Virgem Margarida.


Virgem Margarida é um filme sobre a reeducação das prostitutas na revolução moçambicana. (Coloquem aspas ondem bem entenderem.) É um documento (não um documentário) impressionante. De uma grande sensibilidade. De um realismo quase mágico. Um objecto que faz pensar. Um tanto ingénuo, sim, mas isso só o salva, neste caso. Recebeu já variados prémios por esse mundo, mas, no circuito comercial deste país à beira-mar plantado, parece só estar disponível em Lisboa, numa única sala, uma única sessão por dia. E o único crítico que o classificou para o Público deu-lhe uma única estrela. O comentário que isso me suscita? Precisamos criar um sistema de classificação de críticos. Exterminá-los, não; apenas classificá-los.
Vão ver. Claro que é preciso ter atenção aos pormenores, para não perder muitos fios à meada. Mas é uma larga janela sobre muito mundo.



«The many faces of artificial societies: natural, artificial and alternate reality».



Simpósio, 5 de Dezembro

«The many faces of artificial societies: natural, artificial and alternate reality», organized by Porfírio Silva (Institute for Systems and Robotics, University of Lisbon, Portugal)
  • Between realities (Patrícia Gouveia)
  • Artificial life and synthetic biology (Rodrigo Ventura)
  • Humans, machines and fungibility (Porfírio Silva)
Programa do Simpósio aqui (em pdf).

Simpósio integrado na
Philosophy of Science in the 21st Century – Challenges and Tasks
International Conference

4-6 December, 2013 | Lisbon, Portugal

27.11.13

o que vai mudar com a grande coligação na Alemanha...


... é só que vamos ter mais professores por turma... ou vão mudar os trabalhos de casa ?

Curiosamente, não encontro nenhum jornal que me fale disso.


Leia as instruções, por favor.



“Grokoal” (grande coligação)

“Para que os alemães se sintam melhor!”

“Leia as instruções, por favor”

Angela Merkel, pela democracia cristã, e Sigmar Gabriel, pelos sociais-democratas, apresentaram o seu acordo para uma “Grande Coligação” governamental. Do que já consegui ler, não vejo lá nada que interesse à Europa (aos europeus) enquanto tal. Esperemos para ver.

(Imagem do Süddeutsche Zeitung, de Munique.)



26.11.13

discurso sobre o estado da nação.



Chegámos a um estado em que já (quase) só me dou ao trabalho de defender aqueles com que não concordo.

Meditações sobre a alternativa.



Como é que uma equipa da enésima divisão marca golos? Ver o vídeo.

Como é que um governo de ideólogos nos anestesia ? TPC.




Ucranianos lutam pela UE.

"Na Europa sem Yanukovych". Durante a manifestação pró-UE que juntou mais de 100 mil pessoas que responderam ao apelo da oposição, a 24 de novembro, em Kiev. Foto AFP.

Por cá parece que isto não interessa a ninguém, mas o jornal polaco Rzeczpospolita noticiava ontem que há quem nas ruas da Ucrânia lute contra o abraço do urso:

«Cerca de 100 mil manifestantes, que se juntaram no centro de Kiev no domingo, 24 de novembro, pediram ao Presidente Viktor Yanukovych que mude de ideias e assine o acordo de associação com a UE. (...) “Não somos soviéticos, somos da União Europeia”, podia ler-se nas faixas que os manifestantes transportavam. Alguns dos participantes na manifestação disseram ao Rzeczpospolita que “querem que os seus filhos tenham um futuro em vez de serem condenados à escravatura russa”. Segundo o diário, as manifestações de domingo foram “um enorme sucesso dos opositores de Yanukovych”.»

Ainda há quem prefira a UE. Por cá, há quem ache boa ideia dar às de vila diogo.

Ramalho Eanes.


Hoje há uma homenagem a Ramalho Eanes. Muitos, por aí, ridicularizam o evento. Porque se aborrecem de morte com uma democracia parlamentar normal e não perdoam que o 25 de Novembro não tenha sido uma aceleração da "revolução", porque tiveram dificuldades partidárias com os apoiantes de Eanes, porque não suportam o estilo "certinho" do general ou lhe recriminam uma certa ideia de verticalidade.
A minha pergunta é: precisamos de ser (ou ter sido) apoiantes de Eanes para concordar com uma homenagem?
Votei em Eanes para presidente, nunca votei pelo partido dele (objecto político que achei um disparate), acho-o por vezes um chato (especialmente quando se agarra ao microfone para explicar a sua versão disto ou aquilo nos tempos pós-25 de Abril), não admiro que ele tenha dado a cara por Cavaco - mas acho perfeitamente pertinente que lhe façam uma homenagem. Julgo que nunca pôs os seus interesses pessoais acima do que ele achava ser o interesse do país, exerceu o mandato de presidente com dignidade, ganhou com o serviço público menos do que o direito lhe reconhecia, cometeu erros políticos que nunca passaram por violentar a integridade ou a respeitabilidade dos seus adversários. Tudo somado, isso não é pouco.
Não tenho tendência para homenagens e não estou em sintonia ideológica com o homenageado, razões pelas quais não iria a tal reunião. Mas não temos de conceber só as festas em que queremos dançar. Olhando para trás, ele prestou serviços importantes em momentos difíceis - e não cometeu todos os erros que estavam ao seu alcance ! Por que não fazer-lhe uma homenagem? Acho que temos de aprender a reconhecer o valor que existe para além dos erros cometidos e para além das diferenças. E aprender a não andar sempre a morder as canelas daqueles que não são os nossos heróis, porque há espaço na democracia para heróis de todos os feitios. Por essa razão, acho inteiramente justo que se faça um dia uma homenagem a Eanes. Por que não hoje?


hoje não há nada mais importante do que isto.


Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres.



23.11.13

passagem rápida por uma biografia política.


Sou um leitor lento. Atento, mas lento: nunca leio a direito, faço frequentemente pesquisa paralela ao que estou a ler, comparo, anoto - e tudo isso leva tempo.
Sendo lento, tenho de ser selectivo. Por isso, entro em menos livros do que aqueles que gostaria.
Há, entretanto, a tentação. Nesses casos, manuseio e bisbilhoto até me decidir. A mais recente tentação resolveu-se depressa.
Anda cá por casa a biografia não autorizada de António Guterres. Hoje de manhã abri-a ao acaso e topei, numa dúzia de páginas lidas de seguida, além de repetições e redundâncias que não se entendem, com pérolas suficientes para tomar uma decisão.

Primeira pérola, p. 186: «No meio deste pesadelo, Balsemão consegue a sua grande vitória: aprovar com Soares uma importante revisão constitucional que substitui o militarista Conselho da Revolução pelo civilista Conselho de Estado. Termina o período de vigilância revolucionária (...).» Não vou agora ponderar se o relato é suficiente ou apressado para a importância política da matéria. Limito-me a notar que o Conselho da Revolução não é substituído nas suas funções (civis) apenas pelo Conselho de Estado, mas também pelo Tribunal Constitucional. Enquanto o Conselho de Estado não tem, em geral, qualquer papel central na condução do país, o Tribunal Constitucional é um órgão da maior relevância no nosso ambiente institucional. E a Comissão Constitucional do Conselho da Revolução (parte integrante do Conselho da Revolução, Comissão conduzida por Melo Antunes) foi o "braço" politicamente mais relevante de toda a acção do Conselho da Revolução, quer na óptica dos apoiantes quer na óptica dos críticos. Assim, esta "imprecisão" parece-me grave no contexto de uma biografia política tão ambiciosa.

Já na página 197, quando se fala da aprovação da lei sobre o aborto ao tempo do Bloco Central, com o PSD muito zangado pela iniciativa legislativa do PS, lê-se a segunda pérola: «O governo acabou por abster-se na votação parlamentar.» Francamente, não imagino o que isto possa querer dizer. Desconheço que em algum momento da nossa democracia alguém, que não os deputados, tenha tido direito a voto. O governo apresenta-se no parlamento, fala e ouve, mas não vota, ponto final. E o autor de uma biografia política nem pode ignorar isso, nem pode fazer de conta que isso é de outro modo. Nem pode plantar frase tão enigmática.

Neste ponto, parei. Está tomada a decisão sobre a leitura. Acredito, talvez exageradamente, nos méritos da amostragem aleatória: comecei na página 186 e à página 197 tinha uma decisão tomada.

(O livro em causa é de Adelino Cunha, António Guterres - Os segredos do poder, Alêtheia, 2013)

22.11.13

correr com eles à paulada.


Fala-se por aí - gente que eu respeito - em "correr com eles à paulada".

A minha questão não é sobre a exequibilidade do "projecto".

A minha questão é outra: se forem corridos à paulada, é porque ninguém soube correr com eles de outra maneira. Por exemplo, ninguém soube correr com eles mostrando uma alternativa que convença o país.

Portanto, deixem as pauladas para quem não sabe mais do que pegar em paus e façam, antes, qualquer coisa que se aproxime de um programa de governo alternativo. Porque, na verdade, os nossos dois governos, o do Pedro e o do Paulo, sobrevivem à conta das encolhas de outros.

Mesmo aqueles que acham que Seguro é o único tosco que por aí anda, não se riam apontando o dedo para o outro: se alguém apresentasse uma alternativa credível, até Seguro era capaz de acordar. (Pelo menos, tenho essa esperança.)

21.11.13

o mistério de receber de volta.


Sir Nicholas Winton organizou o resgate e passagem para a Grã-Bretanha de cerca de 669 crianças, na sua maioria provenientes da comunidade judia da Checoslováquia e cujo destino traçado eram os campos de extermínio nazi (no quadro de uma operação conhecida como Czech Kindertransport, ainda antes da segunda guerra mundial).

Depois da guerra, Nicholas Winton não contou a ninguém o sucedido, nem mesmo à sua esposa Grete. Em 1988, meio século mais tarde, Grete encontrou no sótão um álbum de 1939, com todas as fotos das crianças, uma lista completa de nomes, algumas cartas de pais das crianças para Winton e outros documentos. Ela, finalmente, soube da história e aí começou um pequeno e bonito mistério de regresso do bem feito.

O vídeo mostra um aspecto da ocasião organizada para que Sir Nicholas Winton reencontrasse, de surpresa, alguns dos sobreviventes.



(daqui)

20.11.13

defender a nossa liberdade.


Pedro Tadeu escreveu ontem um artigo de opinião no Diário de Notícias, intitulado "César das Neves não pode ficar calado", onde, embora declarando partilhar a maior parte das críticas ("mesmo as mais violentas") ao núcleo central das opiniões de JCN, se posicionava contra as movimentações para o "tirar da antena". Concretamente, criticava as iniciativas do tipo abaixo-assinados ou grupos do Facebook que defendem, por exemplo, "Correr com o César das Neves do DN, TV, Rádio e UCP". Uma citação basta para retomar o essencial da tese de Pedro Tadeu: «Recuso alinhar em carneiradas que investem, cegas, contra a liberdade de expressão. Indignam-me estes abaixo-assinados ou grupos no Facebook, cada vez mais frequentes, que pretendem silenciar A, B ou C. A História já ensinou vezes sem conta que quem ganha com isso não são nem os explorados nem os oprimidos.»

Pareceu-me um artigo de básico bom senso, mas, como o bom senso é a coisas mais em falta no mundo (Descartes, pelo menos aí, estava redondamente enganado), decidi partilhar o artigo no Facebook. Fi-lo hoje de manhã, acompanhado de um destaque da conclusão e da declaração de que a subscrevo. E fiquei surpreso com a reacção de alguns amigos: que seria incongruente defender a liberdade de expressão e criticar o respectivo exercício por parte dos que pediam a "erradicação" de JCN.

Decidi trazer para aqui este debate por ele me parecer fundamental e por nele se imiscuirem erros comuns. O tema, do meu ponto de vista pessoal, tem aqui excelente aplicação prática, nomeadamente (i) porque JCN é dos políticos-comentadores que mais volta ao estômago me dão e (ii) porque faz escola numa casa (a UCP) que deu provas muito concretas (comigo pessoalmente) de ter uma concepção de "liberdade de expressão" muito particular (para dizer o menos). Assim sendo, queria aproveitar para clarificar um ou dois pontos do que quero dizer com tudo isto.

Em primeiro lugar, é absolutamente vital que critiquemos o uso da liberdade de expressão para tentar limitar a liberdade de expressão. Usar a liberdade de expressão para pedir que se cale outra opinião? Isso não é o uso de um direito, é tentar usar um direito para dar cabo dele. A polícia é necessária para a segurança, mas não pode ser usada para criar insegurança. Os tribunais são necessários para fazer justiça, mas não podemos deixar que se tornem instrumentos de denegação de justiça. A liberdade implica responsabilidade e a maior irresponsabilidade é usar a liberdade para atacar a liberdade.

Em segundo lugar, precisamos compreender melhor as instituições que fazem da nossa civilização uma civilização. Um aspecto essencial para compreender as sociedades civilizadas é que as instituições têm várias "camadas". Usar a liberdade de expressão (camada = exercer um direito) para tentar limitar a liberdade de expressão (camada = definir os direitos) é jogar o jogo das liberdades para as destruir. Isto não quer dizer que eu gostasse de proibir as opiniões proibicionistas: quer dizer, isso sim, que quero mobilizar a opinião dos cidadãos contra as demandas proibicionistas. Não vejo que Pedro Tadeu peça a proibição dos abaixo-assinados, parece-me que escreve para dar combate ao que eles representam de errado - e parece-me incorrecto confundir isso com qualquer ataque à liberdade de expressão. Defender a liberdade de expressão inclui a responsabilidade de combater os maus usos da liberdade de expressão, designadamente, o dever de combater os que falam para pedir que calem outras opiniões.

Vimos aqui com estas questões básicas - porque a necessidade de defender "os fundamentos" faz parte das urgências de hoje. É por causa de estas coisas básicas não estarem claras para toda a gente que ainda é possível fazer a campanha suja que por aí anda contra a Constituição e o Tribunal Constitucional. Porque falta compreender bem a tal "teoria das camadas" acerca da realidade institucional.


16.11.13

A lista de Bergoglio - ou o Papa Francisco na ditadura argentina.



Como cidadão, não como católico ou crente (que não sou), tenho-me interessado pelo conjunto da actuação do Papa Francisco. Logo após a sua eleição, estive atento à acusação de que ele teria sido colaborante (pelo menos por omissão) com a brutal perseguição aplicada pela ditadura argentina aos suspeitos de oposição, desde o golpe de Estado de Março de 1976, do qual emergiu a liderança do general Jorge Videla. Não é, pois, de estranhar que me tenha precipitado para a leitura do livro “A lista de Bergoglio”, da autoria do jornalista italiano Nello Scavo, disponível em português desde o passado dia 11 (editora Paulinas).

O livro conta uma investigação, apresenta e enquadra testemunhos e chega a uma tese: há uma “lista de Bergoglio” (um paralelo com a “lista de Schindler”), quer dizer, uma lista de pessoas salvas das garras da ditadura pela acção de Jorge Mario Bergoglio, o então padre provincial da Companhia de Jesus naquele país, que veio a tornar-se papa com o nome do santo de Assis. Há, também uma tese adicional: o Papa pediu aos seus amigos para não se empenharem em dar publicidade a esses factos, logo a seguir à eleição, para não cair no que pareceria uma campanha de marketing do Vaticano.

O então padre Jorge não é apresentado como um revolucionário, um esquerdista ou um activista contra a ditadura. É apresentado como o líder dos jesuítas na Argentina que tomou a seu cargo, desde logo, defender os membros da sua Companhia. Aparentemente, cada líder tratava especificamente de defender os seus: cada bispo tratava dos da sua diocese, cada responsável de uma organização autónoma tratava dos que pertenciam a essa organização. Pelos relatos reunidos, protegia também outras pessoas, nomeadamente jovens, que se dirigiam a ele em situações de aperto, acolhendo-os (escondendo-os) nas suas instalações e preparando-lhes planos de fuga. Dos relatos extraímos ainda outra conclusão: a sua actividade não era meramente reactiva, não se limitava a enfrentar os casos à medida que apareciam. Parece que tinha uma forma sistemática de analisar a situação, compreender o modo de operar dos repressores (tanto legais como ilegais), extraindo daí estratégias para os contornar e conselhos a dar aos que perigavam. Um pragmático: aspecto importante para perceber o actual Papa, julgo eu. Um aspecto a que dou muita importância: sendo um razoável conservador do ponto de vista teológico, não terá nunca tentado mudar a opinião ou a acção daqueles que eram perseguidos por causa das suas opções mais radicais. Protegia as pessoas sem esperar em troca que elas deixassem de ser quem eram. Por exemplo, dava conselhos sobre como fazer chegar artigos ao estrangeiro a pessoas que escreviam numa linha teológica que não era a dele.

Há vários aspectos específicos que ressaltam do livro e acho útil sublinhar.

Em primeiro lugar, o então Arcebispo de Buenos Aires compareceu como testemunha perante um tribunal argentino criado expressamente para investigar crimes da ditadura. Foi interrogado, nomeadamente, pelos advogados de activistas dos direitos humanos. Importa saber que a justiça argentina, considerada a mais diligente do subcontinente na reparação dos crimes das ditaduras, nunca julgou ter encontrado mancha no comportamento de Bergoglio. Importa saber isto, porque há sempre quem ache que as suas opiniões privadas são mais argutas do que o funcionamento da Justiça. (O livro contém uma transcrição parcial do interrogatório.)

Em segundo lugar, o caso que alimentou as acusações ao Papa logo após a sua eleição, o caso dos padres Jalics e Yorio, foi averiguado e desmontado. O sobrevivente Jalics (Yorio já faleceu) desmente qualquer acusação ao então Provincial dos Jesuítas. E, analisando a origem das acusações, é razoável acreditar que alguns terão caído na conversa dos próprios militares para desacreditar Bergoglio (“pistas” insidiosas deixadas cair para “sugerir” suspeitas). Os que originalmente deram essas notícias tiveram muito eco – mas, sabe-se lá por quê, tiveram menos eco as notícias de que o balão tinha esvaziado.

Em terceiro lugar, é impressionante a relevância dos testemunhos recolhidos – que convergem, todos, na defesa do papel desempenhado naqueles tempos negros por Bergoglio. Desde o prémio Novel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, até uma juíza não crente perseguida pelo seu empenho na defesa dos direitos humanos, passando por um sindicalista de esquerda uruguaio, um jornalista, uma ministra de Cristina Kirchner e, claro, também religiosos e religiosas – não estamos a falar de pobres diabos facilmente manipuláveis, mas de testemunhas qualificadas e responsáveis.

Em quarto lugar, o livro contém boas indicações de que Bergoglio usava os seus contactos internacionais (os ramos da Companhia de Jesus noutros países da região e na Europa) para dar solidez e continuidade à sua acção na Argentina (quando os perseguidos só encontravam descanso no exterior).

Em quinto lugar, cabe notar que a posição de Bergoglio não era a única no seio da Igreja Católica argentina: havia cúmplices activos da repressão, como foi demonstrado em tribunal. Não se trata, portanto, de meter tudo no mesmo saco (guiados por simpatias ou antipatias ideológicas), mas de fazer justiça a cada situação pelo que ela realmente foi.

Enfim, isto é apenas uma recensão escrita ao correr da pena. Quem se interesse verdadeiramente pelo assunto deve ler o livro. O livro, além de ser esclarecedor sobre este assunto em concreto, tem outra valia: dá um contributo para compreender a personalidade do actual Papa como homem da Igreja Católica. A leitura consolidou a minha opinião geral: teologicamente conservador, não fará grandes revoluções doutrinárias – mas, com base nas suas preocupações pastorais, tenderá a ver de modo muito mais aberta (pragmática, descontraída) a relação entre as igrejas e os crentes que se tenham desviado das suas orientações. Para quem está de fora (como eu) isso pode parecer pouco; para quem tem fé católica e procura outra forma de vida na comunidade dos crentes, isso pode ser de grande valia existencial. Mas, sobre isto, escreverei noutra altura.

ménage à trois.



Era um curioso par de senhoras.

Uma, que em certo sentido era a linha da frente desse pequeno conjunto, era super controlada. Podia perfeitamente esconder o que lhe ia na alma retirando-o da sua expressão na face, podia perfeitamente sorrir quando queria chorar, podia perfeitamente chorar quando queria sorrir, podia perfeitamente mostrar desinteresse quando estava interessada, podia perfeitamente mostrar desinteresse quando estava distraída, e o desinteresse e a distracção são coisas diferentes, podia perfeitamente mostrar simpatia quando apenas sentia pena, e a simpatia e a pena são coisas diferentes, podia portanto mostrar deliberadamente uma aparência não coincidente com o seu real estado de espírito. Essa senhora era a linha da frente, a vanguarda, desse pequeno conjunto de duas senhoras.

A fraqueza da camuflagem desse pequeno grupo de duas senhoras era a outra senhora. Era a senhora que constituía a retaguarda. Na melhor das hipóteses, o grosso da coluna, por assim dizer. Essa segunda senhora era mesmo a senhora segunda: nunca por ela mesma tinha interesse e, portanto, nunca por ela mesma não mostrava o seu interesse. Nem tão-pouco desinteresse. Nunca por ela mesma sentia hostilidade face aos outros, e portanto também não mostrava hostilidade. Nem sentia inveja e portanto não mostrava inveja. Nem sentia desejo e portanto não mostrava desejo. Por ela mesma nada mostrava e camuflava perfeitamente, porque não tinha nada para camuflar, porque nada sentia por si mesma, para si mesma, em relação aos outros. Ou, ao menos, tinha aprendido a esquecer esses desvarios.

Mas quando este pequeno conjunto de duas senhoras, constituído por uma vanguarda e por uma retaguarda (ou por uma vanguarda e o grosso da coluna, e em todos os casos é sempre o grosso que suporta o mundo) – dizíamos, quando este conjunto de duas senhoras era exposto ao sexo oposto, esta dupla perfeita funcionava maravilhosamente mal. Porque a senhora de vanguarda não mostrava nada do que não queria mostrar e mostrava só aquilo que queria que se visse, mas a senhora de retaguarda era um espelho, um espelho límpido, não da sua própria alma, que não tinha, mas da alma da sua vanguarda. Como ela sabia o que a sua vanguarda, a outra senhora, queria, saber que lhe advinha do constante convívio amigável, ela reagia, de forma completamente despudorada, isto é, sem qualquer protecção, sem qualquer disfarce, sem qualquer filtro, ela reagia de acordo com o que sabia serem os interesses profundos da sua vanguarda, da outra senhora. Se a outra senhora estava perante um homem que ela queria hostilizar, essa senhora da vanguarda podia não o hostilizar, mas a outra senhora, a senhora segunda, hostilizava mesmo sem querer, porque expressava com todo o seu ser tudo aquilo que ia na alma que ela conhecia, a alma da senhora primeira, a única que verdadeiramente dispunha de uma alma. Se a senhora primeira estava perdidamente apaixonada pelo homem que tinha em frente, mas queria, por subtileza, por táctica, por estratégia, por decoro, por educação, por pudor, queria evitar mostrar a sua louca paixão por aquele homem que tinham em frente, a senhora segunda, completamente consciente da louca paixão, mas paixão com pudor, da primeira senhora, a segunda senhora mostrava-a à transparência. Não mostrava a sua própria alma, mostrava a alma da senhora primeira. A senhora segunda não mostrava a alma da segunda senhora. A senhora segunda mostrava a alma que tinha, a alma da primeira senhora, completamente reflectida nas suas águas. Se o homem pelo qual a primeira senhora se sentia ora apaixonada aparecia e as olhava, a segunda senhora não sentia nada por esse olhar, mas mostrava em toda a largueza da sua face, em toda a liberdade da sua boca, na evidência dos seus gestos corporais, o que sabia estar na alma da senhora primeira. Essa paixão. Nesse sentido, neste pequeno conjunto de senhoras, de suas senhoras, uma vanguarda e uma retaguarda, uma estava permanentemente traída, a primeira, enquanto outra estava permanentemente traidora, a segunda. Porque a primeira senhora escondia tudo, maravilhosamente, isto é, com uma eficácia admirável, e só deixava transparecer aquilo que queria que entrasse na sua verdade oficial, e normalmente queria que a verdade oficial estivesse para a verdade como a razão de Estado está para a razão. Mas a segunda senhora, que não aspirava nem deixava de aspirar a transmitir de seu o que quer que fosse, por si própria não encontrando dentro nada de assinalável, ignorando com valentia o problema do reflexo facial do mundo interno de dramas íntimos que não reconhecia, espelhava inteiramente o interior da outra senhora na sua própria face.

E perante este cenário, sendo eu o terceiro nesta relação desigual, sendo eu o homem à conversa com aquele conjunto de duas senhoras, eu falava com a senhora da vanguarda com os olhos postos na cara da senhora da retaguarda, guiando os meus passos exploratórios, os meus avanços e recuos, dispondo as minhas interpretações e recolhendo as minhas pistas, não pela cara, pela fala ou pela disposição corporal da senhora que me interessava compreender, mas pela cara, face e disposição corporal da acompanhante. Porque a acompanhante me mostrava, em toda a magnífica transparência da sua candura, se as minhas recentíssimas falas à primeira senhora eram do seu agrado ou não eram. E isso eu via-o na cara da segunda senhora. Se uma frase minha tivesse tocado a carne da primeira senhora, que era a senhora que eu queria tocar, eu podia avaliar o alcance desse toque ou o seu fracasso, não na cara da carne tocada, mas na cara da carne intocada. Involuntariamente assustando o carácter incerto da primeira senhora, obtinha uma retracção no corpo da segunda senhora, e pura impassibilidade em toda a região da primeira senhora. Obtinha medo na intocada, e intocabilidade na assustada, numa perfeita correspondência entre uma alma e um corpo, embora de dois seres diferentes.

(Os nomes das personagens são fictícios.)



15.11.13

coisas independentes.


Um dos fenómenos das últimas eleições autárquicas foi uma certa proliferação das listas independentes. Já aqui apreciei (de um ponto de vista basicamente funcional) esse fenómeno, mas o que quero agora lembrar é outra coisa. Um certo autarca independente pôs-se de fora da movimentação para constituir os independentes como uma força própria na associação dos municípios. Explicava-se: fazer uma espécie de bloco de independentes não tinha base nenhuma no programa e na atitude com que essas listas se apresentaram ao eleitorado e, de certo modo, traía de forma infeliz essa mesma independência. Essa movimentação parecia uma tentativa de criar uma espécie de “partido dos independentes” , o que parecia uma contradição nos termos. Confesso que achei pertinente a observação.

Olhemos, agora, para outra “coisa independente”. O Ministro Crato, o tal que gostaria de implodir o Ministério da Educação (e que parece levar muito a sério esse seu programa), faz tudo o que pode para transferir realidade da escola pública para as escolas privadas – mesmo que isso implique atacar os sagrados mandamentos da troika (destinando mais dinheiro ao ensino privado). A sua demanda é ideológica: em vez de cuidar de que a escola pública seja cada vez melhor espaço de liberdade e de construção de oportunidades iguais, quer aumentar as reservas privadas de felicidade para poucos, as quais, em média, atendendo à experiência passada, serão sempre mais conformes ao redil ideológico do Ministro. A sua última invenção-copiada são as “escolas independentes”: escolas arrancadas à escola pública para serem geridas por professores. Apesar de discordar desses planos para retalhar a escola pública (a ideia final destes ideólogos é sempre a mesma: esburacar tanto a rede pública que esta se torne efectivamente dependente dos privados), ainda acho que poderíamos discutir uma troca razoável. Eu aceitaria as escolas independentes se o financiamento das escolas-polvo (empresas proprietárias de escolas várias numa lógica de polvo) fosse transferido para escolas realmente independentes.
Chamo escolas realmente independentes a escolas que resultem de iniciativas locais de cidadãos interessados numa oferta educativa alternativa, que tenham outras razões que não o lucro para esse interesse. Por exemplo, sendo encarregados de educação e querendo juntar-se para dar mais aos seus educandos, ou sendo professores e querendo construir formas novas de ensinar. Essas escolas realmente independentes poderiam, também, ter enviesamentos ideológicos ou culturais, como é o caso com a maioria dos colégios privados, mas não seriam polvos-em-rede ao serviço de “reservas de elite”: sendo locais, assentes em iniciativas de base, em vez de cogumelos plantados ao sabor das estratégias de certas corporações, poderiam tornar-se em fonte de pluralidade, diversidade, entusiasmo, experimentação – algo que poderia beneficiar a educação em Portugal no seu conjunto.
Eu estaria disposto a olhar com simpatia para estas escolas independentes, se elas fossem realmente espaço de pluralidade – em vez de serem máquinas de fazer dinheiro ou instrumentos de arregimentação ideológica em larga escala. Mas, para isso, as “escolas independentes” não poderiam ser uma contradição nos termos, como o “partido dos independentes” dos autarcas, de que falámos a começar.


14.11.13

marmeladas, ministros e jornalistas.


O jornalista André Macedo conta hoje, em público, uma história de jornalistas e políticos. Descreve, em breves traços, uma reunião, em algum momento do ano de 2011 antes de Vítor Gaspar apresentar o orçamento de Estado.
Cito:
[Gaspar] não adiantou uma medida que fosse do Orçamento. Limitou-se a descrever "os buracos colossais" e, quase no fim, perguntou o que achávamos do que aí vinha. Espantou-me o convite descarado para uma espécie de sessão de male bonding sem imperiais e futebol, em que Sócrates seria o bombo da festa e o Governo, ainda engomado, a governanta, a precetora que nos iria corrigir.

Perguntar a jornalistas o que acham é como oferecer margaridas a um enxame de abelhas. Baixei a cabeça como os alunos cábulas e esperei que outros avançassem. Porque o fiz? Por desconfiança. Tudo aquilo me pareceu incómodo. Gaspar não dissera nada sobre o Orçamento para 2012, por que raio queria vincular-nos ao nada? Os outros seguiram em frente, passaram um cheque em branco ao ministro que veio do frio. Pediram rigor, exigiram dureza, mesmo sem saber do que estavam a falar. Ajoelharam-se no altar da austeridade e pediram outra reguada.

A primeira pergunta que se me ocorre é esta: como podem estar tão corrompidas as relações entre os jornalistas e o poder para isto acontecer?
A segunda é mais geral: onde estão os que se preocupavam tanto, há uns anos, com a "asfixia democrática"?
A terceira é capaz de irritar os leitores mais inclinados a aceitar o que o tempo nos traz: pode uma democracia sobreviver a uma comunicação social que, em vez de ser dominada pela ideia de servir a missão pública de informar, é dominada pela procura do lucro das empresas detentoras dos órgãos de informação? Na medida em que as coisas não são completamente diferentes na comunicação social pública, a resposta não pode ser escorada apenas na oposição público/privado. Aliás, como quase em todos os domínios: a noção de interesse público tem de ser refinada para escapar às armadilhas das categorias ultrapassadas; um novo papel para a sociedade organizada fora do aparelho de Estado tornou-se necessário.
Era nessas coisas que era preciso pensar quando se pensa em reforma. Mas não: vivemos todos descansados quando alguém vem contar-nos como jornalistas e ministros se reunem em sessões de marmelada que deviam fazer vergonha a todos. "Male bonding sem imperiais e futebol", como diz o André Macedo, pintando um retrato da nossa Roma decadente.

13.11.13

quem.



quem se atreverá no mundo a medir com régua única

a dor da mãe
pela perda de um filho,
a dor de um filho
pela perda de sua mãe

quem empreenderá comparar ?

alguém,
decerto alguém será disponível

sabemos disso desde que começámos a ouvir
teorias sobre a rarefacção das coisas

sob a forma de ode à frugalidade dos velhos.

sinto-me impotente.



Leio (aqui) que um deputado de esquerda, uma pessoa que até acho das mais razoáveis que andam pelo parlamento, um ex-governante, usou o adjectivo "frígida" para falar da ministra das finanças num artigo de jornal.

A ministra senta-se ao lado do deputado quando vai à respectiva comissão parlamentar, porque ele preside à dita. Como já não estamos em tempo de bengaladas, o que eu gostava mesmo é que a ministra tivesse estaleca para lhe dar uma indirecta que deixasse a comissão parlamentar a rir-se na cara do deputado. E que todas as televisões passassem nos noticiários das vinte e que todos os espectadores se rissem a bom rir. E que o deputado ficasse três meses com vergonha de sair à rua, tal a risota. É que estes machos latinos só percebem pela chacota.

E digo isto, notem, de uma pessoa que considero das mais bem preparadas e das mais decentes que ali andam. É isso que me dói.

12.11.13

uma campanha por Portugal.


A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.

Várias iniciativas têm sido tomadas ao longo do tempo para "vender lá fora" uma imagem de Portugal que seja mais positiva do que a resultante de sermos um dos PIIGS. Este vídeo, por exemplo, já tem uns meses.

Sem ter a pretensão de avaliar o impacte dessas campanhas, proponho outra, bastante diferente.

Que tal pegar no Sermão de Santo António aos Peixes, do Padre António Vieira - mais precisamente, numa versão em inglês (que já existe) - e, pondo-a ao cuidado de um actor cujo gesto e voz e atitude seja pelo menos aproximada do que sabe o nosso grande Luís Miguel Cintra, fazer ouvir esse magnífico e tão actual texto, na íntegra, em Bruxelas, talvez no espaço público em frente do simbólico edifício estrela, e, digamos, em Berlim, talvez no tão historicamente carregado espaço junto às portas de Brandenburgo?

Provavelmente, alguns dos passantes não compreenderiam o significado de tal texto. Mas os que não compreendem o Sermão de Santo António aos Peixes talvez sejam o alvo de outras campanhas de propaganda. Esta acção seria um apelo a outros tipos de inteligência, a outras formas de sensibilidade. E não precisamos nós, urgentemente, de apelar a outras inteligências e a outras sensibilidades, falando-lhes exactamente nos lugares públicos onde se passeia aquela inteligência que não entende e aquela sensibilidade embotada?

E depois, pelo menos em Berlim, podia a sessão terminar com música levando palavras em alemão, com a sugestão que deixo em vídeo (legendas em inglês, a ver/ouvir até ao fim).





11.11.13

o PS entrou na tropa do Comendador Henrique Monteiro ?


Está em desenvolvimento - na vida real, sempre muito mais rica que a ficção - o enredo do próximo filme de Manoel de Oliveira: a fusão à la Frankenstein‎ entre o Comendador Marques de Correia e o jornalista Henrique Monteiro. A novela até já mete o recurso às novas tecnologias em formatos tão conhecidos de alguns alunos do secundário (a "tecnologia" de citar sem mencionar a fonte).

Por estranho que pareça, ainda algo me consegue surpreender nisto tudo: o mar onde o Comendador Henrique Monteiro vai pescar aliados na grande guerra filosófica contra Sócrates, o Parisiense. Vejam, na imagem abaixo, o Secretário Nacional do PS, velho companheiro de estrada do SG, o camarada Álvaro Beleza a "bater palmas" ao esforço heróico do Comendador contra o diabólico socratismo (ao qual nem sequer falta o vade retro contra o "blogue governamental" Câmara Corporativa). (Para os que não praticam o Facebook, esclareço: estou a falar do "gosto" que o camarada Beleza apôs ao textinho de Henrique Monteiro.)

Ou será que piratearam a conta do camarada secretário nacional do PS no Facebook e, parafraseando Bocage, alguém virá declarar: "o 'gosto' que aquele camarada deu, não foi o Álvaro que o deu, fui eu" ?


9.11.13

onde se começa por coisas sérias e se acaba no humorismo (e coisas ainda mais sérias).


Acredito sinceramente que temos o dever, não só de combater os políticos que fazem ao nosso país coisas que nos parecem erradas, mas também o dever de denunciar aqueles que tratam com desconsideração a cidadania. É tão importante combater o Moedas, o Maduro, a Maria Luís e o relações públicas deles todos (Portas), como denunciar aquela escritora (não coloco aspas, porque não sou crítico literário e nunca li nada dela) que acha uma indecência que as pessoas se manifestem em lugar de estaram quedas e caladas a "deixar que nos mandem".

Ao mesmo tempo, acredito sinceramente que não é chamando "merdas" e "lixo" a qualquer uma daquelas personagens mencionadas no parágrafo anterior que se faz o combate democrático. O insulto, mesmo no FB, ou nos blogues, ou mesmo a coberto de humorismo, leva quem o pratica a descer ao nível do insultado.

Colocando isto noutro plano, e já que estamos a falar de escrutínio das intervenções civicamente relevantes no espaço público, julgo que fazemos mal em dispensar o humorismo deste escrutínio. O humorismo, com ou sem graça, é - e ainda bem que é - um elemento do debate público em sentido lato. É claro que o humorismo não pode ser escrutinado com as mesmas regras com que olhamos para os discursos políticos, mas cabe perguntar: o humorismo não tem regras? Acho que tem. Há uma distância abismal, em graça e em decência, entre a rábula do Gato Fedorento à hipocrisia do comentador Marcelo sobre o aborto (aqui há uns anos) e o Bruno Nogueira a chamar merdas à tal escritora que eu não sei como escreve porque nunca li. E, no limite, o humorismo pode ser tão boçal como as opiniões de alguém que gostaria que o povo ficasse em casa a deixar-se mandar até novas ordens.

Aliás, nunca achei graça ao sentimento de impunidade que parece afectar alguns escribas que se julgam com graça. É bem exemplo do que quero dizer um tal Comendador Marques de Correia (também conhecido por Henrique Monteiro), que escreve todas as semanas no Expresso - por ter graça? Não; para poder dizer, a pretexto da graça, aquilo que seria indefensável se fosse assumido em nome próprio. Mas sempre o Comendador na mesma linha opinativa do jornalista, porque as graçolas não são para cair em saco roto e querem-se bem afinadas no tiro ao alvo. Claro: sempre resguardadas pelo escudo invisível da graçola: ninguém vai responder à figura literária do Comendador, que assim pode dizer o que bem lhe der na gana. Gabo a paciência a José Sócrates que, na sua nova liberdade e à-vontade, se deu ao trabalho de escrever (hoje no Expresso) uma crónica de um Comendador Anónimo a explicar como era rasteirinha uma anterior crónica do Comendador Henrique Monteiro a tentar menorizá-lo a coberto do seu humorismo duvidoso. Confesso, contudo, que a cereja no topo do bolo foi a resposta do Jornalista Marques de Correia: foi mesmo incapaz de esconder que tinha enfiado o barrete!

Memórias. Berlim, 1989, um dia como este, um muro como qualquer outro.




Na noite de 9 de Novembro há 24 anos, o governo da então chamada República Democrática Alemã anuncia de forma desastrada (por não corresponder exactamente ao que queriam fazer, que era uma liberalização cautelosa das saídas para o estrangeiro), anuncia, dizíamos, que os cidadãos desse país poderiam atravessar as respectivas fronteiras (de dentro para fora...) livremente. Em consequência, logo nessa noite, cerca de vinte mil alemães de leste atravessaram o posto fronteiriço de Berlim Leste para Berlim Oeste. No dia 11, as máquinas começaram a abrir mais passagens através do muro da vergonha, já que os postos normais não davam vazão à enchente dos que queriam experimentar o sabor dessa nova liberdade. Logo foram anunciadas conversações para a abertura da simbólica Porta de Brandemburgo, que só viria a tornar-se uma ampla passagem entre dois mundos em Dezembro desse ano. No fim de semana seguinte à abertura, cerca de dois milhões de alemães orientais visitaram Berlim Ocidental.
Tive a sorte de estar nessa Berlim esfuziante por esses dias. Tinha ido à conferência "Security in Europe: Challenges of the 1990's", organizada pelo Politischer Club Berlin e pela Amerika Haus Berlin,  que decorreu entre 15 e 17 desse mês, tendo ficado mais uns dois ou três dias. A conferência acabou na tarde de sexta-feira (17) e, desde aí até ao regresso no domingo, deambulei como uma esponja pela cidade que era nessa altura o centro do mundo. Havia, além do povo que estava a fazer a sua história, uma multidão de jornalistas por todo o lado, especialmente postados em frente à Porta de Brandemburgo, por haver então a expectativa de esse local histórico ser aberto imediatamente.
Descobri há algum tempo duas folhinhas que escrevi na altura, "do lado de lá", no meio da agitação. Estão a ficar roídas pelo tempo. Antes que desapareçam, transcrevo-as para este arquivo-pessoal-público.

Folha 1. "Aqui é a Marx-Engels Platz, em Berlim Leste. Hoje são 17 de Novembro de 1989. O Muro já tem aberturas mas ainda falta muita coisa. Aqui está a ocorrer uma manifestação (ou concentração) de estudantes (pelo menos parecem, pela sua juventude, apesar de também haver gente mais velha). Vim para aqui directamente da estação de metropolitano, onde comprei o meu visto e troquei os obrigatórios 25 DM por 25 marcos da DDR. Do lado de lá vale, não 1 para 1, mas 1 para 10 ou ainda mais. Há o pequeno pormenor de que tenho a máquina fotográfica da Guida ao ombro, mas não consigo tirar nenhuma fotografia. Até o azar pode ser histórico... Outro pormenor é que está um frio danado, que entra por todo o lado apesar de estar com dois pares de meias calçados, camisa, camisola de gola alta, casaco de inverno e gabardina. São aqui 15.50H."
Folha 2. "No mapa, tenho aqui uma indicação sobre a Igreja de S. Nicolau, no centro histórico de Berlim. Fui para entrar, vi que se pagavam entradas e que havia um museu. Como não estou com grande tempo para museus, fui perguntar se também se pagava para ver a igreja. Resposta: «Isto não é uma igreja. Isto é um museu.» Entendi: estamos, realmente, no Leste. São 16H 13M."

Memórias das minhas ingenuidades, pois. Como se vê, ainda havia muita coisa por mudar. Eu não falava uma palavrinha de alemão, mas recolhi um comunicado da SPARTAKIST - Herausgegeben von der Trotzkistischen Liga Deutschlands, com o título "Für eine leninistisch-trotzkistische Arbeitpartei!". E em baixo de página: "Für den Kommunismus von Lenin, Luxemburg und Liebknecht!". Ainda tenho uns jornais, uns autocolantes, uns "alfinetes de peito", desses dias. E, claro, umas pedrinhas pequeninas que eu próprio rapei do muro, à unha, enquanto outros já andavam em cima dele com picaretas.

O mundo, realmente, mudou muito. Nem tudo correu bem, como se sabe. Só que ninguém, sabendo do que fala, pode desprezar o valor da liberdade - haja o que houver, com todos os defeitos que as democracias possam ter. Isso sentiu-se naqueles dias (e ainda se sente) em Berlim. Claro, ainda há quem, por cegueira ideológica, ache que tudo não passou de uma operação das forças reaccionárias conspirando por todo o mundo. Por hoje, a esses nada a dizer.

(republicação)


Laura, um retrato.



Senhora Directora, o táxi já chegou. Desço já. Não desceu. Entrou em espera. Já estava desligado o computador, arrumada a carteira, ajeitado o cabelo ruivo selvagem sofisticado a dizer bem com os olhos verdes e a dar luz aos seios pequenos bem colocados numa figura alta e rendilhada como um monumento manuelino. Há minutos que, apesar da azáfama no gabinete, estava pronta para descer, mas não desceu. Entrara na fase um daquele ritual de espera que chegava sempre com dia marcado. A longa espera pelo fim de uma batalha. Senhora Directora, o táxi diz que se vai embora. Oh, homem, os táxis não falam; diga ao taxista que pago a espera. Estou a descer. Desceu. Os dois andares pelas escadas, apesar do elevador. Apesar do ligeiro descaimento do ombro esquerdo e, por ele, de todo o corpo, que lhe ficou, estrutural, da lesão na perna. A vontade de Laura manda mais do que a perna e a lesão juntas. Avançando bem direita, uma linha da terra ao céu, e não o contrário, mostra a vontade e esconde o descaimento do ombro. Até amanhã, Senhor João. Até amanhã, Senhora Directora.
Boa tarde, o senhor desculpe a demora. A espera paga-se, minha senhora. E já é boa noite. Seja. É para Santa Catarina, se faz favor. Sim, senhora. Olha pela janela e vê o cenário. Tanto trabalho aqui. E a Joana à espera. Que maçada: parece que vir a minha casa é passar férias e eu que nem férias tenho. Pronto, senhor, cinco euros a mais pela espera. Disse cinco mas deu dez. Com propósito. Obrigado, senhora, e boa noite. Boa noite.
Olá Joana, minha querida, está tão bonita, mas que é isso, está cheia de pêlo no casaco. Trouxe a Olívia, foi a Olívia. A Olívia? A gata? A Joana trouxe a gata? Atira a pasta para o sofá. Quer dizer: por cima do sofá, quase atingindo a Olívia. A Olívia, a Olívia, não lhe faças mal. Foi sem querer, querida. Eu ia lá fazer mal à Olívia, querida. Pois, pois, pois. Estava já tão cedo a começar a batalha. Vamos fazer o jantar, querida. É num já que se atira à tarefa, ninguém pode saber que Laura teve uma lesão na perna, Laura a super mulher já está a abrir o frigorífico, uma embalagem metalizada com abertura fácil, três embalagens plastificadas encetadas, dois boiões, tudo em cima da bancada, Laura abre as embalagens, as mãos fazem todos os gestos à velocidade e com a precisão de uma linha de montagem, como se Laura fosse uma máquina de preparar pratos rápidos, tempera rigorosamente o conteúdo das embalagens com o conteúdo dos boiões e com mais uma boa meia dúzia de pós e pequenos grãos que estão ali dispostos e que fazem a bancada de cozinha parecer um toucador requintado de uma dama complexa. Que ela é. Requintada e complexa. Tudo para o micro-ondas, uma mulher com sete mãos e olhos que chegam para tudo, sete minutos isto, três minutos aquilo, a setecentos e oitenta isto, a quatrocentos e cinquenta aquilo, está pronto, querida, vamos para a mesa, a Deolinda deixou a mesa preparada, vamos comer, temos fome as duas, não temos, querida. Tenho, sim. Não comemos bife com batatas fritas, pois não. Não, querida, aqui não se comem essas coisas. Comemos terrine de figos com chèvre fresco e chèvre meio curado, amaciado com iogurte natural, e depois comemos lentilhas com ovas de salmão e azeite de trufas. Mas eu não sei gostar de nada disso. Mas aprende, querida. É isso mesmo, aprende. É como dizem os franceses “je ne sais pas aimer ça”, “eu não sei gostar disso” quer dizer “eu não sou capaz de gostar disso”, quem não sabe não pode, quem sabe pode, e eu quero que a querida possa, por isso a querida tem de saber, a querida tem de aprender. Coma para aprender a gostar. Se o seu pai não lhe mostra o mundo, alguém tem de lho mostrar, não é querida.
Pronto, critiquei o pai e tive o prémio: não disse palavra o resto do jantar, e eu a perguntar-lhe pela escola, e pela amiga Maria, e pela Rosa, e pelo ballet, e que obrigação tenho eu de aturar esta miúda, e contra todos os meus princípios a perguntar-lhe pelos namoradinhos, e eu a ir buscar o melhor bolo de chocolate do mundo em fatia grande, e ela nada, tinha desligado, e eu a ligar a televisão connosco ainda à mesa, coisa que eu detesto e ela adora, e ela não cedeu, ela não cederia de maneira nenhuma, e estava decidido: eu tinha perdido mais uma batalha, tinha-lhe criticado o pai e ela castigava-me como sempre fazia não falando mais o resto do dia ou da noite. Não valia a pena. Desisti, pedi-lhe que se deitasse e fui lá dar-lhe um beijo de boas noites. Ela retribuiu, sempre em silêncio, com uns olhos zangados, que não tristes. Tem agora oito anos e desde os quatro que faz isto. Se fosse assim fácil calar toda a gente…
Vodka negra o resto da noite, isto é, até à uma, espalhada no chão da sala a mexer apenas as convoluções cerebrais, a ouvir a quinta sinfonia de Mahler interpretada pelo Uri Caine, uma magnífica gravação, moderadamente surrealista, que ouviu três ou quatro vezes, até desistir de permanecer acordada, de pensar na Joana e no pai dela. O que vale a espera quando não se está à espera de nada. Dormiu mal, dentro da cama mas fora de si, e acordou às oito horas do dia seguinte, quinta-feira, dia de reunião da administração do banco com todos os directores, usualmente às oito e trinta da manhã, acordou às oito da manhã com a Deolinda a chamar: Senhora Doutora, a menina vai sair, está lá em baixo o pai para a levar à escola, ela quer despedir-se. Anda cá, minha querida. Estou atrasada. Também eu, querida, tanto. Adeus, mãe, até para o ano. Esta espera acabou por ora.

8.11.13

coisas da democracia formal.


Há uma certa maneira de encarar os regimes políticos que se caracteriza por desprezar o lado formal da democracia. Lembram-se, claro, do desprezo "revolucionário" pela democracia formal, como se a formalidade fosse um adereço sem importância, talvez até mesmo prejudicial - algo que empatava o "avanço da história". Das coisas que, mais cedo na minha vida, me fizeram perceber que eu não passava de um "pobre de um social-democrata" (para não dizer como o outro, "um merdas de um moderado") foi, precisamente, aderir à ideia de que sem "formalismos" a democracia não resistiria muito tempo em lado nenhum: morreria às mãos dos apressados, que sempre aparecem para impor o seu último entusiasmo brilhante e tresloucado a todos os cépticos que não querem jogar a única vida que têm numa roleta russa.

Esse desprezo do formal sobrevive: aliás, continua muito vivaço. Em larga medida, por causa de uma persistente e generalizada incompreensão de um facto central da vida pública: para que haja democracia, não basta que a maioria mande. É preciso que "mande" segundo as regras. O tal "formal". Ora, precisamos, cada vez mais, de dar atenção às tais regras "formais" e respeitá-las.

Um exemplo recente. O PS diz que só aceita debater a tal ideia do "compromisso nacional" no parlamento. Alguns comentadores (ou entrevistadoras...) passam por essa questão como cão por vinha vindimada, como se isso não tivesse importância nenhuma. Assim como quem diz "mas se ele quer chegar a acordo, porque precisa de o negociar no parlamento?". Pois, nesse elemento "formal" vai enorme substância. Em primeiro lugar, que se discuta no parlamento faz com que se discuta à frente do país, permite à cidadania acompanhar e intervir: aspecto muito importante neste tempo actual de desconfiança generalizada face aos representantes. (Isto não quer dizer que eu descarte, sempre ou por princípio, negociações discretas; não descarto.) Em segundo lugar, uma discussão centrada no parlamento não poderá ser limitada ao PSD, ao CDS e ao PS - como pretendem os que fazem uma fronteira entre o "arco da governação" e a esquerda da esquerda parlamentar, impondo uma restrição à democracia que não se pode aceitar. Portanto, um requisito formal apresentado pelo PS - que o debate de um "compromisso nacional" se faça no parlamento - é um requisto carregado de substância e muito relevante para a defesa da democracia, hoje muito atacada por forças que fazem dos "formalismos" (nomeadamente legais) uns berloques irrelevantes na óptica das suas cruzadas ideológicas.

Pena é que o PS não tenha sido tão previdente, nesta matéria, na anterior edição da rábula do compromisso nacional, tendo, então, negociado fora do quadro parlamentar. Felizmente, desta vez lembrou-se a tempo do "formalismo". (Alguém se lembra de quem, na altura da anterior edição desta história, disse com clareza que o PS devia exigir o enquadramento parlamentar para a negociação, acrescentando que não devia aceitar a exclusão a priori do PCP e do BE?)



7.11.13

Alberto João, pioneiro da nova cultura política.


Jardim desmentido por ofício do chefe de gabinete. Despacho confirma que Alberto João Jardim mandou mesmo executar as dívidas de eletricidade das câmaras perdidas pelo PSD nas últimas eleições.


Alberto João Jardim é, mais uma vez, pioneiro.
Explico-me.
O Governo da República, em lugar de usar os impostos como instrumento para equilibrar as contas com critérios de equidade e progressividade, usa os cortes em grupos escolhidos para aplicar a estratégia "dividir para reinar" - e para arranjar uma desculpa (culpar o TC).
O Jardinismo leva a estratégia mais longe: se é preciso cobrar as contas em atraso, para conter os brutais desequilíbrios das finanças regionais, vamos cortar só nos municípios geridos pela oposição. É uma estratégia brilhante: usa a máquina do Estado para servir os seus interesses partidários (aperta financeiramente as câmaras que lhe não são afectas, favorecendo comparativamente as câmaras do PSD) e, ao mesmo tempo, recolhe alguma receita.
Ficamos à espera das modalidades que tomará esta inovadora radicalização da estratégia "até arrancar olhos" quando transposta para "o continente". Sim, porque, em tempos extraordinários, vale tudo: se podemos atropelar a Constituição em nome da crise, por que não adoptar medidas "mais arrojadas" para punir os malfeitores (as oposições) e, do mesmo passo, "sacar mais algum" ?

6.11.13

Barroso critica Passos em público.


Chumbo do TC pode pôr em risco regresso aos mercados, diz Barroso. Mas acrescenta que nunca criticou o Tribunal Constitucional.

Durão Barroso diz que o chumbo do Orçamento pelo Tribunal Constitucional pode fazer perigar o regresso de Portugal aos mercados.
Mas, agora, acrescenta que isso não era uma crítica ao Tribunal Constitucional. Sublinha, mesmo, que nunca criticaria qualquer tribunal.
Então, só pode estar a criticar um governo que não é capaz de fazer nenhum Orçamento de Estado sem ilegalidades (inconstitucionalidades).

Se até já Durão Barroso critica o nosso governo, onde vamos parar ?

afinal, também há alemães bons...


Segundo leio, «O Partido Socialista congratula-se com a designação, hoje confirmada, de Martin Schulz como candidato do Partido Socialista Europeu (PSE) à presidência da Comissão Europeia.» Isto resulta da ideia, que fez caminho nos últimos anos, de que as famílias políticas europeias devem anunciar previamente quem apoiarão para presidente da Comissão na sequência das eleições para o Parlamento Europeu.

Este apoio não é propriamente uma novidade e também não esperava que o PS pudesse fazer diferente. De qualquer modo, cabe notar que este cenário pode trazer futuras dificuldades (mormente, eleitorais) ao Partido Socialista. Se a Alemanha, como se espera, vier a ser governada proximamente por uma "grande coligação" (CDU/CSU-SPD), o partido de Martin Schulz passará a ser co-artífice da governação alemã, passando a constar na mesma fotografia que Merkel na política europeia. Não é difícil imaginar que isso possa ter custos, principalmente se o SPD não tiver capacidade para impor algumas modificações relevantes na política europeia da Alemanha, designadamente no que toca à forma de conceber a solidariedade com "o Sul". Contudo, isso pode nem ser o mais complicado de gerir para o PS. Suponhamos que a "grande coligação" passa por uma cláusula (eventualmente, secreta até ao desfecho das eleições europeias) que faça de Martin Schulz o candidato da Alemanha (e, portanto, da senhora Merkel) a comissário ou a presidente da Comissão Europeia. Nesse caso, Martin Schulz passará a ser, ainda mais claramente, o "homem de Merkel" na Europa. Grande desafio. Por quê recear um cenário destes? Porque vários líderes socialistas e socialdemocratas têm chegado ao poder e frustado as expectativas que os eleitorados tinham de que conseguissem mudar alguma coisa, nos seus países e na Europa. Se essa decepção se repetir com a Alemanha, um tsunami abater-se-á sobre todos os "partidos irmãos". E, então, também sobre o PS português. A maldição da múmia (quando chegam lá, não conseguem mudar nada) tornar-se-ia (sublinho a forma verbal: tornar-se-ia) uma peste devastadora para as esquerdas moderadas e pró-europeias em todo o continente.

Bem entendido, temos de ter alguma esperança de que o SPD, chegado ao poder na Alemanha, consiga mudar alguma coisa na governação alemã e europeia. Mas a vida tem demonstrado que nem todas as esperanças nos dão saúde.

recomendo.


Luís Quintais, Depois da Música (Tinta da China)


*

SOBRE ÁRVORES

Rui


Li toda a poesia, e esqueci.

Uma parte habita o tecido da biografia,
e sobre isso nada posso dizer
que não seja destituído
de som e perigo.

Outra parte, guardei-a,
crença imprudente,
antepassado sem nome,
fantasma comovido
movendo-se, iluminando
todos os lugares
de metal frio como o sangue.

É fim de tarde, caminho em direcção a casa,
o vento destrói certezas
sobre árvores físicas bem reais.


5.11.13

será que Bernardino Soares levou os arquivos para Loures?


Segundo o SOL, «O PCP anunciou hoje a apresentação de uma apreciação parlamentar do novo estatuto do Ensino Particular e Cooperativo para impedir a sua aplicação no atual ano letivo, recusando que o dinheiro público "alimente negócios privados".» (aqui)

Curioso.

Em Dezembro de 2010, o CDS-PP apresentou um projecto de lei para garantir que os contratos de associação entre o Estado e as escolas particulares e cooperativas tivessem a duração de um ciclo de escolaridade (aqui). Trocado por miúdos: para impedir que o governo do PS fizesse uma revisão do financiamento às escolas privadas, acabando com a renovação automática dos contratos todos os anos, depois de relatórios terem mostrado que havia situações inadmissíveis em prejuízo da escola pública. A renovação teria de passar pela análise da especificidade das situações. O PS votou contra a proposta do CDS, isolado, sendo o projecto de lei viabilizado (votação na generalidade) pelos votos a favor do CDS-PP e do PSD somados à abstenção do PCP, do BE e dos Verdes. (Oposição impõe aprovação de diploma do CDS para duração contratos de associação com ensino particular e cooperativo). Mais tarde, o BE mudou de posição (passando a opositor da proposta do CDS) e o processso não teve exactamente o desfecho pretendido pelo CDS.

Mas, entretanto, o PCP já tinha mostrado a solidez da sua ideia de defesa da rede pública de ensino, numa guerra que envolveu o candidato presidencial Cavaco Silva a prometer conter os ímpetos do governo socialista, aparentemente com as mesmas preocupações dos comunistas. Nessa altura, como hoje, a direita vai direita ao assunto: Crato continua seguro de que é melhor cortar no público do que no privado, fazendo o papel da raposa dentro do galinheiro. Pelos lados de uma certa esquerda, depende...

obra do vice-PM para os briefings.


A entrega da pasta dos briefings de Lomba, e da comunicação de Maduro, a um vice-primeiro-ministro formado no argumentário das feiras, teve vários efeitos políticos imediatos. Um deles foi o ressuscitar da tese segundo a qual a política seguida pelo governo é uma inevitabilidade que esta maioria teve de engolir, a contragosto, por causa das circunstâncias e da troika. Na verdade, esse discurso é uma mistificação. Esta maioria está a fazer aquilo que Passos Coelho quis ter a oportunidade de fazer, como, aliás, o próprio explicou.
A prova mais cabal do que acabo de afirmar nem é o célebre "ir além da troika". É o assumir de um certo programa político. No final de Janeiro de 2012, Passos Coelho, presidente do PSD e já então primeiro-ministro, afirmou sem rebuços que o seu partido tem um "grau de identificação importante" com o programa acordado com a troika e quer cumpri-lo porque acredita nele. Nas suas palavras: "(...) o programa eleitoral que nós apresentámos no ano passado e aquilo que é o nosso Programa do Governo não têm uma dissintonia muito grande com aquilo que veio a ser o memorando de entendimento celebrado entre Portugal, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional". Ainda segundo o presidente do PSD, "executar esse programa de entendimento não resulta assim de uma espécie de obrigação pesada que se cumpre apenas para se ter a noção de dever cumprido". (fonte)
Agora, vistos os custos sociais da operação, regressa a desculpa de que "foram obrigados". Mas é mentira: para PPC e seus seguidores, realmente a crise foi uma oportunidade. Oportunidade que estão a aproveitar para os seus fins programáticos. Foi, aliás, nesse sentido que foram incluindo novas medidas nas revisões do Memorando, apresentadas como exigências da troika, mas, na realidade, exigências a pedido para consolidar o programa eleitoral de PPC: não o que ele apresentou em público, mas aquele, bastante diferente, que tinha em mente. (Tratando-se de PPC, devo esclarecer: na frase anterior, a palavra "mente" não é uma forma do verbo mentir.)

3.11.13

as facturas, os sorteios, os carros e o resto.


Vai por aí uma grande indignação por querer o Governo lançar uns sorteios periódicos de bens valiosos (automóveis?) a benefício daqueles que tenham pedido factura nas suas transacções.
Quer-me parecer que o grosso da coluna desses indignados é gente de esquerda.
Espanta-me. Espanta-me essa esquerda. Essa esquerda faz-me lembrar aquela gente que acha que o Estado não tem nada que se meter na vida das pessoas. Espanta-me essa esquerda, pois, se o Estado não se pode financiar sem que os impostos sejam pagos; se os que pagam, pagam demais para compensar os que não pagam; se o insuficiente financiamento do Estado acaba sempre por prejudicar primeiro os mais fracos - como se pode defender, com tanta esquerda na voz, os que fogem aos impostos?
Dir-me-ão: ah, mas o actual nível de impostos é injusto, temos que resistir. Pois, até pode ser, mas sempre direi: primeiro, que seria mais justo equilibrar o orçamento por via dos impostos do que por via de cortes que seleccionam as vítimas por grupos (é assim que pensa a esquerda social-democrata e aparentada em todo o mundo); segundo, que defender o desrespeito pelas obrigações fiscais (defender os que fogem aos impostos) é defender um Estado enfraquecido, incompatível com um Estado social forte; terceiro, que os que fogem aos impostos encobertos no facto de nós não pedirmos factura não são, em geral, os mais penalizados por uma carga fiscal desequilibrada (se este for, de todo, o ponto).
Julgo que é uma medida de esquerda desincentivar a fuga aos impostos. Julgo que a esquerda faz mal em esquecer isso e embarcar no coro populista contra a mencionada medida. Estar contra o governo não pode justificar tudo.

2.11.13

o consenso nacional não pode assentar na mentira.


"O país precisa de um grande consenso nacional, mas o consenso nacional não pode assentar na mentira." (António Costa)



Roubado ao Valupi.

1.11.13

e a Alemanha aqui tão perto.


Uma certa esquerda, por estes dias, detesta a Alemanha. Nem é preciso chegar ao ridículo (perigoso) de comparar Merkel com Hitler, como já fizeram alguns menos cientes do que foi o nazismo e mais irresponsáveis quanto à caricatura das divergências. Para detestar a Alemanha, hoje, basta confundir os erros políticos da actual governação alemã (que os há) com a Alemanha propriamente dita.

Uma certa direita, por estes dias, endeusa a Alemanha - como se "o Norte" fosse um poço de virtudes e a luz do mundo, quando, em larga medida, apenas tira proveito de regras que servem quem é grande e tramam quem é pequeno e fácil de abanar. A Alemanha e a França foram dos primeiros Estados-Membros a violar o Pacto de Estabilidade e Crescimento e usaram o seu peso para obrigar os demais a fazer de conta que "no pasa nada". Coisa que outros não poderiam sequer tentar.

Pelo meu lado, julgo que seria preferível tentar perceber algumas das coisas que fazem grande a Alemanha.
Para o lado da direita sugiro, por exemplo, que ponham bem os olhos no rigoroso respeito que na Alemanha se tem pelas instituições, a começar pela Constituição e pelo Tribunal que lhe dá as leituras operantes.
Para o lado da esquerda sugiro, por exemplo, que se procure aprender com a função da concertação social séria e permanente e com o papel activo dos parceiros sociais, a todos os níveis. A começar pelo nível da empresa. E devemos perguntar, por exemplo ao PS, porque não arrisca um pouco mais para propor mecanismos mais efectivos para envolver os trabalhadores na vida das unidades económicas onde laboram. Será medo da co-gestão? Acharão a coisa demasiado à esquerda? A vantagem é que nem seria preciso fazer excursões à Alemanha para saber como funciona: poderiam, simplesmente, fazer uma visita de estudo, por exemplo, à Autoeuropa e já teriam um bom começo para reflexão.

Ou será que vamos sair "disto" só repetindo as mesmas palavras de ordem de sempre?!