco?

11.12.13

a Cornucópia atira-se à crise.



Passo a divulgar (parcialmente) uma mensagem que recebi da companhia Teatro da Cornucópia.

***

CORNUCÓPIA VAI TRABALHAR COM ACTORES AMADORES E ALUNOS DE TEATRO

Perante as dificuldades que atravessa, vendo sucessivamente reduzido o regular financiamento do Estado, o Teatro da Cornucópia acredita ainda ser possível manter em actividade a sua estrutura, um lugar com características particulares, por num só e mesmo espaço conter afinal todos os instrumentos necessários a sua produção: escritórios, oficinas, espaço de ensaios, preciosa sala de apresentação, não esquecendo os armazéns de guarda-roupa e de cenários recicláveis. Assim, teimosamente e no sentido de não parar, procura encontrar formas novas de viabilizar o seu trabalho de criação de espectáculos.

Pensa conseguir realizar durante o ano e em co-produção com o Teatro Nacional S. João e o Teatro Nacional D. Maria II, uma produção em moldes já anteriormente praticados bem como uma co-produção com o Teatro Municipal S. Luiz, com 9 representações e relacionada com a passagem de 40 anos sobre o 25 de Abril de 1974.

Das verbas disponíveis para estes projectos, já concebidos de forma a se adaptarem as actuais dificuldades de produção, pouco resta para as restantes actividades da temporada.

A Companhia tem a noção de que, se não é a única, é uma das últimas que mantém uma forma de trabalho que se apoia numa estrutura fixa com custos, em que todos os sectores coabitam e trabalham em conjunto na construção de cada espectáculo. E de que, na situação actual, tudo cada vez mais a empurra para outras formas de existência, que correspondem a menos gastos fixos com a estrutura e mais compra de serviços ao exterior.

Mas ainda não desistiu de si própria e, tentando que das dificuldades surjam soluções positivas, vai apostar no trabalho com não profissionais.
São muitas as pessoas que se mostram curiosas pelo trabalho da companhia e pedem para de alguma forma participar. São inúmeros os estudantes de teatro que pedem para estagiar nalgum espectáculo. Não havendo da parte da Companhia nenhum preconceito contra o teatro como actividade puramente lúdica e de natureza cultural, resolveu ela desafiar os seus espectadores para uma situação de troca de serviços, como está a acontecer noutras actividades: contra a possibilidade que a Cornucópia oferece de pessoas não profissionais de teatro actuarem como actores em moldes profissionais e terem a experiencia de um estágio, qualquer pessoa de qualquer idade e formação cultural pode oferecer-se para participar num espectáculo a ensaiar a partir de 2 de Janeiro e com uma exibição pública no Teatro da Cornucópia de duas semanas e meia no inicio de Marco na sua sede. Essas pessoas estarão a prestar um serviço a Companhia através do seu trabalho não remunerado, tornando-se solidárias com a situação que a companhia atravessa, permitindo-lhe que continue a produzir espectáculos, mesmo sem a possibilidade de contratar profissionais.

O espectáculo a ensaiar chamar-se-á ILUSAO, será dirigido por Luis Miguel Cintra com a colaboração de Cristina Reis e da habitual equipa da Cornucópia e será construído a partir de várias pecas, ou esboços, do jovem Federico Garcia Lorca. (escritas entre os 21 e os 24 anos) e só publicadas em 1994.

Os interessados deverão inscrever-se até 16 de Dezembro.



peões de brega, cuja profissão não pega.


Na sua página no Facebook, A Naifa escreve:
«Agora é oficial! "A Tourada" está a ser censurada nos principais meios de comunicação. É inacreditável que esta canção/video cause tantos constrangimentos em Portugal no ano da graça de 2013.»

Alguém tem medo, outra vez?



se isto não é um mentiroso, o que será um mentiroso?

No dia 10 de Dezembro de 2013, Passos Coelho ao Jornal de Negócios:


Mas o representante do PSD na negociação do Memorando reivindicava a paternidade pelo rebento:


E o próprio Passos Coelho, mais recentemente, continuava apaixonado pelo Memorando:


Assim, para não termos de dizer (pela enésima vez) que o actual PM é um mentiroso sem emenda, teremos de o aconselhar a adoptar a solução sonhada por um canal de TV: que tal uma cimeira entre Passos Coelho e Passos Coelho a ver se se entendem, hein?!


Relatório Estrela: uma batalha perdida.


O “Relatório sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos”, aprovado pela Comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade dos Géneros do Parlamento Europeu, foi hoje presente ao plenário dessa instituição e foi afastado por iniciativa de sectores militantes da direita europeia e portuguesa.

O "Público" resume assim a principal linha de argumentação subjacente ao voto de hoje do Parlamento Europeu sobre o Relatório Estrela: "Invocando o princípio da subsidiaridade, segundo o qual os Estados devem ser livres de legislar sobre as questões que dizem respeito aos seus cidadãos, os eurodeputados aprovaram em plenário uma resolução que teve como efeito a anulação da votação do relatório."

Quer dizer: aquilo que é essencial na Europa, um espaço de direitos humanos, quando convém passa a ser assunto dos Estados-Membros. A Europa preocupa-se com o euro e com o défice e com a dívida - mas acha que as questões de direitos humanos são para os Estados-Membros tratarem?! Edite Estrela resume bem a tendência quando diz que o Parlamento Europeu "era mais progressista em 2002 do que é hoje”, porque há 11 anos "aprovou um relatório com um conteúdo muito semelhante a este" que agora nem deixou votar.

É claro que o ponto do aborto se tornou a bandeira central desta batalha. Evidentemente, ninguém queria impor o aborto a ninguém, mas os "defensores da vida" que tratam do assunto de forma ideológica querem, na prática, "expulsar" dos sistemas de saúde aqueles que recorrem à interrupção voluntária da gravidez. Teremos que dizer, para usar os termos extremos que alguns desses "defensores da vida" preferem: há por aí quem nem se importasse que morressem as mulheres que recorrem a esse acto extremo. Ora, isso é inadmissível: não é aceitável que, em nome de morais privadas, haja quem faça das leis letra morta, quando a vida e a saúde das mulheres que recorrem à IVG acabam por ser desprezadas por quem enche a boca com a "defesa da vida".

Assim de repente, deixo sobre o horizonte de futuro próximo duas observações preliminares.

Primeiro, uma questão estritamente política: os métodos do extremismo reaccionário que são correntes nos States vão (estão a) ser importados em força na Europa. Isso é importante, porque há nas instituições uma direita muito permeável aos que berram alto. O que se tem passado no PE sobre este relatório é um assalto de certos grupos activistas ao medo e ao oportunismo de certos deputados. Devo dizer que acho legítimos esses métodos de mobilização, mas insisto que temos de estar atentos a esta movimentação, até porque actua muitas vezes por deturpação abusiva do que está em causa. E também porque muitos responsáveis políticos não têm coragem para um debate racional sobre assuntos delicados.

Em segundo lugar, é preciso ter atenção a uma questão "religiosa" (eu diria antes, de política dos religiosos). E é muito simples: os movimentos mais militantes da direita católica estão a preparar-se para a eventualidade de terem de travar uma batalha contra certas orientações do Papa Francisco. Não creio que, doutrinalmente, o Papa lhes vá causar problemas sérios, mas muitos temem isso e querem estar preparados para lhe dar luta. A afinação dos métodos de mobilização, que serve para a política, servirá também para isso, se for o caso.

Perder uma batalha não é perder a guerra. Mas convinha que as esquerdas percebessem o que aí vem.

Aníbal vai às exéquias.


http://politica-aos-quadradinhos.blogspot.pt/2013/12/anibal-vai-as-exequias.html

Clicar no quadradinho para ver tudo.

Estrela Report.


Na foto, manifestantes contra o "Relatório Estrela" em Estrasburgo, hoje.

Quando a acção dos políticos transcende a banalidade do ramerrame, os seus nomes deixam de ser (apenas) seus e passam a ser das acções relevantes que empreendem. É também assim neste caso: o “Relatório Estrela” é o nome-bandeira pelo qual passou a ser conhecido o trabalho da deputada europeia Edite Estrela, enquanto autora do “Relatório sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos”, aprovado pela Comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade dos Géneros do Parlamento Europeu e, agora, presente ao plenário dessa instituição. (Na realidade, já foi presente anteriormente, mas os meios mais conservadores europeus conseguiram, até agora, evitar a votação.)

Os direitos sexuais e reprodutivos abrangem um vasto domínio, incluindo: o direito a cuidados de saúde maternos e ao planeamento familiar; a questão da mortalidade materna (com indicadores a melhorar, mas com flutuações preocupantes em alguns países europeus); a questão da educação sexual, cuja inexistência ou insuficiência tem efeitos negativos nas taxas de natalidade na adolescência, de interrupção voluntária da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis; a questão do aborto, com alguns países europeus que continuam a legislar a hipocrisia (quer dizer, proibindo na lei, explicita ou implicitamente, para poderem fechar oficialmente os olhos e não terem que se defrontar com os problemas reais) ou que, apesar de legislações mais realistas, deixam pulular os obstáculos extralegais aos mecanismos legais; as insuficiências dos sistemas de saúde no que toca às doenças sexualmente transmissíveis; a violência de género, muitas vezes ligada à sexualidade; etc. A merecer preocupação está também o facto de, aparentemente, alguns países europeus não monitorizarem adequadamente estas questões. Por exemplo, mais de dois terços de Estados-Membros não dispõem de qualquer informação sobre a percentagem de mulheres grávidas que foram a, pelo menos, uma consulta pré-natal e mais de um quarto de Estados-Membros não possuem dados sobre a percentagem de partos assistidos por um profissional de saúde qualificado. Ora, quem não sabe não cuida. Além do mais, a tornar ainda mais urgente o tópico, a contexto de crise e recessão só ajuda, com o argumento das “poupanças” a todo o custo, a encurtar o braço dos meios públicos para atender a estes direitos.

Os direitos sexuais e reprodutivos são parte dos Direitos Humanos, como reconhecido por instrumentos internacionais, e estão intimamente ligados à efectividade da igualdade de género. Por exemplo, a regulação da fertilidade: claro que, num mundo ideal, essa questão seria tanto de homens como de mulheres; mas, neste mundo real que temos, a falta de métodos acessíveis e aceitáveis para essa regulação acaba por cair mais pesadamente sobre os ombros das mulheres. Em qualquer caso, os direitos das mulheres são direitos de todos: porque nenhum ser humano decente vive bem num mundo onde metade das pessoas são potencial ou efectivamente discriminadas por serem do género feminino; porque quem discrimina as mulheres também discrimina por outros motivos (orientação sexual, por exemplo) com os mesmos “argumentos”.

Por todas estas razões, o Relatório Estrela, reconhecido pela esmagadora maioria como um relatório equilibrado, ganhou o interesse de muitos por essa Europa fora, que vêem nele um contributo para que as instituições europeias sejam relevantes na vida concreta e real dos europeus concretos e reais.

Ora, estranhamente – perdão, sem estranheza nenhuma – o Relatório Estrela tornou-se um ponto central da luta política à escala europeia. Por quê? O contexto é este: há uma agenda reaccionária global (europeia, internacional) para impor morais particulares a toda a gente. O que essa agenda reaccionária pretende é capturar as políticas públicas, fazendo com que os meios dos Estados só possam ser usados dentro dos limites traçados por essas morais particulares. A questão é esta, com um exemplo: ninguém quer obrigar ninguém a usar este ou aquele método anticonceptivo, porque não cabe às políticas públicas determinar como as pessoas se comportam nesse campo; mas é criminoso diminuir os esforços das políticas públicas para informar as pessoas acerca do que está em causa e é criminoso deixar esse assunto ao “Deus dará” só porque certas correntes religiosas têm preceitos que vão contra a autodeterminação consciente das pessoas nessas matérias. Não podemos proibir uma religião de pregar que “venham os filhos que Deus quiser”, mas devemos impedir que as políticas públicas, por omissão, traduzam esse preceito obscurantista. O obscurantismo é a arma dos extremismos. Neste caso, o obscurantismo é a arma do extremismo reaccionário, também agora na Europa, aliás importando as piores práticas do extremismo americano.

Como de costume, o obscurantismo reaccionário assenta muito na apresentação falseada da lógica das situações. O Relatório Estrela não quer impor nada de novo aos Estados Membros, mas quer promover o interesse pelas práticas que dão melhores resultados em termos de saúde e de implementação dos direitos já reconhecidos. O Relatório Estrela leva a sério a questão civilizacional da violência de género, que temos de combater resolutamente. O Relatório Estrela alinha com as abordagens pragmáticas em questões de saúde pública, com aquelas abordagens que dão prioridade à saúde das pessoas em vez de lhes pedir primeiro que adiram a certas morais particulares antes de se protegerem e cuidarem. O Relatório Estrela é uma questão de civilização.

É para isto que serve a Europa: para distribuir o melhor e restringir o pior. Para que a Europa seja dos cidadãos temos de assumir a importância destes debates globais. Os cidadãos europeus podem apoiar estas iniciativas. Amanhã, o Parlamento Europeu vota o Relatório Estrela. Apelo a que façam ouvir a vossa voz: multipliquem o apelo ao voto “SIM” no Relatório sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos, o agora chamado Relatório Estrela. Façamos disto um tópico de opinião pública.

O relatório pode ser lido em português aqui.

6.12.13

Falta-me um poema para ti, Mandela.



Creio que na tua religião não há santos, Madiba.
Julgo que na tua ciência, Madiba, os heróis são feitos das mesmas partículas e forças que estão na matéria de qualquer outra pessoa.
Hoje, no dia depois do teu passamento, Madiba, tens razão nessas tuas crenças: não há santos nem heróis disponíveis, porque todos os santos e todos os heróis estão hoje ocupados a admirar-te e a tentar ainda compreender quem és. Com saudades de seres único.
Quando eu crescer, Madiba, quando eu crescer o suficiente para saber quem és, quero compreender o segredo íntimo da humanidade: como é ser como tu, Mandela. Como um dia vai ser possível sermos como tu. Mandela, não te rias: deixa-nos sonhar. Tu, aquele que sonhou melhor e mais forte do que todos nós.
Obrigado.

4.12.13

Monstros Antigos.



Só vai estar nas livrarias em Janeiro.
Mas já tenho uns exemplares aqui comigo, que posso fazer chegar em mão (a combinar, em Lisboa) a quem queira dar uma prenda de Natal absolutamente exclusiva (porque o feliz contemplado não terá maneira de receber este livro por outra via nesta quadra).

3.12.13

Investigador FCT - Resultados 2013. O caso da Filosofia.


A lista global está aqui.
Terão ficado de fora uns 1000.

Segundo o João Gomes André, «Em Filosofia ganharam... dois estrangeiros. E ambos na área da Filosofia da Linguagem. Portugueses, népia. Restantes áreas da filosofia, népia.»

Na Filosofia, a imigração haverá de compensar a emigração, não é?

o Papa Francisco pela calada da noite.



A Exortação Apostólica "A Alegria do Evangelho", do Papa Francisco, vem relançar um debate importante. Para católicos e não-católicos, para crentes e não-crentes. Até já há gente do mundo da finança que se dá ao trabalho de tentar responder ao Papa. Algumas esquerdas, designadamente aquela esquerda a que pertenço, também vê este documento com interesse. Aspectos como a rejeição da tentativa de reduzir a justiça social ao assistencialismo darão muito que pensar - e são bem-vindos. São bem-vindos, particularmente em tempos em que alguns sectores do catolicismo conservador ganhavam um certo fôlego para reivindicarem a sua visão como a verdade da sua religião, contra os "maus" que olhavam para o problema com outros olhos. Refrescante, pois.

Como saberão os que me lêem, este é um assunto que me interessa. De qualquer modo, julgo que é precipitado tentar alinhar leituras estritamente políticas com as palavras do Papa Francisco. Não é que as suas palavras não tenham sentido político, na acepção mais ampla (que é a mais nobre). Elas têm sentido político. E é importante este debate, para que os fariseus aninhados nas hierarquias das igrejas não consigam (tão) facilmente anestesiar as palavras do Papa para as acomodar à sua cómoda instalação no habitual. Contudo, do lado da Igreja Católica, e deste Papa em particular, não se pode reduzir tudo à doutrina; é preciso contar com a dimensão pastoral: como fazer para andar no meio das gentes. E, aí, por muito clara que seja a rejeição do assistencialismo, há uma valorização da dimensão pessoal, da empatia entre pessoa e pessoa, que nunca será abandonada. Direi até, para fazer pensar, que a rejeição do assistencialismo não implica o abandono da caridade, embora implique a rejeição da caridadezinha.

Para este ponto, vale a pena pensar no que poderão significar, se forem reais, os rumores de que o Papa Francisco anda a praticar, às escondidas, uma espécie de convívio fraterno com os sem-abrigo da sua cidade. Pela calada da noite. Não com fanfarras e TV, como fazem alguns praticantes da caridadezinha. Lembrando o Evangelho a mandar que não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita. Em vez das fanfarras da caridadezinha oficialóide, claro.


ainda o "Investigador FCT".


Já ontem demos aqui conta de uma nota sobre o concurso para "Investigador FCT". É um concurso para escolher os poucos que ficam entre os muitos que são postos no olho da rua.

Quero voltar a insistir num ponto.

A propaganda oficial (da Fundação para a Ciência e Tecnologia) diz que tudo isto é feito com base na avaliação criteriosa de um júri internacional, que é como quem diz, "seguimos os melhores critérios e só fica quem é mesmo bom", sendo que o "internacional" é a legitimação: isto não tem nada a ver com capelinhas cá dentro.

Pois, também nesse ponto a propaganda oficial é uma pura mentira. Na verdade, há uma pré-selecção interna que elimina muitos candidatos antes que tenham qualquer hipótese de verem os seus processos avaliados pelo júri internacional. Os eliminados não sabem sequer quem os eliminou. E, na verdade, são atirados para a rua por um processo com a chancela "júri internacional" - mas foram eliminados por alguém, cá da terra, que só serve ao altar do "júri internacional" aquilo que (bem?) entendeu.

Desta vez terão ficado de fora uns 1000. E de dentro uns 200. Tradicionalmente, quase ninguém diz nada, porque ninguém quer colocar a cabeça de fora quando as balas estão a passar. E a angústia de ser atirado para o estatuto de pária é grande. Desta vez, sendo grossa a coluna, talvez a voz também engrosse. Oxalá.

2.12.13

Mais uma machadada no ensino e na investigação.



Prepara hoje a FCT [Fundação para a Ciência e Tecnologia] uma cerimónia de pompa e circunstância para a assinatura dos contratos de investigador FCT. Tanto quanto se sabe, cerca de 200 investigadores terão sido contemplados com um contrato de financiamento.

Aparentemente, tudo estaria bem e o Ministério poderia alardear que prossegue uma política de seleção dos “mais talentosos e promissores cientistas, em todas as áreas científicas e nacionalidades”. Mas a pressa de mostrar qualquer ação para esconder a política de destruição do sistema de ensino superior público e da investigação revela a política desnorteada deste ministro, que atropela as mais elementares regras de transparência e justiça.

Assim, vejamos:

1) Foi publicada a lista de investigadores, mas sem qualquer ordenação com base nas suas classificações.

2) Não se conhece a composição do júri nacional que fez a pré-seleção que, obviamente, determina os candidatos que foram classificados pela equipa internacional, cuja composição é conhecida.

3) Não são conhecidas as avaliações das candidaturas selecionadas, nem o seu número nem as classificações obtidas por todos os candidatos. Importa lembrar que o regulamento dispunha que seriam aprovadas as candidaturas cuja classificação fosse igual ou superior a 7 valores.

4) Esta cerimónia é realizada sem que se tenha observado o tempo necessário ao exercício do direito de audiência prévia de eventuais candidatos excluídos.

Em resumo, o chamado “ministro do rigor” baseia a sua política em processos pouco transparentes, injustos e não sujeitos ao escrutínio público, o que é particularmente grave, pois trata-se do uso de dinheiros públicos.

Esta cerimónia pública tem como objetivo lançar uma cortina de fumo sobre a política de destruição do ensino superior público e da investigação, escondendo uma estratégia que vai lançar centenas de investigadores no desemprego e destruir a qualidade de ensino e investigação que Portugal alcançou ao fim de muitos anos de esforço dos seus investigadores e professores.

(Este texto foi divulgado pelo Departamento do Ensino Superior e Investigação da FENPROF. O texto divulgado inclui ainda o seguinte apelo: "A FENPROF apela a todos os investigadores que nos façam chegar toda a informação relevante sobre os seus concursos individuais e disponibiliza-se para apoiar quem queira interpor ações contra as ilegalidades encontradas.")


1.12.13

O que acontece se um país sujeito a um programa de resgate decidir finalmente dizer Não?


É no Financial Times que Peter Spiegel faz a pergunta: E se a Grécia se rebelasse?

(Deixo link para uma versão em português.)

governos comunistas. Ah, não? de direita?!


Islândia corta até 24.000 euros nas hipotecas de cada família com empréstimos à habitação.

Acrescenta o Público: «O Governo islandês anunciou sábado ir cortar até 24.000 euros na hipoteca de cada família com empréstimos à habitação, uma promessa da campanha eleitoral apesar das advertências internacionais contra o plano. O custo da medida está estimado em cerca de 900 milhões de euros e será financiado com impostos sobre os bancos e fundos de gestão de activos dos bancos que faliram durante a crise financeira de 2008, salientou o Governo. (...) O anúncio do corte da hipoteca levantou as vozes críticas de várias organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional, mas as autoridades do país estão determinadas em levar o projecto em frente.»
Ler mais aqui.

Já, por cá, só há coragem contra o mexilhão.

Virgem Margarida.


Virgem Margarida é um filme sobre a reeducação das prostitutas na revolução moçambicana. (Coloquem aspas ondem bem entenderem.) É um documento (não um documentário) impressionante. De uma grande sensibilidade. De um realismo quase mágico. Um objecto que faz pensar. Um tanto ingénuo, sim, mas isso só o salva, neste caso. Recebeu já variados prémios por esse mundo, mas, no circuito comercial deste país à beira-mar plantado, parece só estar disponível em Lisboa, numa única sala, uma única sessão por dia. E o único crítico que o classificou para o Público deu-lhe uma única estrela. O comentário que isso me suscita? Precisamos criar um sistema de classificação de críticos. Exterminá-los, não; apenas classificá-los.
Vão ver. Claro que é preciso ter atenção aos pormenores, para não perder muitos fios à meada. Mas é uma larga janela sobre muito mundo.



«The many faces of artificial societies: natural, artificial and alternate reality».



Simpósio, 5 de Dezembro

«The many faces of artificial societies: natural, artificial and alternate reality», organized by Porfírio Silva (Institute for Systems and Robotics, University of Lisbon, Portugal)
  • Between realities (Patrícia Gouveia)
  • Artificial life and synthetic biology (Rodrigo Ventura)
  • Humans, machines and fungibility (Porfírio Silva)
Programa do Simpósio aqui (em pdf).

Simpósio integrado na
Philosophy of Science in the 21st Century – Challenges and Tasks
International Conference

4-6 December, 2013 | Lisbon, Portugal

27.11.13

o que vai mudar com a grande coligação na Alemanha...


... é só que vamos ter mais professores por turma... ou vão mudar os trabalhos de casa ?

Curiosamente, não encontro nenhum jornal que me fale disso.


Leia as instruções, por favor.



“Grokoal” (grande coligação)

“Para que os alemães se sintam melhor!”

“Leia as instruções, por favor”

Angela Merkel, pela democracia cristã, e Sigmar Gabriel, pelos sociais-democratas, apresentaram o seu acordo para uma “Grande Coligação” governamental. Do que já consegui ler, não vejo lá nada que interesse à Europa (aos europeus) enquanto tal. Esperemos para ver.

(Imagem do Süddeutsche Zeitung, de Munique.)



26.11.13

discurso sobre o estado da nação.



Chegámos a um estado em que já (quase) só me dou ao trabalho de defender aqueles com que não concordo.

Meditações sobre a alternativa.



Como é que uma equipa da enésima divisão marca golos? Ver o vídeo.

Como é que um governo de ideólogos nos anestesia ? TPC.




Ucranianos lutam pela UE.

"Na Europa sem Yanukovych". Durante a manifestação pró-UE que juntou mais de 100 mil pessoas que responderam ao apelo da oposição, a 24 de novembro, em Kiev. Foto AFP.

Por cá parece que isto não interessa a ninguém, mas o jornal polaco Rzeczpospolita noticiava ontem que há quem nas ruas da Ucrânia lute contra o abraço do urso:

«Cerca de 100 mil manifestantes, que se juntaram no centro de Kiev no domingo, 24 de novembro, pediram ao Presidente Viktor Yanukovych que mude de ideias e assine o acordo de associação com a UE. (...) “Não somos soviéticos, somos da União Europeia”, podia ler-se nas faixas que os manifestantes transportavam. Alguns dos participantes na manifestação disseram ao Rzeczpospolita que “querem que os seus filhos tenham um futuro em vez de serem condenados à escravatura russa”. Segundo o diário, as manifestações de domingo foram “um enorme sucesso dos opositores de Yanukovych”.»

Ainda há quem prefira a UE. Por cá, há quem ache boa ideia dar às de vila diogo.

Ramalho Eanes.


Hoje há uma homenagem a Ramalho Eanes. Muitos, por aí, ridicularizam o evento. Porque se aborrecem de morte com uma democracia parlamentar normal e não perdoam que o 25 de Novembro não tenha sido uma aceleração da "revolução", porque tiveram dificuldades partidárias com os apoiantes de Eanes, porque não suportam o estilo "certinho" do general ou lhe recriminam uma certa ideia de verticalidade.
A minha pergunta é: precisamos de ser (ou ter sido) apoiantes de Eanes para concordar com uma homenagem?
Votei em Eanes para presidente, nunca votei pelo partido dele (objecto político que achei um disparate), acho-o por vezes um chato (especialmente quando se agarra ao microfone para explicar a sua versão disto ou aquilo nos tempos pós-25 de Abril), não admiro que ele tenha dado a cara por Cavaco - mas acho perfeitamente pertinente que lhe façam uma homenagem. Julgo que nunca pôs os seus interesses pessoais acima do que ele achava ser o interesse do país, exerceu o mandato de presidente com dignidade, ganhou com o serviço público menos do que o direito lhe reconhecia, cometeu erros políticos que nunca passaram por violentar a integridade ou a respeitabilidade dos seus adversários. Tudo somado, isso não é pouco.
Não tenho tendência para homenagens e não estou em sintonia ideológica com o homenageado, razões pelas quais não iria a tal reunião. Mas não temos de conceber só as festas em que queremos dançar. Olhando para trás, ele prestou serviços importantes em momentos difíceis - e não cometeu todos os erros que estavam ao seu alcance ! Por que não fazer-lhe uma homenagem? Acho que temos de aprender a reconhecer o valor que existe para além dos erros cometidos e para além das diferenças. E aprender a não andar sempre a morder as canelas daqueles que não são os nossos heróis, porque há espaço na democracia para heróis de todos os feitios. Por essa razão, acho inteiramente justo que se faça um dia uma homenagem a Eanes. Por que não hoje?


hoje não há nada mais importante do que isto.


Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres.



23.11.13

passagem rápida por uma biografia política.


Sou um leitor lento. Atento, mas lento: nunca leio a direito, faço frequentemente pesquisa paralela ao que estou a ler, comparo, anoto - e tudo isso leva tempo.
Sendo lento, tenho de ser selectivo. Por isso, entro em menos livros do que aqueles que gostaria.
Há, entretanto, a tentação. Nesses casos, manuseio e bisbilhoto até me decidir. A mais recente tentação resolveu-se depressa.
Anda cá por casa a biografia não autorizada de António Guterres. Hoje de manhã abri-a ao acaso e topei, numa dúzia de páginas lidas de seguida, além de repetições e redundâncias que não se entendem, com pérolas suficientes para tomar uma decisão.

Primeira pérola, p. 186: «No meio deste pesadelo, Balsemão consegue a sua grande vitória: aprovar com Soares uma importante revisão constitucional que substitui o militarista Conselho da Revolução pelo civilista Conselho de Estado. Termina o período de vigilância revolucionária (...).» Não vou agora ponderar se o relato é suficiente ou apressado para a importância política da matéria. Limito-me a notar que o Conselho da Revolução não é substituído nas suas funções (civis) apenas pelo Conselho de Estado, mas também pelo Tribunal Constitucional. Enquanto o Conselho de Estado não tem, em geral, qualquer papel central na condução do país, o Tribunal Constitucional é um órgão da maior relevância no nosso ambiente institucional. E a Comissão Constitucional do Conselho da Revolução (parte integrante do Conselho da Revolução, Comissão conduzida por Melo Antunes) foi o "braço" politicamente mais relevante de toda a acção do Conselho da Revolução, quer na óptica dos apoiantes quer na óptica dos críticos. Assim, esta "imprecisão" parece-me grave no contexto de uma biografia política tão ambiciosa.

Já na página 197, quando se fala da aprovação da lei sobre o aborto ao tempo do Bloco Central, com o PSD muito zangado pela iniciativa legislativa do PS, lê-se a segunda pérola: «O governo acabou por abster-se na votação parlamentar.» Francamente, não imagino o que isto possa querer dizer. Desconheço que em algum momento da nossa democracia alguém, que não os deputados, tenha tido direito a voto. O governo apresenta-se no parlamento, fala e ouve, mas não vota, ponto final. E o autor de uma biografia política nem pode ignorar isso, nem pode fazer de conta que isso é de outro modo. Nem pode plantar frase tão enigmática.

Neste ponto, parei. Está tomada a decisão sobre a leitura. Acredito, talvez exageradamente, nos méritos da amostragem aleatória: comecei na página 186 e à página 197 tinha uma decisão tomada.

(O livro em causa é de Adelino Cunha, António Guterres - Os segredos do poder, Alêtheia, 2013)

22.11.13

correr com eles à paulada.


Fala-se por aí - gente que eu respeito - em "correr com eles à paulada".

A minha questão não é sobre a exequibilidade do "projecto".

A minha questão é outra: se forem corridos à paulada, é porque ninguém soube correr com eles de outra maneira. Por exemplo, ninguém soube correr com eles mostrando uma alternativa que convença o país.

Portanto, deixem as pauladas para quem não sabe mais do que pegar em paus e façam, antes, qualquer coisa que se aproxime de um programa de governo alternativo. Porque, na verdade, os nossos dois governos, o do Pedro e o do Paulo, sobrevivem à conta das encolhas de outros.

Mesmo aqueles que acham que Seguro é o único tosco que por aí anda, não se riam apontando o dedo para o outro: se alguém apresentasse uma alternativa credível, até Seguro era capaz de acordar. (Pelo menos, tenho essa esperança.)

21.11.13

o mistério de receber de volta.


Sir Nicholas Winton organizou o resgate e passagem para a Grã-Bretanha de cerca de 669 crianças, na sua maioria provenientes da comunidade judia da Checoslováquia e cujo destino traçado eram os campos de extermínio nazi (no quadro de uma operação conhecida como Czech Kindertransport, ainda antes da segunda guerra mundial).

Depois da guerra, Nicholas Winton não contou a ninguém o sucedido, nem mesmo à sua esposa Grete. Em 1988, meio século mais tarde, Grete encontrou no sótão um álbum de 1939, com todas as fotos das crianças, uma lista completa de nomes, algumas cartas de pais das crianças para Winton e outros documentos. Ela, finalmente, soube da história e aí começou um pequeno e bonito mistério de regresso do bem feito.

O vídeo mostra um aspecto da ocasião organizada para que Sir Nicholas Winton reencontrasse, de surpresa, alguns dos sobreviventes.



(daqui)

20.11.13

defender a nossa liberdade.


Pedro Tadeu escreveu ontem um artigo de opinião no Diário de Notícias, intitulado "César das Neves não pode ficar calado", onde, embora declarando partilhar a maior parte das críticas ("mesmo as mais violentas") ao núcleo central das opiniões de JCN, se posicionava contra as movimentações para o "tirar da antena". Concretamente, criticava as iniciativas do tipo abaixo-assinados ou grupos do Facebook que defendem, por exemplo, "Correr com o César das Neves do DN, TV, Rádio e UCP". Uma citação basta para retomar o essencial da tese de Pedro Tadeu: «Recuso alinhar em carneiradas que investem, cegas, contra a liberdade de expressão. Indignam-me estes abaixo-assinados ou grupos no Facebook, cada vez mais frequentes, que pretendem silenciar A, B ou C. A História já ensinou vezes sem conta que quem ganha com isso não são nem os explorados nem os oprimidos.»

Pareceu-me um artigo de básico bom senso, mas, como o bom senso é a coisas mais em falta no mundo (Descartes, pelo menos aí, estava redondamente enganado), decidi partilhar o artigo no Facebook. Fi-lo hoje de manhã, acompanhado de um destaque da conclusão e da declaração de que a subscrevo. E fiquei surpreso com a reacção de alguns amigos: que seria incongruente defender a liberdade de expressão e criticar o respectivo exercício por parte dos que pediam a "erradicação" de JCN.

Decidi trazer para aqui este debate por ele me parecer fundamental e por nele se imiscuirem erros comuns. O tema, do meu ponto de vista pessoal, tem aqui excelente aplicação prática, nomeadamente (i) porque JCN é dos políticos-comentadores que mais volta ao estômago me dão e (ii) porque faz escola numa casa (a UCP) que deu provas muito concretas (comigo pessoalmente) de ter uma concepção de "liberdade de expressão" muito particular (para dizer o menos). Assim sendo, queria aproveitar para clarificar um ou dois pontos do que quero dizer com tudo isto.

Em primeiro lugar, é absolutamente vital que critiquemos o uso da liberdade de expressão para tentar limitar a liberdade de expressão. Usar a liberdade de expressão para pedir que se cale outra opinião? Isso não é o uso de um direito, é tentar usar um direito para dar cabo dele. A polícia é necessária para a segurança, mas não pode ser usada para criar insegurança. Os tribunais são necessários para fazer justiça, mas não podemos deixar que se tornem instrumentos de denegação de justiça. A liberdade implica responsabilidade e a maior irresponsabilidade é usar a liberdade para atacar a liberdade.

Em segundo lugar, precisamos compreender melhor as instituições que fazem da nossa civilização uma civilização. Um aspecto essencial para compreender as sociedades civilizadas é que as instituições têm várias "camadas". Usar a liberdade de expressão (camada = exercer um direito) para tentar limitar a liberdade de expressão (camada = definir os direitos) é jogar o jogo das liberdades para as destruir. Isto não quer dizer que eu gostasse de proibir as opiniões proibicionistas: quer dizer, isso sim, que quero mobilizar a opinião dos cidadãos contra as demandas proibicionistas. Não vejo que Pedro Tadeu peça a proibição dos abaixo-assinados, parece-me que escreve para dar combate ao que eles representam de errado - e parece-me incorrecto confundir isso com qualquer ataque à liberdade de expressão. Defender a liberdade de expressão inclui a responsabilidade de combater os maus usos da liberdade de expressão, designadamente, o dever de combater os que falam para pedir que calem outras opiniões.

Vimos aqui com estas questões básicas - porque a necessidade de defender "os fundamentos" faz parte das urgências de hoje. É por causa de estas coisas básicas não estarem claras para toda a gente que ainda é possível fazer a campanha suja que por aí anda contra a Constituição e o Tribunal Constitucional. Porque falta compreender bem a tal "teoria das camadas" acerca da realidade institucional.


16.11.13

A lista de Bergoglio - ou o Papa Francisco na ditadura argentina.



Como cidadão, não como católico ou crente (que não sou), tenho-me interessado pelo conjunto da actuação do Papa Francisco. Logo após a sua eleição, estive atento à acusação de que ele teria sido colaborante (pelo menos por omissão) com a brutal perseguição aplicada pela ditadura argentina aos suspeitos de oposição, desde o golpe de Estado de Março de 1976, do qual emergiu a liderança do general Jorge Videla. Não é, pois, de estranhar que me tenha precipitado para a leitura do livro “A lista de Bergoglio”, da autoria do jornalista italiano Nello Scavo, disponível em português desde o passado dia 11 (editora Paulinas).

O livro conta uma investigação, apresenta e enquadra testemunhos e chega a uma tese: há uma “lista de Bergoglio” (um paralelo com a “lista de Schindler”), quer dizer, uma lista de pessoas salvas das garras da ditadura pela acção de Jorge Mario Bergoglio, o então padre provincial da Companhia de Jesus naquele país, que veio a tornar-se papa com o nome do santo de Assis. Há, também uma tese adicional: o Papa pediu aos seus amigos para não se empenharem em dar publicidade a esses factos, logo a seguir à eleição, para não cair no que pareceria uma campanha de marketing do Vaticano.

O então padre Jorge não é apresentado como um revolucionário, um esquerdista ou um activista contra a ditadura. É apresentado como o líder dos jesuítas na Argentina que tomou a seu cargo, desde logo, defender os membros da sua Companhia. Aparentemente, cada líder tratava especificamente de defender os seus: cada bispo tratava dos da sua diocese, cada responsável de uma organização autónoma tratava dos que pertenciam a essa organização. Pelos relatos reunidos, protegia também outras pessoas, nomeadamente jovens, que se dirigiam a ele em situações de aperto, acolhendo-os (escondendo-os) nas suas instalações e preparando-lhes planos de fuga. Dos relatos extraímos ainda outra conclusão: a sua actividade não era meramente reactiva, não se limitava a enfrentar os casos à medida que apareciam. Parece que tinha uma forma sistemática de analisar a situação, compreender o modo de operar dos repressores (tanto legais como ilegais), extraindo daí estratégias para os contornar e conselhos a dar aos que perigavam. Um pragmático: aspecto importante para perceber o actual Papa, julgo eu. Um aspecto a que dou muita importância: sendo um razoável conservador do ponto de vista teológico, não terá nunca tentado mudar a opinião ou a acção daqueles que eram perseguidos por causa das suas opções mais radicais. Protegia as pessoas sem esperar em troca que elas deixassem de ser quem eram. Por exemplo, dava conselhos sobre como fazer chegar artigos ao estrangeiro a pessoas que escreviam numa linha teológica que não era a dele.

Há vários aspectos específicos que ressaltam do livro e acho útil sublinhar.

Em primeiro lugar, o então Arcebispo de Buenos Aires compareceu como testemunha perante um tribunal argentino criado expressamente para investigar crimes da ditadura. Foi interrogado, nomeadamente, pelos advogados de activistas dos direitos humanos. Importa saber que a justiça argentina, considerada a mais diligente do subcontinente na reparação dos crimes das ditaduras, nunca julgou ter encontrado mancha no comportamento de Bergoglio. Importa saber isto, porque há sempre quem ache que as suas opiniões privadas são mais argutas do que o funcionamento da Justiça. (O livro contém uma transcrição parcial do interrogatório.)

Em segundo lugar, o caso que alimentou as acusações ao Papa logo após a sua eleição, o caso dos padres Jalics e Yorio, foi averiguado e desmontado. O sobrevivente Jalics (Yorio já faleceu) desmente qualquer acusação ao então Provincial dos Jesuítas. E, analisando a origem das acusações, é razoável acreditar que alguns terão caído na conversa dos próprios militares para desacreditar Bergoglio (“pistas” insidiosas deixadas cair para “sugerir” suspeitas). Os que originalmente deram essas notícias tiveram muito eco – mas, sabe-se lá por quê, tiveram menos eco as notícias de que o balão tinha esvaziado.

Em terceiro lugar, é impressionante a relevância dos testemunhos recolhidos – que convergem, todos, na defesa do papel desempenhado naqueles tempos negros por Bergoglio. Desde o prémio Novel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, até uma juíza não crente perseguida pelo seu empenho na defesa dos direitos humanos, passando por um sindicalista de esquerda uruguaio, um jornalista, uma ministra de Cristina Kirchner e, claro, também religiosos e religiosas – não estamos a falar de pobres diabos facilmente manipuláveis, mas de testemunhas qualificadas e responsáveis.

Em quarto lugar, o livro contém boas indicações de que Bergoglio usava os seus contactos internacionais (os ramos da Companhia de Jesus noutros países da região e na Europa) para dar solidez e continuidade à sua acção na Argentina (quando os perseguidos só encontravam descanso no exterior).

Em quinto lugar, cabe notar que a posição de Bergoglio não era a única no seio da Igreja Católica argentina: havia cúmplices activos da repressão, como foi demonstrado em tribunal. Não se trata, portanto, de meter tudo no mesmo saco (guiados por simpatias ou antipatias ideológicas), mas de fazer justiça a cada situação pelo que ela realmente foi.

Enfim, isto é apenas uma recensão escrita ao correr da pena. Quem se interesse verdadeiramente pelo assunto deve ler o livro. O livro, além de ser esclarecedor sobre este assunto em concreto, tem outra valia: dá um contributo para compreender a personalidade do actual Papa como homem da Igreja Católica. A leitura consolidou a minha opinião geral: teologicamente conservador, não fará grandes revoluções doutrinárias – mas, com base nas suas preocupações pastorais, tenderá a ver de modo muito mais aberta (pragmática, descontraída) a relação entre as igrejas e os crentes que se tenham desviado das suas orientações. Para quem está de fora (como eu) isso pode parecer pouco; para quem tem fé católica e procura outra forma de vida na comunidade dos crentes, isso pode ser de grande valia existencial. Mas, sobre isto, escreverei noutra altura.

ménage à trois.



Era um curioso par de senhoras.

Uma, que em certo sentido era a linha da frente desse pequeno conjunto, era super controlada. Podia perfeitamente esconder o que lhe ia na alma retirando-o da sua expressão na face, podia perfeitamente sorrir quando queria chorar, podia perfeitamente chorar quando queria sorrir, podia perfeitamente mostrar desinteresse quando estava interessada, podia perfeitamente mostrar desinteresse quando estava distraída, e o desinteresse e a distracção são coisas diferentes, podia perfeitamente mostrar simpatia quando apenas sentia pena, e a simpatia e a pena são coisas diferentes, podia portanto mostrar deliberadamente uma aparência não coincidente com o seu real estado de espírito. Essa senhora era a linha da frente, a vanguarda, desse pequeno conjunto de duas senhoras.

A fraqueza da camuflagem desse pequeno grupo de duas senhoras era a outra senhora. Era a senhora que constituía a retaguarda. Na melhor das hipóteses, o grosso da coluna, por assim dizer. Essa segunda senhora era mesmo a senhora segunda: nunca por ela mesma tinha interesse e, portanto, nunca por ela mesma não mostrava o seu interesse. Nem tão-pouco desinteresse. Nunca por ela mesma sentia hostilidade face aos outros, e portanto também não mostrava hostilidade. Nem sentia inveja e portanto não mostrava inveja. Nem sentia desejo e portanto não mostrava desejo. Por ela mesma nada mostrava e camuflava perfeitamente, porque não tinha nada para camuflar, porque nada sentia por si mesma, para si mesma, em relação aos outros. Ou, ao menos, tinha aprendido a esquecer esses desvarios.

Mas quando este pequeno conjunto de duas senhoras, constituído por uma vanguarda e por uma retaguarda (ou por uma vanguarda e o grosso da coluna, e em todos os casos é sempre o grosso que suporta o mundo) – dizíamos, quando este conjunto de duas senhoras era exposto ao sexo oposto, esta dupla perfeita funcionava maravilhosamente mal. Porque a senhora de vanguarda não mostrava nada do que não queria mostrar e mostrava só aquilo que queria que se visse, mas a senhora de retaguarda era um espelho, um espelho límpido, não da sua própria alma, que não tinha, mas da alma da sua vanguarda. Como ela sabia o que a sua vanguarda, a outra senhora, queria, saber que lhe advinha do constante convívio amigável, ela reagia, de forma completamente despudorada, isto é, sem qualquer protecção, sem qualquer disfarce, sem qualquer filtro, ela reagia de acordo com o que sabia serem os interesses profundos da sua vanguarda, da outra senhora. Se a outra senhora estava perante um homem que ela queria hostilizar, essa senhora da vanguarda podia não o hostilizar, mas a outra senhora, a senhora segunda, hostilizava mesmo sem querer, porque expressava com todo o seu ser tudo aquilo que ia na alma que ela conhecia, a alma da senhora primeira, a única que verdadeiramente dispunha de uma alma. Se a senhora primeira estava perdidamente apaixonada pelo homem que tinha em frente, mas queria, por subtileza, por táctica, por estratégia, por decoro, por educação, por pudor, queria evitar mostrar a sua louca paixão por aquele homem que tinham em frente, a senhora segunda, completamente consciente da louca paixão, mas paixão com pudor, da primeira senhora, a segunda senhora mostrava-a à transparência. Não mostrava a sua própria alma, mostrava a alma da senhora primeira. A senhora segunda não mostrava a alma da segunda senhora. A senhora segunda mostrava a alma que tinha, a alma da primeira senhora, completamente reflectida nas suas águas. Se o homem pelo qual a primeira senhora se sentia ora apaixonada aparecia e as olhava, a segunda senhora não sentia nada por esse olhar, mas mostrava em toda a largueza da sua face, em toda a liberdade da sua boca, na evidência dos seus gestos corporais, o que sabia estar na alma da senhora primeira. Essa paixão. Nesse sentido, neste pequeno conjunto de senhoras, de suas senhoras, uma vanguarda e uma retaguarda, uma estava permanentemente traída, a primeira, enquanto outra estava permanentemente traidora, a segunda. Porque a primeira senhora escondia tudo, maravilhosamente, isto é, com uma eficácia admirável, e só deixava transparecer aquilo que queria que entrasse na sua verdade oficial, e normalmente queria que a verdade oficial estivesse para a verdade como a razão de Estado está para a razão. Mas a segunda senhora, que não aspirava nem deixava de aspirar a transmitir de seu o que quer que fosse, por si própria não encontrando dentro nada de assinalável, ignorando com valentia o problema do reflexo facial do mundo interno de dramas íntimos que não reconhecia, espelhava inteiramente o interior da outra senhora na sua própria face.

E perante este cenário, sendo eu o terceiro nesta relação desigual, sendo eu o homem à conversa com aquele conjunto de duas senhoras, eu falava com a senhora da vanguarda com os olhos postos na cara da senhora da retaguarda, guiando os meus passos exploratórios, os meus avanços e recuos, dispondo as minhas interpretações e recolhendo as minhas pistas, não pela cara, pela fala ou pela disposição corporal da senhora que me interessava compreender, mas pela cara, face e disposição corporal da acompanhante. Porque a acompanhante me mostrava, em toda a magnífica transparência da sua candura, se as minhas recentíssimas falas à primeira senhora eram do seu agrado ou não eram. E isso eu via-o na cara da segunda senhora. Se uma frase minha tivesse tocado a carne da primeira senhora, que era a senhora que eu queria tocar, eu podia avaliar o alcance desse toque ou o seu fracasso, não na cara da carne tocada, mas na cara da carne intocada. Involuntariamente assustando o carácter incerto da primeira senhora, obtinha uma retracção no corpo da segunda senhora, e pura impassibilidade em toda a região da primeira senhora. Obtinha medo na intocada, e intocabilidade na assustada, numa perfeita correspondência entre uma alma e um corpo, embora de dois seres diferentes.

(Os nomes das personagens são fictícios.)