30.9.10

que não se negue a esperança


Cientistas descobrem planeta habitável a 20 anos-luz de distância.

A única coisa incómoda é que esse tal planeta esteja na Constelação da Libra. Podia estar no Euro, caramba...

no poupar é que está o ganho


Adivinham quem quer, em maré de redução das despesas, criar o Centro para a Promoção e Valorização dos Bordados de Tibaldinho? Não adivinham? Então vejam com esses olhos que a terra há-de comer. (Não é uma ameaça: é ciência certa.)


quando a manta é curta...


... tapa-se a cabeça e destapam-se os pés.

Moodys baixa rating da Espanha devido à fraca perspectiva de crescimento.

Se a austeridade der este resultado - pode não dar? - veremos como a manta é curta. A menos que se comece a pensar noutros termos. Que tal um "contrato nacional para o crescimento sustentado"? - para não lhe chamar "pacto para o emprego", que já está no programa de governo mas tem sido preterido pelas circunstâncias e pelas vistas curtas.

as receitas para queimar o bolo


Acabo de ler (num espaço relativamente informal) que um ex-secretário de estado (do primeiro governo Sócrates) propõe, entre outras medidas complementares para cortar na despesa, a rubrica "na próxima revisão da Constituição, reduzir o número de deputados para 180". Sem qualquer animosidade pessoal contra o proponente, não posso deixar de aproveitar para dar esta ideia como o exemplo acabado da classe de disparates que devemos evitar produzir - em qualquer momento, mas especialmente em momentos de crise.
Podemos concordar ou discordar do número de deputados no Parlamento, tal como discordamos ou concordamos com o método de eleição, o estatuto dos deputados, etc., etc.. O que não podemos, seriamente, é atirar para trás das costas todas as consequências institucionais de uma determinada modificação e querer que ela passe como uma medida de corte na despesa.
O sistema político, com as suas soluções para aplicar o método representativo, pode e deve ser melhorado - até por estar por inventar o equilíbrio perfeito. Mas, enquanto sistema político - sistema para colectivamente nos entendermos - é um "bem público" essencial. E como tal tem de ser tratado. Meter o tema da redução do número de deputados no mesmo barco da redução da frota automóvel - passa as marcas do populismo. É um ensaio para um golpe de Estado na forma tentada com anestesia.

ultima ratio


Hoje comprei o Diário Económico. Dadas as "novidades" de ontem às 20-horas-20, e dado que há muito perdi qualquer tipo de fidelidade a qualquer tipo de jornal (compro pouco e vario muito), achei que o Económico podia ser útil. Até foi. Mas, claro, tinha que ser brindado com uma pérola.
A peça principal sobre o novo "pacote de austeridade" vem na página 4 e é assinada por Margarida Peixoto e Márcia Galrão. E deve ter sido lida por quem toma as decisões editoriais em última instância lá na casa. Então, logo no segundo parágrafo da peça, o texto dá-nos a ler que o PM teria dito que «as medidas são de "último arraso" e "só são tomadas quando não há outra alternativa"». Portanto, Sócrates teria dito que as medidas anunciadas eram "de último arraso". Ameaçador (ou incontinente), este PM!
Pois, Sócrates não disse nada disso. O PM usou a expressão latina ultima ratio. Em português corrente, algo como "última razão", se tomada demasiado à letra. Mais propriamente, o "último argumento" para sanar uma disputa, enfrentar uma dificuldade. Digamos, "último recurso". Ou "aquele cabo longínquo que não teríamos percorrido se não nos tivessem empurrado para tão longe". Agora, "último arraso" é que não sei o que é. "Arraso" pode ser "destruição", "deixar sem nada", "nivelar", ... , mas não me parece que o PM tinha querido anunciar que se propunha arrasar tudo o que ainda estivesse de pé em toda a extensão do império.

29.9.10

os cortes e as cicatrizes


Esta noite, o governo anunciou mais um pacote. Aumentar os impostos a que se não escapa e cortar na despesa em fatias que vão até ao osso. Claro que todos achamos tudo isto péssimo. Individualmente, ninguém aspira a receber menos e pagar mais. A esquerda que se reivindica ser mais esquerda do que as outras esquerdas já apontou a receita: vamos "resistir". Sem se aperceber de que andamos há décadas, precisamente, a resistir - coisa bastante mais fácil do que construir. A direita que andava a pedir cortes balbuciou (a que balbuciou) coisas ininteligíveis, talvez por saber que nunca teria coragem de fazer o que este governo agora fez: a máxima coragem que teve foi mandar cortar nos ordenados de alguns gabinetes de órgãos de soberania, mas tentando esquecer-se de outros gabinetes mais perto de "casa". As pessoas que pensam na sua vida começam a fazer contas: algumas centenas de milhares estão a calcular o corte, directo ou por via do efeito que isto terá no emprego do sector privado.
Não tenho competência para fazer uma análise ao que foi anunciado, mas não posso deixar de sublinhar alguns pontos.
Primeiro, nem sempre temos como resistir ao que consideramos iníquo: que "os mercados" sejam uns exploradores tiranos não nos safa de termos de contar com eles para ir tendo dinheiro para gastar. A menos que os portugueses prefiram que o Estado deixe de contrair dívida no mercado internacional para não ser explorado pelos mercados: deixa de fazer-se o que não há dinheiro para ser feito, tira-se directamente do bolso dos portugueses, ou como se faz? Há um preço a pagar pela crise, mas também pelo que fizemos (ou deixámos por fazer) anteriormente. Não podemos esmorecer no objectivo político de conseguir, designadamente no âmbito da UE, que o mercado internacional tenha mais travões à sua voracidade: mas não podemos, entretanto, esquecer em que mundo vivemos.
Segundo, mais tarde ou mais cedo o país vai perceber que não produzimos para a vida que o país leva: somos mais pobres do que pensamos e gostamos colectivamente de viver acima das posses - e não é "o Estado", esse espantalho em que projectamos todos os nossos pecados; somos nós, ou pelo menos a maioria de nós. A lógica dos "direitos adquiridos", que tem impedido uma lógica sustentada de reavaliação global da situação, tem-nos presos nas malhas da gloriosa herança que se esvai. Os sorvedouros continuam a ser demais e incompreensíveis. Vivemos num país onde um ministro das finanças deu às de vila diogo para não perder uma das suas pensões - mas continua a cantar de galo como se fosse uma luminária dos novos amanhãs que cantam.
Terceiro, há um aspecto dos "cortes" que tem ainda de ser muito melhor compreendido. Os funcionários públicos, em geral (pelo menos os que ganham acima de 1500 euros), vão pagar uma parte da factura. Mas interessa saber em que medida é que "a máquina" vai ser podada. Está na altura de retirar grande parte das máscaras que tornam obscuro o domínio do serviço público em Portugal. Está na altura de eliminar institutos e agências e todas as formas outras que servem funções que deviam estar na Administração de forma clara e directa. Aproveita-se para qualificar os recursos da Administração, reverter a tendência de esvaziamento que favoreceu a multiplicação dos pólos de poder derivado da Administração fora da Administração, reduz-se o leque de situações diferenciadas que deviam obedecer ao mesmo padrão. E está na altura de libertar o Estado da atracção fatal pelas parcerias público-privadas - que só complicam, por causa da confusão entre interesses diferentes (públicos e privados), que são legítimos quando não se confundem, mas são perversos quando se misturam; que facilitam que se faça o que não há dinheiro para fazer; que passam a carne do lombo para os "investidores" e deixam os ossos para o Estado. Está na altura de tornar o corpo dirigente da máquina pública mais imune às modas políticas, menos permeável à confusão de interesses, e fazer com que não reste nenhum departamento, nenhum serviço, nenhum instituto acerca do qual haja dúvidas quanto à sua real missão e contributo não redundante para a coisa pública. Para que se gaste o dinheiro a fazer o que é preciso fazer. Essa é, agora, condição essencial de legitimação dos esforços que se vão pedir aos portugueses. Porque a legitimidade é tanto mais importante quanto mais difícil é a situação.

indignidades da política do esconde-esconde


Bruxelas não vai processar a França por discriminar ciganos.

A Comissária Europeia Viviane Reding, uma mulher política de longa carreira na direita do espectro político luxemburguês e europeu, ameaçou a França com um processo por discriminação de cidadãos comunitários. A ameaça aconteceu depois de ter sido revelada a existência de uma circular interna em que os acampamentos de imigrantes ciganos, normalmente da Roménia e da Bulgária, eram dados como alvos “prioritários” das acções de desmantelamento e expulsão do país. A senhora Reding foi parcialmente desautorizada por Barroso, com a desculpa esfarrapada da referência ao procedimento nazi na segunda guerra mundial face aos ciganos (uma verdade, pelos vistos, inconveniente).
Agora, Bruxelas encontrou uma pequena farsa para deixar de incomodar a França e deixar que prossiga na discriminação proibida. Não temos nada contra que se persigam os comportamentos ilegais, usando os meios legais e próprios de países civilizados. Coisa muito diferente é perseguir grupos étnicos com base nesse mesmo critério, algo que pode ter uma justificação estatística, mas nunca uma justificação moral nem política.
Esta indignidade devia cobrir de vergonha a Comissão Europeia, que desde há vários anos arranja sempre maneiras de deixar que os "grandes" façam o que lhes dá na real gana, ao mesmo tempo que está sempre pronta a puxar as orelhas aos "pequenos". Essa indignidade, desta vez, tocando um assunto de direitos fundamentais, é ainda mais vergonhosa. Vergonha que, aliás, deviam sentir também aqueles que no Parlamento português, há alguns dias, se encolheram nas covas fundas das conveniências de momento para deixar por repudiar o racismo oficial do actual governo francês.
Esta é a verdadeira crise, a crise moral - que, acreditem, dá gás a todos os outros aspectos da crise.

28.9.10

as receitas fáceis postas na boca de ilustres pessoas não se tornam mais eficientes por causa do megafone


António Barreto: direito à saúde, educação e habitação é incompatível com a crise.
Prossegue o Público: «"Vamos à Constituição e vemos que o cidadão português tem todos os direitos e mais alguns. Tem direito à saúde e educação de graça, à habitação", disse António Barreto, considerando que estes direitos "não são compatíveis" com o actual estado das finanças públicas. O sociólogo acrescentou que gosta de "distinguir entre os direitos que devem ser absolutamente invioláveis – direito à privacidade, à integridade humana individual, direito à boa reputação, de voto, de expressão, de circulação – e os outros, que são interessantes, importantes, mas não são do mesmo nível de inviolabilidade como são os outros".»

O ex-ministro, ex-aspirante a líder do PS, actual crítico mordaz de tudo o que venha à rede, combina alguma lucidez que de vez em quando exibe - com a falsa lucidez dos que vêem muito olhando só para um lado. A moda agora é cortar nos direitos sociais. Barreto também acha. É mais difícil pensar em cortar nos direitos sociais quando se vive com o salário mínimo, quando se está doente, desempregado ou quando se pode ser despedido por dá cá aquela palha. Um professor universitário protegido das mais mesquinhas vilezas da contingência - está, certamente, muito mais à vontade para falar em "suspender" os direitos sociais.
Não tenho consideração nenhuma por esta forma parcelar de ver as coisas. Prefiro outro tipo de linha: em vez de falar em cortar nos direitos, falar em aumentar os deveres. Aumentar as responsabilidades. Temos a responsabilidade de trabalhar mais e melhor, criando riqueza para o país. Temos a responsabilidade de estudar mais e melhor, dando bom uso ao que o país gasta em educação e formação. Temos o dever de organizar melhor, para não estragar o trabalho dos outros. Temos a responsabilidade de cortar no supérfluo, para não contribuir para o endividamento do país e alargar a poupança. Temos a responsabilidade de contribuir para o bom funcionamento das instituições, não nos aproveitando de cargos e funções para fins ilegítimos, não degradando o espaço público, não cumulando os cargos de privilégios que a função não exige. Temos muitas responsabilidades ainda mal assumidas, individual e colectivamente. É por aí que o país tem de mudar. Para garantir os direitos que já existem e reforçá-los no futuro. Isso é pensar pela positiva. Isso é necessária para quebrar o enredo dos que vão sempre ao bolso para puxar pela solução facilitista e miserabilista: cortar nos direitos sociais e económicos dos mais desprotegidos.

à saída de Belém


Heloísa Apolónia, deputada e dirigente do Partido Ecologista "Os Verdes", diz que o seu partido está disposto a dialogar, mas lembra a "arrogância" do Governo e do ministro das Finanças.
Na mesma declaração, a deputada Verde declarou que "quem tem que alterar posições é o PS". "Se há alguém que tem de mudar é o PS."
Arrogância, disse ela?!

uma posta a puxar para o populismo, para ir na onda da política nacional.


Passos Coelho ouve economistas na véspera de audição com Cavaco.

Só agora é que Passos Coelho vai ouvir economistas? Pensei que já andasse a ouvir. Vários. Um para cada dia da semana. Sempre com opiniões diferentes. Seria uma explicação para os ziguezagues.
Entretanto, se o homem vive mesmo em Massamá, podia ouvir... os vizinhos, por exemplo. Alguns saberão mais da vida do que alguns economistas, de certo. É que "os economistas" têm muita tendência para não terem vizinhos. De carne e osso, claro.

o poder ganhou consciência


A frase-choque deste anúncio é muito-muito-muito ajustada. O poder ganhou consciência. Só falta dizer que de que coisa ganhou o poder consciência. Consciência... do país? ... da realidade? ... das pessoas? Também há que saber de que poder se fala: o poder dos que foram legitimados para o exercer? o poder dos que o usurparam à sombra de amigos e ligações cinzentas? O poder da espertalhice?
O Jumento ajuda a posicionar a questão no tabuleiro. O tabuleiro de certos aspectos da "vida nacional" que deviam ser varridos com grande limpeza. Aqui: a burguesia política.


26.9.10

a saudável concorrência democrática entre PSD e BE


Parece que PSD e BE estão com dificuldades em separar bandeiras. Se foi o PSD ou o BE a inventar o "orçamento de base zero", quem copia quem nessa matéria, qual dos dois partidos consegue levar melhor essa proposta ao adequado ponto de rebuçado - parece ser agora a fina linha divisória entre as grandes bandeiras políticas de Passos Coelho e de Louçã. Agora, o BE até parece ter a mesma posição do PSD quanto ao aumento de impostos: será que o BE também vai participar no cálculo e comemoração do "dia da libertação dos impostos"? Pelo andar da carruagem, já nem espanta que o PSD de Passos Coelho sugira que o governo negoceie o orçamento com o BE: ao PSD não importa muito influenciar o rumo do país; quer, tão somente, não ficar associado a qualquer partilha de responsabilidades; e parece não ver inconvenientes em que o BE entre para o "arco da governação".
Afinal, a "teoria Henrique Monteiro", exposta no editorial de ontem do Expresso, faz escola: se o governo quer orçamento, que se desembrulhe. Como se o orçamento não fosse coisa de interesse para o país e um governo responsável pudesse aceitar qualquer orçamento apenas para se manter. Se toda a oposição quer o mesmo, por que não se juntam todos para governar?

24.9.10

orçamentar rima com roçar, não rima?


Um país onde, num momento de crise, o governo e o principal partido da oposição fazem rondas negociais sobre o Orçamento de Estado na comunicação social - é um país que poderia ser governado pelo Manuel João Vieira. É um país que roça a indigência política - a completa ausência de noção da "coisa comum". É um país onde a principal prioridade política começa a ser dar lições de falhanço institucional à maioria esmagadora dos nossos representantes. Sim, porque eles são nosso representantes!

a coragem dos cobardes é questão de conversa. ou será antes assunto de oportunismo?


Manuel Maria Carrilho tem um truque velho: tenta prevenir qualquer substituição num cargo público fazendo declarações que possam ser consideradas discordantes. Depois, quando a substituição mostra que em república não há cargos vitalícios, explicita a tese: fui despedido por causa da discordância. Se fosse assim tão corajoso teria saído pelo seu próprio pé, quando o governo o mandou votar na UNESCO uma pessoa que ele considerava indesejável. Em vez de se fazer substituir no levantar do braço, mantendo-se no cargo apesar de "radical discordância", teria mostrado a coerência das convicções terminando a sua missão de representar "gente que o manda fazer coisas infames". Mas isso não iria de acordo com o seu fito: manter-se. Para se manter, vale tudo. Agora, arriscar o lugar pela tal verticalidade de posições, isso já é outra história.

23.9.10

por qual razão certa imprensa se acha no direito de mentir descara e propositadamente, só para fornececer notícias mais picantes?



O Diário de Notícias coloca esta "notícia" na sua primeira página e dá-lhe desenvolvimento no interior. A notícia é falsa. Para saber que a notícia é falsa bastaria saber quais são as competências dos diferentes comissários europeus e o que têm andado eles a fazer. O Comissário Janusz Lewandoski vem a Portugal para discutir as perspectivas financeiras da União Europeia pós-2013, e não o orçamento português (isso não é da sua competência). Lewandoski anda num tour des capitales (esteve recentemente na Lituânia e em França) para tratar do que lhe compete - e não do que inventam os jornalistas. A análise dos orçamentos nacionais dos Estados-membros compete a outro Comissário europeu, o dos assuntos económicos e monetários, Olli Rehn. Tudo isto um jornal "sério" tinha obrigação de saber - para não tentar enganar os seus leitores.
Se, além disso, o jornal tiver sido avisado previamente de que era falsa a informação que se preparava para publicar, tendo-a mesmo assim publicado, temos um acto de deliberada mentira ao público. Cremos ter elementos para ajuizar que foi isso mesmo que aconteceu. O que representa uma completa falta de respeito pelos leitores. Mas, claro, continua a haver quem entenda que "liberdade de imprensa" equivale a "deixa-os dizer tudo o que lhes passe pela cabeça".
Ainda se queixam dos blogues...


um humilde pedido público da caridade de uma explicação, já que eu, se Pessoa estava certo, sou como Jesus Cristo que não percebia nada de finanças



Custos da dívida portuguesa não param de aumentar. «Apesar de Portugal ter conseguido encontrar um nível confortável de procura nos mercados internacionais para as suas emissões de dívida, essas concessões de crédito estão a ser feitas a taxas bastante mais elevadas do que as que se registavam antes do início da crise.»

Bancos portugueses ajudam Estado. «Num cenário de dificuldades na obtenção de financiamento nos mercados, o Estado português tem contado com a ajuda dos bancos nacionais para resolver alguns dos seus problemas.»

Os juros dos empréstimos concedidos ao Estado têm aumentado. Mas qual é a dúvida? Espera-se que quem empresta dinheiro queira ganhar o máximo com isso. Os "mercados internacionais" - quer dizer, a meia dúzia de bancos e agências que fazem a "imagem" dos agentes económicos - manipulam o clima político para obterem mais dinheiro pelos mesmos empréstimos. Eu, o(a) caro(a) leitor(a) também gostaria de poder ter melhores taxas de juros na remuneração de algum dinheiro que pudesse investir. Se eu pudesse ameaçar o meu banco de inúmeras malfeitorias, às quais ele só poderia escapar se me aumentasse a taxa de juro em dois ou três pontos, eu teria assim uma maneira de ganhar mais uns trocos. Eu, tu, ele - não podemos fazer isso. Mas "eles" podem. A tal meia dúzia de "actores globais" do mercado da intoxicação mediática, política e financeira a nível global. Para quê? Para ganharem dinheiro. À custa de quem? Dos países que, à vez, são colocados na berlinda. Com a cumplicidade de quem? De quem defende as soluções políticas, a nível nacional e europeu, que facilitam esse jogo.
Entretanto, os bancos nacionais, bonzinhos, emprestam ao Estado. Vamos lá a ver se eu percebo. Graças à crise, o Banco Central Europeu empresta dinheiro aos bancos, em condições que eles não encontrariam no mercado. Os bancos, simpaticamente, emprestam ao Estado. Com juros superiores, claro, por ser esse o seu negócio. E nós achamos bem. Mas, então, por que não há-de o BCE emprestar directamente ao Estado, sem o intermediário dos bancos privados?
É um excelente argumento, a crise. Tenham caridade: eu, como o Jesus Cristo que Fernando Pessoa entendia, também não percebo nada de finanças. Expliquem-me lá, devagarinho, onde me enganei eu.

22.9.10

sacrifícios


Expedição encontra anfíbios que não eram vistos há décadas.


Anfíbios? Teresa R. Ter-Minassian. Sapos e salamandras? Ficam avisados: eu não recebo nem subsídio de férias, nem décimo terceiro mês. E sou favorável à venda do submarino.

leio nos astros que vem aí um momento da vida nacional em que vamos precisar de ter bem afiadas as nossas competências para falar em bom português


Almas puras, menores, gente com pouco conhecimento das variantes da língua portuguesa nos vários bairros das urbes do continente, incontinentes no riso, aflitinhos para ir à casa de banho, estudantes de hermenêutica filosófica - devem, por variadas razões, evitar ouvir esta peça.


(Sugestão da ATD.)

20.9.10

Paulo Manuel Bento Maria Carrilho


Isto é um desabafo sobre contratações.

Paulo Bento vai ser seleccionador nacional de futebol. Mas a Federação arranjou maneira de o embrulhar num manto de segunda escolha. Para isso, Madaíl foi a Madrid sugerir a um clube privado que nos devia emprestar o seu treinador para dar umas voltinhas enquanto não resolvíamos uma embrulhada doméstica. Os tipos fartaram-se de rir na cara de Madail, Mourinho piscou o olho à nação, mas a Federação acha assim que pode mais tarde vir dizer que já desconfiava desta segunda escolha.

Manuel Maria Carrilho vai deixar de ser embaixador de Portugal junto da UNESCO. Brada-se para aí que é um castigo por crime de opinião. Quando uma personalidade próxima do PS é nomeada para algum cargo, grita-se que é um favor político. Quando uma personalidade próxima do PS é removida de algum cargo, barafusta-se contra o saneamento. Se a personalidade for a mesma num e noutro momento, isso não impede que sejam os mesmos a gritar primeiro contra a ida e a barafustar depois contra a vinda. É um coro-Madaíl que se apossa das redes sociais e da blogosfera para a má-língua popular. Este país às vezes parece uma enorme Federação Portuguesa de Futebol.

Javier Marín, "trois par trois"


Escultura do mexicano Javier Marin, em exposição dentro e fora de museus em Bruxelas, desde os Musées Royaux des Beaux-arts e a Place Royale, passando pela Place des Musées, até ao Mont des Arts. São esculturas que, em alguns casos, revisitam peças clássicas do imaginário artístico ocidental com outros materiais (resina de poliester usada em abundância) e em escalas inabituais; enquanto noutros casos reinterpretam o imaginário do passado mexicano.
Ficam algumas das fotografias que lá fizemos.




a filosofia vai ao cinema


Um blogue de Carlos Café, a seguir a partir de agora: A filosofia vai ao cinema.

14.9.10

boa educação e política


A dirigente do PS, Edite Estrela, escreveu uma carta aos militantes do seu partido, na qual dava razões para o empenhamento desse colectivo nas eleições presidenciais, argumentando com a forma - talvez subtil mas efectiva - como Cavaco Silva tem exercido o seu mandato em contravapor ao governo do PS (e com a esperança de que Alegre será melhor).
Cavaco Silva, o candidato instalado no palácio, levou desta vez longe demais a sua táctica de se fazer de morto: sugeriu que os ataques eram má educação e que ele, do alto da sua sabedoria, não respondia a tais vozes. Que CS insista na sua táctica de sempre, que é fazer política a fazer de conta que não é político - e acusando os outros de fazerem política - não espanta: a democracia como lugar de escolha entre visões diferentes do interesse nacional não lhe cabe na cabeça. Continua a sonhar com o consenso nacional, desde e sempre que esse consenso se faça em torno de si e dos seus.
Já que tantas outras vozes tenham caído na velha armadilha cavaquista, não percebo. Anda por aí quem aceite que o candidato CS se esconda no palácio para melhor fazer a sua campanha e que se furte ao debate, dizendo generalidades moralistas que aplica a toda a gente menos a si próprio. Quem faça por se esquecer que CS deu acampamento a verdadeiras inventonas anti-democráticas, com fontes de Belém escondidas com o rabo de fora para prejudicar o governo. E essas vozes escandalizam-se com o facto de um partido criticar o PR - embora, obviamente, não se escandalizem nada com o facto de partidos e mais meio mundo estarem na crítica permanente ao PM, que também exerce um alto cargo do Estado e nem sequer está em campanha (nem pré-campanha) eleitoral.
Isto já parece, para voltarmos à expressão, o clima de "A Bem da Nação": há uns senhores que querem ser tomados por deuses do universo nacional, querem ser dispensados do escrutínio democrático - que é muito mais do que votar -, e andam a tentar instalar (e instilar) a ideia de que haver projectos diferentes e debate é coisa má e que deve ser evitada para preservar o clima de chá das cinco que vai bem com a hipocrisia mansa e de falinhas arredondadas do actual primeiro magistrado. Que, aliás, é um homem que discursa muito bem sobre ordenhas, como se prova por aquele vídeo ali na barra lateral.

povo


A exposição "Povo", ainda patente no Museu da Electricidade: uma desilusão. Um pedagogismo de escola, com pouco pensamento. Se era para o povo, o povo já conhece. Se era sobre o povo, podiam pedir-nos para pensar um pouco mais. De boas intenções está o republicanismo cheio, já se sabe. Desculpem qualquer coisinha.




bom dia


"Take This Waltz", Leonard Cohen, olhando Federico García Lorca


Now in Vienna there's ten pretty women
There's a shoulder where Death comes to cry
There's a lobby with nine hundred windows
There's a tree where the doves go to die
There's a piece that was torn from the morning
And it hangs in the Gallery of Frost
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
Take this waltz with the clamp on its jaws

Oh I want you, I want you, I want you
On a chair with a dead magazine
In the cave at the tip of the lily
In some hallways where love's never been
On a bed where the moon has been sweating
In a cry filled with footsteps and sand
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
Take its broken waist in your hand

This waltz, this waltz, this waltz, this waltz
With its very own breath of brandy and Death
Dragging its tail in the sea

There's a concert hall in Vienna
Where your mouth had a thousand reviews
There's a bar where the boys have stopped talking
They've been sentenced to death by the blues
Ah, but who is it climbs to your picture
With a garland of freshly cut tears?
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
Take this waltz it's been dying for years

There's an attic where children are playing
Where I've got to lie down with you soon
In a dream of Hungarian lanterns
In the mist of some sweet afternoon
And I'll see what you've chained to your sorrow
All your sheep and your lilies of snow
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
With its "I'll never forget you, you know!"

This waltz, this waltz, this waltz, this waltz
With its very own breath of brandy and Death
Dragging its tail in the sea

And I'll dance with you in Vienna
I'll be wearing a river's disguise
The hyacinth wild on my shoulder,
My mouth on the dew of your thighs
And I'll bury my soul in a scrapbook,
With the photographs there, and the moths
And I'll yield to the flood of your beauty
My cheap violin and my cross
And you'll carry me down on your dancing
To the pools that you lift on your wrist
Oh my love, Oh my love
Take this waltz, take this waltz
It's yours now. It's all that there is.

a coisa pública


José Luís Sarmento pôs-se a ler Marquand e depois reflectiu. Excerto:
A demonização do funcionalismo público; a sujeição dos seus quadros superiores a um dever de lealdade pessoal aos governantes enquanto pessoas privadas em detrimento das pessoas públicas que eles também são - e em detrimento, sobretudo, da lealdade que devem à república; a proletarização e desautorização das classes profissionais; a obsessão com tudo o que seja objectivos quantificáveis e a destruição iresponsável e bárbara de tudo o que o não é; o proliferar de sistemas de avaliação estilo rococó que são, no dizer de Boaventura Sousa Santos, tão impecáveis no rigor formal quanto fraudulentos na substância; a falsa descentralização e as falsas autonomias que puxam para o centro todo o poder de decisão ao mesmo tempo que empurram para a periferia toda a responsabilidade pelas decisões tomadas; o anti-elitismo populista; o combate cego aos impostos, sobretudo aos progressivos, como se pagar impostos não fosse marca e condição da cidadania - tudo isto é descrito por Marquand , com abundantes exemplos, em referência à realidade britânica. Mas nenhum autarca português, nenhum médico, enfermeiro ou professor, nenhum advogado que não pertença aos grandes escritórios, nenhum académico, intelectual ou artista, nenhum cientista, nenhum jornalista, nenhum economista que não pertença ao reduzido grupo que trabalha para a banca e domina os media poderá ler Marquand sem encontrar acrescida confirmação na sua própria experiência profissional e pessoal.
Integral aqui. A propósito de Decline of the Public, de David Marquand.

Salazar era um democrata-cristão?


Quando uma comunidade se torna civilizada (mesmo que seja localizadamente civilizada), passa a ser possível pensar sem que chovam anátemas. Começa a ser possível ultrapassar os esquemas simples, deixar de querer juntar todos os debates numa única "grande guerra", falar de coisas que nos desgostam com objectividade e sem raiva (ao mesmo tempo que a raiva justa não se amolece pela necessidade de compreender). Salazar, um dos pais da preguiça mental do nosso país, teria a sua definitiva vitória se não fossemos capazes de o discutir sem ódio. Não é que ele não mereça o ódio do país, mas merece mais, como ilustração de que a sua vitória não foi definitiva, a maturidade do país - e a lucidez, a única verdadeira desforra que podemos tirar dos males morais que nos legou.
O recente debate sobre a sua putativa condição de democrata-cristão mereceu, a nosso proveito, uma bela análise de Irene Pimentel, num post intitulado Salazar democrata-cristão?, dado à estampa, por assim dizer, no jugular.

10.9.10

o soviete da justiça


PGR deve ser eleito pelos magistrados.
Continua o Público: «"À mulher de César não basta ser séria, tem que parecê-lo”, sintetiza Franclim Ferreira [da Associação Justiça para Todos], sugerindo que o PGR fosse escolhido por votação pelos magistrados do Ministério Público.»

Quando as sentenças e os acórdãos, ou até os despachos nos processos, não vão no sentido que "as pessoas" esperam, inventa-se todo o tipo de disparates para incendiar a pradaria. A visão do Estado como associação de bairro parece ser, para os bem intencionados, uma ficção razoável. Que cada turma eleja o seu cacique é o mais que aguenta esta simplória visão do mundo. Os polícias deveriam, pois, eleger os seus comandantes; os funcionários públicos deveriam talvez eleger os ministros; não sei se também os enfermeiros deveriam eleger os médicos. Claro que, a estas cabeças, não lhes passa pela ideia que um vício terrível de muitas organizações consiste, precisamente, em que quem dirige depende de quem é dirigido, assim se anulando a função de dirigir, tornando-a refém das circunstâncias. Mas isso é teoria política altamente abstracta para gente que gostaria de gerir o mundo com quem gere um jogo de sueca, com as mesmas ferramentas conceptuais.

o manifesto dos economistas consternados


Parece-lhe evidente que os mercados financeiros são eficientes? que os mercados financeiros são favoráveis ao crescimento económico? que os mercados são bons juízes da solvabilidade dos Estados? que o aumento da dívida pública resulta de um excesso de despesa? que é preciso reduzir as despesas para reduzir a dívida pública? que a dívida pública atira o custo dos nossos excessos para os nossos netos? que devemos tranquilizar os mercados financeiros para poder financiar a dívida pública? que a União Europeia defende o modelo social europeu? que o euro é um escudo contra a crise? que a crise grega permitiu finalmente avançar para um governo económico europeu e para uma verdadeira solidariedade europeia? Se tudo isto lhe parece evidente, vale a pena dar uma espreitadela ao manifesto dos economistas consternados.

O “Manifesto dos economistas consternados” é uma iniciativa de André Orléan, Philippe Askenazy, Thomas Coutrot e Henri Sterdyniak. Está disponível em linha aqui – mas numa língua que “alguns” não dominam o suficiente para tal leitura. Não cabe dar aqui uma tradução do francês para o português, mas sempre achamos poder dar o sumo: as 10 falsas evidências denunciadas, as 22 medidas propostas para sair do impasse. Pequenas partes dos textos justificativos de cada uma das “ideias feitas” são também parcialmente resumidas. Claro que só o original faz fé.
Não seria preciso dizer: não se suponha que a publicação deste material implica a integral concordância com ele; “apenas” implica a minha concordância com a importância destas questões e com a necessidade de voltar a pensar contra as ideias feitas.

 

Crise e dívida na Europa:
10 falsas evidências, 22 medidas em debate para sair do impasse


Falsa Evidência # 1: os mercados financeiros são eficientes.

A crise encarregou-se de demonstrar que os mercados não são eficientes, que não permitem a alocação eficiente de capital. A competição financeira não produz necessariamente os preços justos. Pior, a competição é muitas vezes causa de desestabilização financeira e leva a evoluções de preços excessivas e irracionais (“bolhas financeiras”).
Para reduzir a ineficiência e a instabilidade dos mercados financeiros, sugerimos quatro medidas:
Medida 1: compartimentar estritamente os mercados financeiros e as actividades dos agentes financeiros, proibir os bancos de especular por conta própria, para evitar a propagação de bolhas e craches.
Medida 2: Reduzir a liquidez e a especulação desestabilizadora com controlo dos movimentos de capitais e taxas sobre operações financeiras.
Medida 3: Restringir as operações financeiras às que se prendem com necessidades da economia real (por exemplo, CDS apenas aos detentores de títulos segurados, etc.).
Medida 4: Plafonamento das remunerações dos traders.

Falsa Evidência # 2: os mercados financeiros são favoráveis ao crescimento económico.

Hoje em dia, globalmente, são as empresas que financiam os accionistas, e não o contrário. A ideia de um interesse comum das diferentes partes envolvidas na empresa desapareceu. Impôs-se uma nova concepção da empresa e da sua gestão, pensados como estando ao serviço exclusivo dos accionistas. As exigências de rentabilidade inibem fortemente o investimento: quanto maior o retorno exigido, maior é difícil encontrar projectos para o satisfazer. A forma de remuneração dos administradores faz com que os seus interesses sejam os mesmos dos accionistas.
Para remediar os efeitos negativos dos mercados financeiros sobre a actividade económica colocamos a debate três medidas:
Medida 5: Reforçar significativamente o equilíbrio de poderes dentro das empresas para forçar a administração a tomar em conta todos os interesses participantes.
Medida 6: Aumentar significativamente os impostos sobre os rendimentos muito elevados para desencorajar a corrida aos rendimentos insustentáveis.
Medida 7: Reduzir a dependência das empresas face aos mercados financeiros, pelo desenvolvimento de uma política pública de crédito (taxas preferenciais para actividades prioritárias na área social e ambiental).

Falsa Evidência # 3: os mercados são bons juízes da solvabilidade dos Estados.

Segundo os defensores da ideia de que os mercados de capitais são eficientes, os participantes do mercado têm em conta a situação objectiva das finanças públicas ao avaliar o risco de comprar um título de dívida pública. Este erro de avaliação resulta da incompreensão da verdadeira natureza da avaliação pelo mercado financeiro, que frequentemente produz preços totalmente dissociados dos fundamentais. Um título financeiro é um direito sobre rendimentos futuros: para o avaliar é preciso prever o que será o futuro. Não há nenhuma razão para os operadores nas salas de mercado serem bons nesse exercício. Além do mais, a avaliação financeira não é neutra. Baixar as notações de um Estado contribui para aumentar as taxas de juro sobre a dívida desse Estado, constituindo-se como fonte de lucros especulativos, ao mesmo tempo que pioram o cenário que estão a avaliar.
Para reduzir a influência da psicologia de mercado no financiamento do Estado, colocamos a debate duas medidas:
Medida 8: A actividade das agências de notação financeira deve ser regulada no sentido de reduzir a arbitrariedade: a notação deve resultar de um cálculo económico transparente.
Medida 8bis: O BCE, com a compra de títulos públicos, deve proteger os Estados dos mercados financeiros.

Falsa Evidência # 4: o aumento da dívida pública resulta de um excesso de despesa.

A visão propagada pela maioria dos comentadores é a de um Estado que se endivida como um pai alcoólico que bebe o que tem e o que não tem. Contudo, a recente explosão da dívida pública na Europa e no mundo é devida a outra coisa: aos planos de resgate do mercado financeiro e, sobretudo, à recessão causada pela crise bancária e financeira, que começou em 2008. O deficit público médio na zona euro era de apenas 0,6% do PIB em 2007, mas a crise financeira aumentou-o para 7% em 2010. A dívida pública aumentou, ao mesmo tempo, de 66% para 84% do PIB.
Para restaurar um debate público informado sobre a origem da dívida e, portanto, os meios para superá-la, propomos:
Medida 9: Realizar uma iniciativa cidadã de auditoria pública da dívida do Estado, para determinar a sua origem, bem como conhecer a identidade dos principais detentores de títulos de dívida e os montantes detidos.

Falsa Evidência # 5: é preciso reduzir as despesas para reduzir a dívida pública.

Embora o aumento da dívida pública resulte em parte do aumento da despesa pública, cortar na despesa não é necessariamente contribuir para a solução. Porque a dinâmica da dívida pública pouco tem a ver com a de uma economia doméstica. A dinâmica da dívida depende de vários factores: o nível dos deficits primários, mas também da diferença entre as taxas de juros e a taxa de crescimento nominal da economia. Pois, se esta for menor do que a taxa de juros, a dívida vai aumentar mecanicamente apenas pelo efeito “bola de neve": o montante dos juros explode, e o deficit total (incluindo juros de dívida) também. Mas a taxa de crescimento da própria economia não é independente da despesa pública. Se a redução do défice afunda a actividade económica, a dívida aumentará ainda mais. O que, obviamente, esquecem os adeptos do ajustamento estrutural europeu é que os países europeus são os principais clientes e concorrentes de outros países europeus; a redução simultânea e massiva das despesas públicas do conjunto dos países da UE só pode ter como efeito uma recessão e novo agravamento da dívida.
Para evitar que o esforço de recuperação das finanças públicas resulte num desastre social e político, colocamos a debate duas medidas:
Medida 10: Manter, ou melhorar, o nível de protecção social.
Medida 11: Aumentar o esforço orçamental em educação, investigação, reconversão ambiental, …, para estabelecer as condições para um crescimento sustentável, permitindo uma queda acentuada do desemprego.

Falsa Evidência # 6: a dívida pública atira o custo dos nossos excessos para os nossos netos.

É uma outra declaração enganosa, que confunde economia doméstica e macroeconomia: a dívida seria uma transferência de riqueza em detrimento das gerações futuras. A dívida pública é um mecanismo de transferência de riqueza, mas sim da maior parte dos contribuintes comuns para os que vivem de rendas. O aumento da dívida pública na Europa ou nos E.U.A. não é o resultado de políticas expansionistas ou políticas sociais dispendiosas, mas antes de políticas a favor das classes privilegiadas: as baixas de impostos aumentam o rendimento disponível dos que menos precisam, que assim podem aumentar os seus investimentos (nomeadamente em títulos do Tesouro), cujos juros são pagos pelos impostos cobrados sobre todos os contribuintes. Trata-se de um mecanismo de redistribuição ao contrário, das classes mais baixas para as classes superiores, através da dívida pública.
Para recuperar as finanças públicas de forma equitativa, pomos a debate duas medidas:
Medida 12: Voltar a dar um carácter fortemente redistributivo à fiscalidade directa sobre o rendimento (supressão de nichos, criação de novos escalões, aumento das taxas...);
Medida 13: Eliminar as isenções concedidas às empresas sem efeito suficiente em matéria de emprego.


Falsa Evidência # 7: devemos tranquilizar os mercados financeiros para poder financiar a dívida pública.

Resultado de uma escolha doutrinária, o Banco Central Europeu não tem o direito de subscrever directamente títulos de dívida pública dos Estados europeus. Privados da segurança que assim poderiam obter, os países do Sul foram vítimas de ataques especulativos. É certo que, nos últimos meses, o BCE compra obrigações a taxas de juro de mercado para aliviar as tensões no mercado, mas nada diz que isto será suficiente se a crise piorar e as taxas de juro de mercado aumentarem.
Com vista a resolver o problema da dívida, pomos a debate duas medidas:
Medida 14: Autorizar o BCE a financiar directamente os Estados (ou exigir que os bancos comerciais subscrevem emissões de títulos públicos) com baixas taxas de juros, afrouxando assim o espartilho com que os mercados financeiros os apertam.
Medida 15: Se necessário, reestruturar a dívida pública, por exemplo, limitando o serviço da dívida pública a uma determinada % do PIB, e discriminando entre os credores segundo o volume de acções que possuem. Há também que renegociar as taxas de juros exorbitantes dos títulos emitidos por países em dificuldades durante a crise.

Falsa Evidência # 8: a União Europeia defende o modelo social europeu.

A construção europeia aparece como uma experiência ambígua. Duas visões da Europa coexistem, sem ousarem uma confrontação aberta. Para os social-democratas [socialistas], a Europa deveria ter o objectivo de promover o modelo social europeu, fruto do compromisso social do pós-Segunda Guerra Mundial, com a protecção social, os serviços públicos e as políticas industriais. A Europa deveria ter defendido uma visão própria da organização da economia mundial, a globalização regulada por organismos de governança global. Entretanto, a visão que prevalece, em Bruxelas e na maioria dos governos nacionais, é a de uma Europa liberal: a integração europeia é uma oportunidade para minar o modelo social europeu e desregulamentar a economia. Longe de se limitar ao mercado interno, a liberdade de circulação de capitais concedida aos investidores no mundo inteiro tem submetido o tecido produtivo europeu aos constrangimentos de valorização do capital internacional. A organização da política macroeconómica (independência do BCE face às instâncias políticas, o Pacto de Estabilidade) é marcada pela desconfiança face aos governos democraticamente eleitos. Nenhuma política conjuntural comum é implementada ao nível da zona, nenhum objectivo comum é definido em termos de crescimento e emprego. As diferenças de situação entre países não são tidas em conta.
Para que a Europa possa verdadeiramente promover um modelo social europeu, pomos a debate duas medidas:
Medida 16: Voltar a questionar a livre circulação de capitais e mercadorias entre a UE e o resto do mundo, se necessário através da negociação de acordos bilaterais ou multilaterais;
Medida 17: Em vez da política de concorrência, fazer da “harmonização no progresso” o fio condutor da construção europeia. Estabelecer metas comuns com carácter obrigatório em matéria de progresso social, tal como existem em matéria macroeconómica.

Falsa Evidência # 9: o euro é um escudo contra a crise.

O euro deveria ter sido um factor de protecção contra a crise financeira mundial. De facto, a eliminação de incerteza nas taxas de câmbio entre moedas europeias afastou um dos principais factores de instabilidade. No entanto, as coisas não se passaram bem assim: a Europa foi mais duradoura e mais duramente afectada pela crise do que o resto do mundo – e isso deve-se às próprias modalidades de construção da união monetária. A política económica da zona euro, que tende a impor políticas macroeconómicas similares a países em diferentes situações, aprofundou as disparidades de crescimento entre os Estados-Membros. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, permitiu fazer recair o ónus do ajustamento sobre o emprego. Foi promovida a flexibilidade e moderação salariais, reduzida a parte dos salários no rendimento total, aumentadas as desigualdades. A Alemanha aproveitou bem: os seus superavits comerciais existem à custa dos seus parceiros, e dos seus empregados (menor custo de trabalho e benefícios sociais). Os excedentes comerciais alemães pesam sobre o crescimento dos outros países. Os défices orçamentais e comerciais de uns são a contrapartidas dos excedentes de outros – na ausência de uma estratégia coordenada. Quando a crise financeira começou nos Estados Unidos, eles tentaram uma verdadeira política de relançamento, iniciando também um movimento de re-regulação financeira. A Europa, pelo contrário, não conseguiu ainda fazer o suficiente. Ao mesmo tempo, a Comissão tem continuado a lançar os procedimentos de défice excessivo contra os Estados-Membros.
Para que o euro possa realmente proteger os cidadãos europeus da crise, trazemos a debate duas medidas:
Medida 18: Assegurar uma efectiva coordenação das políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus.
Medida 19: Compensar os desequilíbrios de pagamentos na Europa por um Banco de Compensações (organizando empréstimos entre países europeus).
Medida 20: Se a crise do euro levar à sua fragmentação, e enquanto se aguarda o orçamento da UE, estabelecer um regime monetário intra-europeu (uma moeda comum do tipo "bancor”) que organize a absorção dos desequilíbrios das balanças comerciais na Europa.

Falsa Evidência # 10: a crise grega permitiu finalmente avançar para um governo económico europeu e para uma verdadeira solidariedade europeia.

Os especuladores perceberam as falhas na organização da área do euro. Enquanto os governos de outros países desenvolvidos continuam a poder ser apoiados pelos seus bancos centrais, os países da zona euro renunciaram a esta opção e são totalmente dependentes dos mercados para financiar os seus deficits. Como resultado, a especulação teve a sua oportunidade atacando os mais vulneráveis da zona. As autoridades europeias e os governos foram lentos a reagir – mas, mesmo assim, fizeram-no obrigando os países ameaçados a políticas recessivas e empurrando-os para a privatização de serviços públicos. Os partidários das políticas orçamentais automáticas e restritivas na Europa foram reforçados. A ideia de avançar para um governo económico europeu está agora associada aos que querem que sejam as políticas sociais a pagar a crise.
Para avançar para um verdadeiro governo económico e uma solidariedade europeia, pomos a debate duas medidas:
Medida 21: Desenvolvimento de uma fiscalidade europeia (taxa sobre o carbono, imposto sobre os lucros, ...) e um verdadeiro orçamento europeu para apoiar a convergência das economias e trabalhar no sentido da igualdade de acesso aos serviços públicos e sociais nos diversos Estados-Membros, com base nas melhores práticas.
Medida 22: Lançamento de um vasto plano europeu, financiado por subscrição pública, com baixas taxas de juros mas com garantia, e/ou emissão do BCE, para iniciar a reconversão ecológica da economia europeia.



Queiroz e companhia: uma história portuguesa


Selecção: FPF anuncia saída de Carlos Queiroz.

Não percebo nada de futebol. Muito menos da sua organização. Não faço ideia quem borrou a pintura no caso da nossa participação no mundial da África do Sul. Mas esta história, na aparência distante que dela tenho, parece-me demasiado portuguesa. Um seleccionador que dizem falar de uma maneira que os jogadores não percebiam no balneário. Uns jogadores que ganham demasiado dinheiro para se estarem a maçar com os pequenos orgulhos de um país que só se lembra de orgulhos quando alguém pode jogar por ele (país): é para isso que existe uma selecção, para eles jogarem enquanto nós nos refastelamos nos sofás. Um país que acha ter direito a ganhar tudo o que haja para ganhar ao melhor nível, mesmo que ainda há poucos anos estivesse habituado a nem lá pôr os pés. Uma "camada dirigente" que sacode o capote com grande agitação quando a coisa não brilha tanto como a ambição ditava. Uma malta que assina contratos milionários para o caso de o senhor X ser posto na rua por indecente e má figura - mas que depois acha caro quando chega a altura de pagar. Umas pessoas que tratam das coisas sérias da medicina desportiva, mas que guardam as broncas para depois da festa. Uns dirigentes tratados por professores e tudo, mas que mandam os tais médicos à outra parte e acham que eles se ofendem por falta de tradução simultânea. Um ou outro membro do governo que aparece misturado com a "justiça desportiva" e não se percebe bem por que carga de água tal deva ser o caso. E, de caminho, a história a fazer-se: no "campo de batalha" vamos perdendo pontos, não vamos deixar por mãos alheias os nossos pergaminhos de sermos os melhores dos nossos próprios inimigos. Isto deve dar razão à malta que defende a liberalização dos despedimentos: atrás do seleccionador nacional, podiam ir mais uns tantos que não fazia mal nenhum. Só que, nesse caso, com tanta limpeza isto já não seria propriamente uma história portuguesa. O que seria, claro, uma grande pena.

ideias feitas


Se o caro/a leitor/a pensa que...
os mercados financeiros são eficientes...

os mercados financeiros são favoráveis ao crescimento económico...

os mercados são bons juízes da solvência dos Estados...

o aumento da dívida pública resulta de um excesso de despesa...

é preciso reduzir as despesas para reduzir a dívida pública...

a dívida pública atira o preço dos nossos excessos para os nossos netos...

devemos tranquilizar os mercados financeiros para poder financiar a dívida pública...

a União Europeia defende o modelo social europeu...

o euro é um escudo contra a crise...

a crise grega permitiu finalmente avançar para um governo económico europeu e para uma verdadeira solidariedade europeia...
... então, temos de conversar.


Amanhã. Encontro marcado.

8.9.10

não é um centauro, prezado autor: é o problema da agregação!


Sombras na caverna:
«Lembro-me de, em tempos mais heróicos, imaginar um centauro a dirigir a economia, provocando com a sua parte equídea toda a irracionalidade que é patente aos olhos de toda a gente.»
José Ames, no Persona

próteses

A ponte mais comum entre o natural (o que não fomos nós que fizemos) e o artificial (o que fomos nós, ou alguém por nós, a fazer) são as próteses. A ponte liga o lado de cá, de onde queremos sair (o corpo herdado e os seus caminhos que nada nos perguntam se queremos) com o lado de lá, para onde queremos ir (segundo as nossas necessidades percepcionadas, ou segundo a nossa imaginação desejante). Podemos querer realizar o sonho de Ícaro - ou podemos querer uma alma toda nova. Montados nas próteses, o calor do sol é o nosso limite. Tal como Ícaro aprendeu, contudo, tarde de mais... Pois.


Mock - up, 1985_web.gif

Panamarenko, Mock-up, 1985

Giant Steps


Roubado ao Tiago Tibúrcio, com o devido respeito.


7.9.10

no dia em que Barroso fez o discurso do estado da União


Foi a 2 de Outubro de 2004:
«Parece que estamos a ter dificuldade em perceber que acabou o velho consenso europeu entre PS e PSD. A deriva neoliberal passa hoje, em grande parte, pelas opções que se fazem nas instituições europeias - e isso só vai piorar com Durão Barroso na presidência da Comissão. É preciso que o projecto europeu do PS não se confunda com o projecto europeu do PSD. Até porque por aí passa também uma batalha essencial com outras formações que se sentam do lado esquerdo no Parlamento.»
Trata-se de um excerto da intervenção no encerramento do debate das moções globais ao XIV Congresso Nacional do PS, em Guimarães. Da minha intervenção, como primeiro subscritor da moção "Uma Esquerda com Raízes e com Futuro". Antes deste governo, antes do governo anterior, naquele congresso em que JS chegou à liderança do PS.

entre irmãos


Brothers.

Para quem ainda não percebeu o que são as famílias reais no mundo real - no mundo real há de tudo - vem a propósito este filme. (De qualquer modo, se ainda não percebeu o mundo das famílias é porque nunca se deu ao trabalho de ler Agustina.) Um filme com um pouco de Afeganistão a mais (já se sabe o que aquelas coisas são, não era preciso mostrar em extensão, bastava sugerir ou deixar adivinhar), mas com a dose certa do que a contingência faz às pessoas. Incluindo o que as contingências felizes fazem de complicado às pessoas.
Podemos, se soubermos tirar dali uma lição, chegar a pensar como é tolo querer cortar a direito com os sentimentos das pessoas. Falamos do amor. O pai da jovem família, regressado da morte suposta, acha que está no seu direito, acha que só quer o que é seu, acha que o seu sofrimento e o seu amor o justificam na reivindicação. Nesses pergaminhos assenta a reivindicação violenta, para a qual não interessa muito se tem ou não as suas razões. Aliás, o facto de a reivindicação ser violenta, ao dar-se tacitamente por condenável (excessiva), dispensa o espectador de um juízo mais explícito acerca da própria reivindicação. Aquela violência é patológica, está resolvido o problema; se a violência fosse ao correr do pêlo dos dias calmos, a violência da posse pelo estatuto do adquirido, talvez fosse menos "extraordinário" e se entranhasse mais nas (des)aceitações do espectador.
O filme, acabando com o marido aparentemente a aceitar que o problema está do seu lado, deixa tudo em aberto. O trio dos dois irmãos com Grace não está, no essencial, resolvido. O irmão/cunhado/tio continua lá e o passado (que um amor novo estava a nascer em cima de um amor antigo que nunca tinha morrido) não se apaga. O pai/irmão/marido talvez possa aceitar, depois de curada a ferida da guerra - mas isso não é certo: nada nos garante que não vai, pelos séculos dos séculos, persistir uma luta pela posse. E, na luta pela posse, os factos da vida são pecados que os possuidores querem varrer da face da Terra por todos os meios. Mesmo que isso corte uns raminhos na alma dos possuídos.
Será mesmo verdade que ninguém quer nas suas terras árvores plantadas pelos vizinhos? Coisas de família, menos rendilhadas do que literatura portuense, mas a cumprir a incessante repetição do mesmo quase diferente.



6.9.10

philosophy TV



Coisas a bisbilhotar. (Clicar na imagem para ir...)








já não sei bem quem é Cavaco


"É fundamental falar verdade aos portugueses, porque falando verdade aos portugueses eles têm comportamentos que são consistentes com os objectivos que queremos alcançar", afirmou Cavaco Silva.

Costumo fazer críticas políticas ao comportamento de Cavaco. E também costumo fazer uma crítica de carácter: acho-o manhoso, hipócrita consciente (como resultado de uma escolha de estilo que visa certos objectivos políticos). Acho que nunca o achei tonto ou mal informado. Mas dou por mim, de repente, a hesitar.
Aquela afirmação acima, do ponto de vista das ciências da economia ou da sociedade, diz respeito ao que se pode chamar "o problema da agregação": como é que uma multiplicidade de comportamentos individuais desaguam num dado comportamento (ou resultado) colectivo. É um problema complexo, ao qual é no mínimo ingénuo dar a resposta "eu sei como se resolve". Cavaco comete essa ingenuidade: se encharcarmos de informação os indivíduos, eles vão pelos nossos objectivos. Mas "nossos", de quem? Temos todos os mesmos objectivos? Pensamos todos pela mesma cabeça (qual cabeça)? Basta estarmos "bem informados" para produzirmos um resultado harmonioso para todos apesar dos interesses diferentes? E como é que podemos "encharcar-nos" de informação? Na medida da complexidade destas questões, a afirmação de Cavaco é ignorância em estado puro. Para um antigo professor universitário em Economia, é grave.
Bom, podemos sempre voltar à hipótese original: não é impreparação, é pura manha e hipocrisia. O que será, digam-me lá, se fazem o favor.

5.9.10

porque hoje é domingo


Dêem lá uma espreitadela ao sítio da 1ª Conferência Católica sobre Geocentrismo. (Galileu estava errado.) Anual!
(via Palmira F. Silva)

Para que se saiba que por vezes a véspera foi um dia melhor:

4.9.10

leituras


Aqui não se lê a mente. Lê-se o pensamento. Quando ele é dado à escrita.

Poder público e poder privado, em As Minhas Leituras. Para quem aceite dar-se ao trabalho de pensar.

para mal dos nossos pecados


O terramoto de Lisboa, em 1755, não abalou apenas a cidade. Abalou também o pensamento.
Os que acreditavam no significado moral das coisas da natureza encararam os acontecimentos como castigo divino pelos pecados dos lisboetas e outros que aqui partilhavam a grandeza, a riqueza e o brilho do melhor que havia no mundo.
O Marquês de Pombal não estava virado para essas ilusões: achava que preciso era deitar mãos à obra, "enterrar os mortos e alimentar os vivos", aproveitar a oportunidade para refazer a urbe.
Os ideólogos de serviço, que sempre estão à espreita, sopravam noutra direcção. Os boatos de que o terremoto se repetiria num aniversário do primeiro "castigo divino", e então de forma mais determinante, iam no sentido de confirmar a interpretação moral do facto natural. Os jesuítas foram considerados responsáveis pelo boato e pela tese - que o padre Malagrida corporizou, desafiando numa série de sermões o intento prático do Marquês primeiro-ministro. Pretendia Malagrida que a reconstrução era um assunto banal, que não devia distrair os portugueses do assunto realmente interessante, que era o arrependimento dos seus pecados. Em hora tão fatídica, construir e distribuir não eram as prioridades relevantes, mas antes jejuns e flagelos.
Malagrida deu-se mal com a teoria, tendo sido condenado e morto.
Mas na capital do reino continuam a montar acampamento muitos que têm o mesmo sentido das prioridades do padre Malagrida. Para mal dos nossos pecados.

3.9.10

Durão Barroso combate a crise


A política de comunicação da Comissão Europeia, liderada pelo português Durão Barroso, vai sofrer alterações.
Acrescenta o Diário Económico: «O papel principal é para Durão Barroso, com fotógrafos a segui-lo 24 horas, produtores de televisão para criarem conteúdos em que o presidente da Comissão Europeia seja o protagonista, convites a jornalistas para acompanharem as suas viagens.»

Ainda bem que temos um presidente da Comissão Europeia a falar português: assim percebemos melhor a estratégia dele para combater a crise.

música e neurociências, Damásio e Yo-Yo Ma


Para os mais atentos, é uma notícia velha. Mas eu não sou dos mais atentos.
«O compositor norte-americano Bruce Adolphe convidou o neurocientista português António Damásio e o violoncelista de origem chinesa Yo-Yo Ma para participarem na produção de uma peça musical multimédia sobre a evolução da consciência.» (Ciência Hoje)
A peça chama-se "Self Comes to Mind" e vai também ser título de livro do neurocientista. Antonio Damasio's new book, Self Comes to Mind, will be published by Pantheon on November 9, 2010.
Pelo que se pode ler, a combinação de música e ciência (e das imagens do cérebro com que Damásio já trabalha normalmente) não foi mero exercício de retórica. A experiência fenomenológica da música é uma das que tendemos a considerar mais sublimes - e mais uma das que não são fáceis de explicar a sério. Algo sobre isso aqui. Uma das coisas interessantes no método de Damásio é que, contrariamente a outros que acham que só é mesmo científico estudar o funcionamento do cérebro propriamente dito, ele cruza a observação exterior do cérebro (com toda aquela parafernália de máquinas para captar imagens do seu funcionamento) com "observação interior": testemunhos de pessoas que vivem situações de desfuncionalidade e relatam o que sentem e pensam na primeira pessoa.

Enquanto esperamos pelo próximo livro de Damásio, damos-lhe a ouvir a música. Composta por Bruce Adolphe, "Self Comes to Mind" é baseada num texto de António Damásio e desenvolve-se em três andamentos:
1. When Mind First in the Body Bloomed
2. Self Came to Mind
3. Discovery

Não é muito elegante a inserção que conseguimos fazer, mas pode ouvir aqui cada um dos movimentos separadamente.





vomitório


Casa Pia, em dia de leitura de acórdão. Dando umas voltas breves pela blogosfera, verifico que está tudo na mesma. Há muito porco a chafurdar, não sei se para ganhar audiências ou para ganhar votos. Escribas a quem nada interessa a justiça, mas o circo. E que se esforçam para venderem alguns dos bilhetes que fabricaram em casa. Devem chamar a isso liberdade. Justiça não chamam certamente, já que se a justiça fosse como eles a praticam, eles já teriam provado a receita há muito tempo. Ponto final sobre o chiqueiro.
Já quanto ao que se passa no tribunal: estranho seria que tanto miúdo tivesse sido rebentado e ninguém fosse condenado. Mas isso não quer dizer, só por si, que os que deviam ser condenados sejam os que se sentaram lá no banco dos acusados. Disso não sei. Eu até vivo perto do Parque e garanto-vos que não é preciso ver tudo para saber que o que vemos já é demais.


o sr. Fernandes, um justiceiro que defende os justiceiros


José Manuel Fernandes volta hoje, no Público, ao assunto do jornalista Cerejo se ter constituído assistente no processo Freeport e continuar a escrever peças jornalísticas sobre o caso.
(Uma nota lateral. O senhor Cerejo, numa das últimas edições, investia, com a raiva espumante que se conhece dos seus escritos, contra um advogado que o criticou severamente por aquela "assistência". Nessa "peça", o senhor Cerejo notava a extrema simpatia da direcção do jornal em deixar o tal advogado escrever a criticar um jornalista da casa. Já que o senhor Cerejo escrevesse opinião no seu próprio jornal, era um direito adquirido (estava implícito na prosa). Agora que o senhor Fernandes escreve a defender o senhor Cerejo, sempre estou para ver se o senhor Cerejo continua a debitar graçolas sobre a caridade extrema da direcção do jornal em o deixar lá escrever. Só para ver se se confirma que o senhor Cerejo vê aquilo como a sua leira, com desagrado por ir lá quem o questione. Ponto final na nota lateral.)
José Manuel Fernandes acusa de quererem atentar contra a liberdade de informação aqueles que não acham bem que um jornalista manipule um instituto judicial (o de assistente no processo) para ter melhor acesso ao sumo do mesmo (processo). E alonga-se numa lengalenga sobre o interesse público. JMF não percebeu o que escreveu o advogado que opinou contra a salgalhada do assistente-às-vezes-e-outras-vezes-jornalista, naquele ponto em que denunciava a visão "A Bem da Nação" que certos jornalistas têm do interesse público. Confirma-se que JMF também partilha essa noção: em nome do interesse público, vale tudo.
Não está em causa que o "interesse público" tenha de ser interpretado por muitos; agir pelo interesse público não pode estar dependente de uma "Autoridade Nacional para o Interesse Público", já que nesse caso tornar-se-ia um "interesse do quem governa". Mas o que se exige é que se perceba esta coisa simples: num Estado de Direito é preciso respeitar os mecanismos, não misturar tudo. Misturar tudo é, por exemplo, um jornalista manipular os mecanismos da justiça para objectivos exteriores ao funcionamento da justiça. Essa visão "vale tudo por aquilo que nós invocamos como interesse público" é o próprio cerne dos regimes totalitários. O Estado de Direito vai por partes, para se poder garantir que se cumpram as regras. Estes jornalistas armados em deuses da justiça acham que, armados com a invocação do interesse público, estão livres para usar todos os meios a que possam deitar mão. Mesmo que isso implique "torcer" os mecanismos legais. Esse é o tal espírito do velho "A Bem da Nação": desde que seja para defender a sua visão do "bem", tudo se permitem a si mesmos.
Perigosos, esse defensores do bem.

quem vai à pesca dá e leva


Recado de Laurentino a Madaíl: “A boa liderança não se faz com piloto automático”. E mais escreve o Público: "O secretário de Estado da Juventude e Desporto, Laurentino Dias, saiu nesta quinta-feira em defesa da Autoridade Antidopagem de Portugal (Adop), afirmando que concorda com a suspensão de seis meses aplicada ao seleccionador Carlos Queiroz, e deixou ainda um recado a Gilberto Madaíl, presidente da Federação Portuguesa de Futebol."

O "caso Queiroz" é coisa de que não percebo nada. Nem quero. Mas certo certo é que não me cheira nada bem que um membro do governo tenha de andar a concordar ou a discordar com sentenças de "justiças" que por aí andam, mesmo que sejam "justiças desportivas". É que, em casos destes, começam os ditados populares a baralharem-se-me na cabeça e fico conturbado. Ou com turbante, ou lá o que é.


2.9.10

a política do ódio


A direita da direita americana não engana: é puro lixo. Especialista na política do ódio. Este anúncio, misturando o ataque às torres gémeas, oposição a Obama, fundamentalista anti-islâmico, guerra de religião, é um exemplo claro. Como de costume, falam em nome do povo. Não é só lá, claro.



definições


Evelyn de Morgan, Night and Sleep (1879

Muitas vezes dar definições é um exercício de arrogância intelectual (dar as leis do mundo por palavras, quando o mundo muda de formas diferentes das palavras, e as relações entre as mudanças do mundo e as mudanças das palavras seguem caminhos obscuros). Outras vezes, dar definições é um exercício de humildade (é como dizer "eu vejo as coisas assim, podem começar a encontrar os buracos na minha ideia".) Mas há definições realmente estimulantes.

Esta, que não é nova, encontrei-a perdida na sinopse de um livro sobre a escola pós-keynesiana em economia. A dita sinopse é de Paul Davidson. E a dita definição reza como segue.


«O tempo é um dispositivo que impede que tudo aconteça de uma vez.»