31.10.07

blog em palco

Flock (in “The Arrival”, desenhado por Shaun Tan)


Imigrantes.
Teatro.
Blogue.
Interactividade.
Blog em palco.

Cristina Elias, uma imigrante em Portugal, fotógrafa-e-contadora-de-histórias-e-militante-suave-de-causas-fortes-e-criadora-de-laços-com-outras-vidas-e-outras-coisas, naqueles rasgões do tempo em que a arte finta o quotidiano dos trabalhos de ganhar a vida montou a exposição “Passagens de Lisboa”, que esteve patente entre Setembro de 2006 e Janeiro de 2007, onde vimos fotografias iluminadas por histórias de mulheres imigrantes.

Natasha Marjanovic, nascida na Bósnia Herzegovina, mulher- de- teatro-que- escreve-encena-e-representa, e que há vários anos faz de Portugal o seu palco, e de quem pudemos ver em palco a representação do que é aterrar aqui vinda de um país que já não existia (Jugoslávia), e que assim ajuda alguns a compreender o que é isso de andar pelo mundo e que assim ajuda que se saiba como isso é enriquecedor e não uma ameaça.

E além destas, outras. E outros. Andam a ensaiar uma peça de teatro à vista do mundo. A peça chama-se “Há mar em Lisboa” e anda a ser construída e ensaiada de forma interactiva. Com o apoio de um blogue. Quer dizer: vamos lá, ao blog em palco, vemos o que eles relatam do que andam a fazer e damos sugestões. Isto é: se formos úteis ao projecto, e deixarmos algo que fixe a atenção deles e resista ao crivo do tempo, deixamos uma pegada na obra.

E depois, a 31 de Janeiro de 2008, às 22 horas em ponto, sem tirar nem pôr, na Music Box, vamos lá ver a estreia. E, com sorte, se tivermos deixado a tal pegada, estaremos também nós um pouco em palco. Pelo menos, mesmo se a nossa arte não der para tanto (a minha não dará, estou certo), estaremos a dar um sinal: o sinal de que gostamos de os cá ter, os imigrantes em Portugal, porque eles são parte deste país e da nossa alegria. Ou talvez até sejam por vezes parte das nossas tristezas, mas é assim a vida: ninguém deita fora os irmãos por eles às vezes nos fazerem chorar. Ou deitamos?

Descontadas as perguntas metafísicas, é ir lá. Ao blog em palco. Ler e atirar. Atirar ideias. Ou pedras, quem sabe. Tentar deixar uma marca na relva, mesmo sabendo que as marcas na relva são efémeras.

30.10.07

A Outra Margem


Há um travesti e as suas origens rurais que não são simpáticas à sua “orientação sexual”, como se diz em correctez (ou, como diz o pai do falecido marido do travesti, um “paneleiro do caralho”). Essa devia estar para ser a história principal, que é uma história sem grandes novidades, embora aqui contada com cuidado.
E depois há a história do Vasco, com Síndrome de Down, interpretado por Tomás Almeida. O Vasco é o sobrinho do travesti, mas não está nada preocupado com isso. Está é interessado em ter ganho um tio ao fim de tantos anos. E aí temos uma personagem que é uma pessoa bonita, interpretada por um actor que parece enormemente ser também uma pessoa bonita.
E temos uma história de uma sensibilidade arrasadora. Emocionante. Sem frases feitas. Ou quase. Para nós a cereja em cima do bolo foi, na sessão a que fomos, nos ter calhado estar lá, também como espectador, o Tomás Almeida. E termos podido mostrar-lhe o nosso apreço pelo seu trabalho.
Em verdade vos digo: não percam este filme – português! – por nada deste mundo. Por muito poucas estrelas que os críticos lhe concedam. Ah... é de Luís Filipe Rocha.

O verbo "absortar"

O Absorto fez-me há tempos, com a deferência que tem mostrado outras vezes, um convite.
A primeira vez que tentei estava à beira da minha longa estante de banda desenhada e a coisa abortou: mesmo que os álbuns de BD tivessem essas páginas todas (alguns têm, muitos não), era complicado reproduzir todas as imagens que, realmente, são a frase num livro de BD.
Depois fiquei a pensar que, afinal, para mim o acaso não me diz assim tanto para eu me ir entregar de mão beijada nas suas mãos.
E, depois ainda, andava a pensar que era tolice complicar tanto a coisa e que havia de encontrar maneira de responder ao Eduardo, que ele merece.
Contudo, leio hoje, com um dia de atraso, no hoje há conquilhas, amanhã não sabemos, este postal. E constato que as minhas dificuldades tinham um sentido, também na experiência de outros: dar tanto azo ao acaso é algo que só lá vai com muita preparação e artifício, verdadeiramente trocando as voltas ao aleatório, fugindo com toda a força ao sentido original do exercício. E, aí, está decidido: desculpa lá, Eduardo, mas desta passo. A minha tentativa de te responder, afinal, abortou.
Como o convite vinha do Absorto, digamos que "absortou".

A nova vida da Cibernética

Pedro U. Lima, Professor do Instituto Superior Técnico e Coordenador do Laboratório de Sistemas Inteligentes do Instituto de Sistemas e Robótica (Lisboa), publica no número de Outono da revista TRAJECTOS (do ISCTE) um texto com o título "A nova vida da cibernética". Trata-se de uma leitura (uma recensão) do meu livro A Cibernética. Onde os Reinos se Fundem. Aqui fica o texto, com os meus agradecimentos ao leitor altamente qualificado para o efeito que é o Professor Pedro Lima, bem como ao Professor José Rebelo, Director da TRAJECTOS.





Porfírio Silva, A Cibernética. Onde os Reinos se Fundem,

Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, Fevereiro de 2007



*** *** ***



Pedro U. Lima, "A nova vida da Cibernética", in Trajectos, 11, pp. 139-141



Os dias de hoje testemunham um regresso recorrente ao interesse por um dos temas que sempre fascinaram a Humanidade: os robôs e as máquinas inteligentes. Este renascer do entusiasmo pelas máquinas que demonstram um comportamento antropomórfico - na forma de andar, na capacidade de reconhecer e imitar gestos humanos, ou na capacidade de "raciocinar" e "aprender" - resulta da emergência de uma nova Robótica: a Robótica dos serviços, dos robôs que interagem com humanos e estendem as suas capacidades na exploração de planetas distantes, em tarefas de busca e salvamento, em afazeres domésticos (como aspirar ou cortar relva) ou em escritórios e hospitais – por oposição à velha Robótica Industrial.

Após a segunda revolução industrial da segunda metade do século XX, em que os manipuladores robóticos invadiram as fábricas, automatizando a produção e a montagem de automóveis, computadores, dispositivos electrónicos diversos, e mesmo de outros robôs, dessa forma fazendo explodir a produtividade, a Robótica pareceu adormecer à sombra do seu sucesso nessas aplicações. Faltava-lhe o toque de "inteligência" que lhe permitisse dar o passo seguinte: robôs parecidos com humanos, auxiliando-os nas tarefas do dia a dia e ajudando-os em tarefas difíceis e/ou perigosas, capazes de resolver situações inesperadas e exibindo comportamentos bem diferentes dos movimentos repetitivos dos seus primos industriais.

Muitos pensam que o nascimento da Inteligência Artificial (IA) na Conferência de Dartmouth, em 1956, foi o princípio da mudança que está a criar hoje um renovado interesse pelas casas inteligentes, pelos robôs humanóides, ou pelas redes de sensores distribuídos que detectam incêndios, intrusões ou simplesmente nos ajudam a ter uma melhor vida nas nossas casas. Em parte isso corresponde à verdade, mas até aos anos 80 a IA viveu algo divorciada do “corpo” das entidades inteligentes que pretende desenvolver, como se esse corpo não fosse importante e toda a inteligência se resumisse à manipulação dos símbolos, de uma forma desacoplada da realidade, assumindo que a tradução da realidade em símbolos seria uma trivialidade. Foi preciso enfrentar muitas adversidades e falhanços para que um investigador do meio, Rodney Brooks, levantasse a voz num artigo seminal, em 1984, e gritasse bem alto que o rei ia nu e que, sem levar em conta o seu corpo e o meio em que evoluíam, os robôs nunca seriam inteligentes. Brooks mostrou a importância da realação entre as medidas de características do meio envolvente, realizadas por sensores, e a capacidade de raciocinar de forma inteligente para resolver problemas, e advogou a necessidade de inspiração biológica para se construir sucessivas gerações de robôs que evoluam até atingir a inteligência humana.

O que muita gente não sabe ou pretende ignorar é que, antes do nascimento da IA, e muito antes do “grito do Ipiranga” de Brooks, um conjunto de investigadores falava já da importância de lidar com as incertezas do mundo, da inspiração biológica e da intersecção entre as comunicações e o controlo, como factores chave para o desenvolvimento de máquinas inteligentes. A disciplina que criaram tornou-se conhecida como Cibernética.

No seu livro "Cibernética - Onde os Reinos se Fundem", Porfírio Silva conta-nos a história dos primeiros anos deste movimento que tanto influenciou e influencia o pensamento dos investigadores das máquinas (quase) inteligentes dos nossos dias. A ideia da busca de uma similitude, ou de “um terreno partilhado” entre o artificial e o natural percorre todo o texto, a começar no prólogo e a desaguar na conclusão em aberto, onde se insinua que o aparecimento do computador digital, mais ou menos pela mesma altura em que nasceu a Cibernética, atrasou o desenvolvimento e a influência desta, ao incentivar o “facilitismo” de pensar o artificial como puramente simbólico e desligado do (ou pelo menos como sendo fácil de ligar ao) natural. O livro faz uma visita histórica comparada entre a evolução científica e tecnológica da área das máquinas inteligentes e o pensamento filosófico das respectivas épocas, deixando-nos no final a sensação de ter aqui acontecido um daqueles hiatos em que a História é fértil, devido ao qual uma disciplina que se adivinhava fértil e cheia de potencial, abriu as portas a outras abordagens menos frutuosas, ainda que mais populares, desaparecendo por umas décadas, para agora renascer das cinzas, por exemplo através da robótica evolucionista e colectiva.

O corpo principal do texto começa por referir dois artigos publicados em 1943 e considerados como fundadores da Cibernética: “Behavior, Purpose and Teleology”, de Rosenblueth, Wiener and Bigelow, e “A Logical Calculus of the Ideas Immanent in Nervous Activity”, de McCulloch e Pitts. O primeiro introduz, entre outras noções importantes, os conceitos de comportamento e de retroacção, tão relevantes no Controlo moderno. O segundo é o percursor da noção, hoje muito popular na literatura especializada, de rede neuronal, aqui interpretada como a versão artificial do que se passa no nosso cérebro, mas também como um modelo das funções lógicas implementadas pelas redes neuronais naturais que o constituem.

De seguida, ainda suportado em textos seminais, o livro detem-se sobre o ano de 1948, denominado como o “ano cibernético”. Este foi o ano em que Wiener publicou o livro que deu o nome ao movimento cibernético, em que Von Neuman apresentou uma comunicação ao Simpósio Hixon, na qual compara a estrutura do computador digital à do cérebro humano e onde fala de autómatos auto-reprodutores, e em que Claude Shannon publicou o artigo em que descreve a sua Teoria Matemática da Comunicação e da Informação. Embora o autor desvalorize, logo na Introdução, a definição da Cibernética como estudo da organização de sistemas complexos, com fortes componentes provenientes das teorias matemáticas do Controlo e da Comunicação, essa é a faceta da disciplina que me parece mais relevante. Os textos de Wiener e Shannon são responsáveis pela criação de uma visão, ainda hoje tão actual e revolucionária, abrangente das comunicações e controlo, que permite modelar, analisar e sintetizar sistemas representativos de áreas aparentemente tão distintas como uma máquina eléctrica, a economia de um país, a relação predador-presa ou o organismo humano. Essa visão foi muitas vezes, nos anos que se seguiram, sujeita a perspectivas reducionistas, como por exemplo a dos chamados “fundamentalistas do controlo”, para quem qualquer sistema não descritível por equações diferenciais não deveria mais ser considerado interessante do ponto de vista da teoria matemática do controlo. Mas foi também responsável por resultados de grande interesse, como o uso da entropia como medida universal da incerteza presente nas leituras de características do meio envolvente pelos sensores de um robô, na noção que um robô móvel tem da sua localização, ou na confiança que apresenta numa potencial decisão que tenha que tomar. Hoje, uma nova geração de cientistas recusa identificar-se só com o Controlo, ou só com as Comunicações, ou só com a IA, para se ver antes como os representantes de uma nova disciplina que engloba todas essas e mais algumas contribuições, provenientes das Neurociências, Biologia e Psicologia. São esses os novos cibernéticos, e certamente descendem das sementes lançadas por Wiener e Shannon.

O resto do texto incide em grande parte sobre a descrição detalhada de diversos debates ocorridos ao longo das duas séries das 10 conferências Macy que, entre 1946 e 1953, foram o cadinho onde a Cibernética se fertilizou. Por terem decorrido nos EUA e por envolverem predominantemente investigadores americanos, poderiam os leitores ficar com a impressão que a Cibernética é exclusiva do pensamento americano, mas Porfírio Silva mostra-nos que assim não é, ao viajar pela Cibernética na Europa, nomeadamente através dos trabalhos de de Latil e Ashby, e de uma breve referência, infelizmente não detalhada mais tarde, à Cibernética nas ex-URSS e RDA.

Se algo distingue fortemente a Cibernética dos primeiros anos da IA é o encorpamento da maioria dos conceitos introduzidos. Por esse motivo, falar da Cibernética sem falar nas máquinas que os seus intervenientes desenvolveram ao longo dos tempos seria uma falha importante. Porfírio Silva não descura esse aspecto e dedica um capítulo a exemplos notáveis de máquinas cibernéticas, como o rato no labirinto de Shannon, o homeostato de Ashby e a “tartaruga” de Grey Walter. A título de exemplo, gostaria de realçar que o primeiro é ainda hoje o paradigma usado para ensinar os fundamentos da aprendizagem por reforço, uma das mais populares técnicas de aprendizagem na Robótica dos nossos dias, enquanto a “Machina Speculatrix” de Walter continua a fazer inveja a muitos dos robôs contemporâneos, e a servir de modelo à actual excitação com robôs bio-inspirados.

Porfírio Silva poderá não ser um autor popular, mas não é seguramente um autor qualquer. Autor ou coordenador de 4 livros e diversos artigos, ocupou ainda posições relevantes em diversas organizações nacionais e internacionais, incluindo funções ligadas à representação do Estado português junto da União Europeia, pontos mais destacados de um curriculum vitae que denota a sua maturidade e ecletismo, e ao qual se deverá em breve juntar um doutoramento em Filosofia da Ciência que gira em torno de uma perspectiva histórica das Ciências do Artificial, realizada em paralelo com a evolução das correntes filosóficas das respectivas épocas. É admirável a abrangência do seu conhecimento e a correcção técnica com que aborda temas em áreas como a electrónica digital, o hardware e software dos computadores digitais, ou mesmo a Teoria Matemática da Informação, se pensarmos que a sua formação é proveniente de áreas bem diversas, ligadas à Filosofia. É esta abrangência que torna o livro tão interessante e acessível, mesmo a leigos. A sua leitura permite compreender melhor a actualidade do pensamento e da investigação em máquinas artificiais que emulam organismos naturais, e as suas raízes num movimento tão importante como foi o movimento cibernético, que por alguns anos foi esquecido mas que regressa agora com promessas sólidas de estarmos no bom caminho para construir as verdadeiras Máquinas Inteligentes.

27.10.07

"Um filósofo entre engenheiros para humanizar os robôs"


Suplemento "Gente" do Diário de Notícias de hoje, página 9.
Perguntas...
Será mesmo?
Não será para os robots humanizarem os humanos?
Ou para os engenheiros humanizarem os filósofos?

26.10.07

Futebol de mercado

A ideologia de que os mecanismos de mercado servem para tudo está muito espalhada. Também está muito presente a ideia de que ao Estado tudo se pode pedir, mesmo coisas que nenhuma outra organização acha aconselhável para si própria. (Como dizia o ministro das finanças há pouco tempo, nenhum dos empresários que sugerem que o Estado devia despedir 25% dos funcionários públicos alguma vez se meteria na via de despedir um quarto dos seus funcionários.) Acho que chegou a hora de começar a sugerir certas coisas a outros actores desta peça gigantesca.

O que temos a propor é um mecanismo de mercado para nomeação dos árbitros de futebol ao estilo “mercado livre”. Então:


(1) Qualquer indivíduo maior e vacinado se poderia intitular árbitro e inscrever-se numa lista pública de pessoas disponíveis para arbitrar jogos da Liga (chamamos Liga sem especificações, porque o mecanismo poderia ter tantas instâncias quantas as ligas existentes). Faz-se assim a vontade aos que acham que impôr qualificações mínimas a certas profissões é uma intromissão de alguma forma de Estado na vida privada dos cidadãos, das empresas ou da “sociedade civil”.

(2) Depois de divulgado o calendário de jogos para uma época começava o processo de contratar árbitros para cada encontro. Os dois clubes implicados em cada encontro tinham de contratar, por mútuo acordo, um árbitro para esse jogo (simplificamos: chamamos árbitro a uma equipa de árbitros). O acordo haveria de incluir os custos da operação e a repartição desses custos pelos interessados. Faz-se assim a vontade aos que pensam que todos os valores se pagam em dinheiro e que o único critério útil para um serviço é a satisfação (imediata?) das partes.

(3) Os clubes podiam contratar árbitros com a antecedência que quisessem: podiam resolver um jogo de cada vez ou fazer as contratações de árbitros para toda a época. Os primeiros a contratar tinham maior margem de escolha, por estarem ainda mais árbitros disponíveis – mas podia haver vantagens em esperar para ver como se comportavam certos árbitros. Os jogos para os quais não houvesse árbitros disponíveis não se realizariam e pontuariam como derrota para ambos os clubes. Há aí um risco, mas também um potencial: se o mercado de trabalho dos árbitros fosse livre, isso poderia criar emprego. Há uma série de pessoas com qualificações superiores em filosofia e psicologia que podiam passar à arbitragem de futebol.

(4) Aquilo a que hoje se chama “comprar o árbitro” seria completamente integrado na nova modalidade: apenas seria exigível que os dois oponentes num jogo concordassem nos termos da compra. Seria assim aplicada a ideia de que “tudo está bem quando as partes interessadas concordam”. Isto daria satisfação aos que pensam que a verdadeira moralidade é que a moralidade seja reconduzida aos mecanismos de mercado.

(5) Qualquer mecanismo de nomeação oficial de árbitros seria abolida, fazendo assim sonhar com novos voos aqueles para quem as instituições são sempre uma espécie de resquício do estalinismo.

(6) “Novos voos” seria, por exemplo, dar os seguintes passos: acabar com os órgãos de gestão do futebol, criar um campeonato espontâneo, aplicar o mesmo mecanismo de contratação de árbitros a outro aspecto a que os dois adversários num encontro são sensíveis: a compra do resultado. Se as duas equipas que se confrontam num jogo pudessem acordar o respectivo resultado, nem seria preciso jogar. E todos podiam fazer o mesmo com todos os outros, portanto seria justo e transparente. Então, porque não?

Admito que este esquema ainda está um bocadinho verde. Mas pode ser refinado. E traria mais mercado à sociedade. Seria o futebol de mercado. Não é isso que alguns parecem querer para todos os aspectos da nossa vida comum?

A autoridade moral da natureza (6/6)

Friedrich von Hayek, o economista vienense nascido em 1899 e que foi prémio Nobel em 1974, publicou em 1952 um texto sobre Scientism and the study of Society (que lemos na versão francesa indicada abaixo) onde analisa o fascínio das “ciências da sociedade” pelas “ciências da natureza”. O que temos vindo a abordar como “autoridade moral da natureza” é um exemplo desse fascínio, pelo menos quando vem dentro do embrulho de “ciência”.


Hayek esclarece: ele não está contra a ciência, está contra um processo que consiste basicamente em duas operações: primeiro, uma forma dogmática de delimitar o que é ciência; depois, pretender que todos os ramos da ciência tenham que se conformar aos métodos da “verdadeira ciência”. Isto tem querido dizer, nomeadamente, que as ciências da sociedade (por exemplo a economia) só são científicas quando empregam os mesmos métodos das ciências da natureza (física, por exemplo).


Logo no primeiro capítulo do mencionado trabalho, Hayek lembra como se passou de uma concepção lata de ciência, em que não havia uma distinção estrita (nem estreita) entre filosofia e ciência, para uma concepção “técnica” e separatista. Dá exemplos de obras científicas de antes do cisma: “New System of Chemical Philosophy”, de J. Dalton (1809); “Philosophie zoologique”, de Lamarck (1809); “Philosophie chimique”, de Fourcroy (1806). Depois de 1831, quando se formou a British Association for the Advancement of Science, nunca deixou de ganhar peso o uso estreito do termo ciência, eliminando o anterior uso de chamar “filosófica” a uma investigação que se interessasse pelos aspectos fundamentais e mais gerais de um assunto que se procurava conhecer.


Ora, é precisamente nesse movimento, que acontece na primeira metade do século XIX, que se dá uma restrição dos modelos do que se considera ciência, colocando no pedestal as disciplinas físicas e biológicas. E é nessa vaga que as ciências da sociedade pensam que têm de conquistar a sua legitimidade por imitação das ciências naturais. Segundo Hayek, a imitação metodológica das ciências naturais pelas ciências da sociedade não deu resultados interessantes: não contribuiu grande coisa para o conhecimento dos fenómenos sociais. Hayek, polémico, afirma mesmo que aqueles que historicamente defenderam visões dogmáticas das ciências, como Francis Bacon ou Auguste Comte, não deixaram de ser exemplos de quão falível era a sua ortodoxia cientista: Francis Bacon (que alguém considerou o protótipo do “demagogo da ciência”) opôs-se à astronomia copernicana e Comte considerava perniciosa a observação pelo microscópio.


Assim, Hayek, um economista que sempre se opôs às tendências de outros “neoclássicos” para a “física social”, depende a necessidade de que o estudo da sociedade respeite o seu objecto e não o confunda com os objectos naturais, onde não há “autonomia das partículas” como ela existe nas sociedades humanas (por muito relativa que seja essa autonomia).


REFERÊNCIA

Friedrich von Hayek, Scientisme et Sciences Sociales, Paris, Plon, 1956 (tradução de Raymond Barre)

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Apontamentos anteriores desta série:

A autoridade moral da natureza (5/6)

A autoridade moral da natureza (4/6)

A autoridade moral da natureza (3/6)

A autoridade moral da natureza (2/6)

A autoridade moral da natureza (1/6)

25.10.07

Lisboa terra de harmonia

O blogue Inclusão e Cidadania tem lá agora (há dias, já) um postal que devia ser lido e meditado. Tem por título, precisamente, Lisboa terra de harmonia. O seu autor sabe do que fala, por razões que compreenderá quem por lá for visitá-lo.

Argumentos relativos à conveniência de um referendo ao tratado reformador


(Clicar para aumentar. Cartoon de Marc S.)


O NOVO TRATADO.

Tratado Reformador.

Artigo 1.

O Tratado Constitucional é por esta via esfrangalhado.(1)

(1) Excepto nos elementos que constam no documento .... (*)

(*) Conferir também os protocolos anexos.

24.10.07

23.10.07

Les nuances de la langue française

Esta posta só serve para quem compreenda um bocadinho de francês. Lamento... mas vale a pena!



(Clicar para aumentar. Cartoon de Marc S.)

22.10.07

A autoridade moral da natureza (5/6)

O episódio relatado por (Allen 2004) é significativo da importância atribuída por autoridades políticas à possibilidade de se socorrerem da autoridade da natureza em matéria social. Allen procura explicar as razões pelas quais, em 1740, foi queimado publicamente em Paris, pelo carrasco oficial, o livro de Bernard Mandeville, The Fable of the Bees, por ocasião da publicação da primeira versão francesa.



O recurso à figura do enxame de abelhas permite à imaginação um ponto de Arquimedes para extravasar dos limites da situação humana em que nos encontramos e contemplar uma “sociedade” como um todo, como se víssemos de uma só vez todas as acções e o seu resultado, fora do constrangimento de estarmos nós mesmos imersos nas interacções. Nesse quadro, a imagem tradicional das abelhas servia para justificar o conceito de ordem, de forma independente (antecedente) da vontade humana, de forma a fazer aceitar que a ordem política e social satisfaz objectivos funcionais que não se sujeitam aos objectivos dos indivíduos. É que o enxame de abelhas, com a sua divisão de trabalho, oferece um modelo de diferenciação social que muitos ao longo de séculos transpuseram para as classes sociais como ordem. Assim, a ideia de ordem aparece, não como uma invenção humana, mas como algo que deriva da própria natureza: o que “é” vem assim legitimar o que “deve ser”.



Ora, a obra de Mandeville, cuja subtítulo era Private Vices, Public Benefits, apresenta uma tese completamente diversa. Segundo Mandeville, que muitos consideram um proto-Adam Smith, os vícios privados podem resultar claramente vantajosos para a comunidade se forem geridos de forma habilidosa por políticos competentes: o vício do bêbado é que dá emprego ao empregado e ao dono da taberna, ao comerciante de vinhos e ao agricultor. Em geral, são os vícios dos humanos – os seus apetites e tudo o que fazem para os satisfazer – que alimentam o trabalho e a riqueza das sociedades. A tese da Mandeville invalida o uso da “natureza” – em particular da imagem da “sociedade” de abelhas – para legitimar certas construções morais e políticas. Para ele, não há outro fundamento para a ordem social que não seja a procura do bem-estar (económico), a satisfação egoísta dos apetites. Estas teses de Mandeville contrariam uma série de teorias morais que apelavam à natureza como fundamento. Contraria a ideia de que os humanos, sendo naturalmente racionais, devem usar a razão para dominar os seus apetites e alcançar a virtude. Contraria também a ideia de que os humanos são naturalmente virtuosos.



Para Mandeville, a construção da autoridade moral ou política assenta na produção do esquecimento da distinção entre educação e natureza. O esquecimento transforma o “dever ser” em “é”, em dois sentidos. Por um lado, por habituação, as normas culturais que definem o “dever ser” acabam por transformar-se no “é” das práticas efectivas. Por outro lado, se os moralistas conseguem fazer aceitar as suas prescrições como baseadas na própria natureza, o que se aceita como o “é” da natureza aceita-se como o “dever ser” moral. Mas esse processo é, no seu conjunto, uma construção social.



Não é, pois, de espantar a queima censória da obra de Mandeville. A perturbação causada pelas suas teses anti-naturalistas evidencia a importância da “naturalização” das regras sociais como meio de realizar um certo tipo de ordem política.



REFERÊNCIAS

(Daston e Vidal 2004a) DASTON, Lorraine e VIDAL, Fernando (eds.), The Moral Authority of Nature, Chicago, The University of Chicago Press, 2004

(Allen 2004) ALLEN, Danielle, “Burning The Fable of the Bees: The Incendiary Authority of Nature”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 74-99



Matthias Merian, Alchemist following Nature's fooprints.
Ilustração in Atalanta fugiens, 1617

(clicar para aumentar)






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Apontamentos anteriores desta série:


A autoridade moral da natureza (4/6)


A autoridade moral da natureza (3/6)


A autoridade moral da natureza (2/6)


A autoridade moral da natureza (1/6)

19.10.07

A autoridade moral da natureza (4/6)

Um domínio de problemas que de forma recorrente se tentou iluminar apelando aos ditames da natureza é o que diz respeito à própria organização da sociedade. Tratando do sempre renovado fascínio pelos insectos sociais, tais como formigas, abelhas, vespas e térmitas, (Lustig 2004) evoca Auguste Forel (1848-1931), que considerava que as formigas eram “socialistas por natureza”: motivadas por instintos sociais igualitários e impessoais, desenvolvendo as suas sociedades com base na acumulação de recursos e na divisão do trabalho. Segundo Forel, as colónias de formigas são uma utopia tornada possível pela natureza de cada uma das formigas, tratando cada uma das outras apenas em função da sua utilidade para a comunidade, sem chefes – o que já não seria possível com a natureza humana, demasiado provida de sentido da individualidade. Desse modo, a receita para melhorar a humanidade seria tornar os humanos naturalmente mais parecidos com as formigas – porque, entendia Forel, é na natureza das unidades que se decide a natureza do colectivo.

REFERÊNCIAS

(Daston e Vidal 2004a) DASTON, Lorraine e VIDAL, Fernando (eds.), The Moral Authority of Nature, Chicago, The University of Chicago Press, 2004

(Lustig 2004) LUSTIG, A.J., “Ants and the Nature of Nature in Auguste Forel, Eric Wasmann, and William Morton Wheeler”, in (Daston e Vidal 2004a), pp.282-307



Ilustração de Mémoires pour servir à l'histoire des insectes (tomo V),
de M. de Reaumur, Paris, 1740





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Apontamentos anteriores desta série:

A autoridade moral da natureza (3/6)


A autoridade moral da natureza (2/6)


A autoridade moral da natureza (1/6)

Uma alfacinha em Paris

Foto de Uma alfacinha em Paris

Paris, por olhos que a sabem ver, por pés que a sabem calcorrear. Ide lá, ide.

18.10.07

Um mistério da divulgação científica em Portugal


Robert B. Laughlin é Prémio Nobel da Física (1998). Publicou em 2005 uma obra de divulgação onde aponta caminhos novos, filosoficamante inovadores, para o desenvolvimento das ciências. Uma obra simultaneamente profunda na suas implicações e relativamente fácil de ler. A obra intitula-se, no original em língua inglesa, A Different Universe.

Muito naturalmente seguiram-se inúmeras traduções: espanhol, italiano, coreano, japonês, alemão, francês.

E nós, falantes de língua portuguesa, não temos direito a nada? Nem esse monumento da divulgação científica que é a Gradiva nos salva?

Uma tempestade de confiança abriria talvez as portas da muralha

Descer o Douro, navegar por eclusas.
(Foto de Porfírio Silva. Outubro 2007. Clicar.)

17.10.07

Nova Casa

Então, desde ontem, comecei nova vida. No Instituto de Sistemas e Robótica, do Instituto Superior Técnico, da Universidade Técnica de Lisboa. Mesmo que possa parecer, não deixei a filosofia...

O CONSTRUTOR SOLNESS, de Henrik Ibsen...




... no Teatro da Cornucópia, com encenação Carlos Aladro, tendo Luis Miguel Cintra no papel de Halvard Solness, o construtor, e, no papel de Hilde, a demoníaca juventude, Beatriz Batarda.

Um choque de gigantes na vida: a luta entre a velhice, com ou sem sabedoria, e a juventude, promissora tanto como fautora de desastre. A luta entre as recordações que nos enredam nas angústias e nas alegrias, que nos empurram em frente, e os projectos um tanto tardios, que nos empurram para o alto – e , assim, para a queda.
Um choque de gigantes no palco: Cintra e Batarda, tanta força, tanta subtileza, tanto traço fino a par de tanta lava ardente – que tememos olhar os seus olhos no espelho que o autor, pela mão do encenador, às tantas coloca em palco para termos duas vistas da mesma paisagem espiritual ao mesmo tempo.
Imprescindível. Só até 4 de Novembro próximo.



16.10.07

A autoridade moral da natureza (3/6)

No que toca aos humanos, a “natureza” pode dizer respeito aos ditames que regem a espécie ou aos que regem um indivíduo. Falar da “natureza” de uma pessoa é falar de uma base fixa dessa mesma pessoa ao nível físico: um conjunto de aptidões e inclinações que determinam as suas capacidades.


(Groebner 2004) refere que os textos de Galeno, que a partir do século XIII influenciaram a medicina europeia, ensinavam que as criaturas vivas eram compostas de qualidades (quente, frio, húmido, seco) e que os seus comentadores medievais usavam o termo complexio para descrever as misturas dessas qualidades (activas ou passivas) que determinavam quer a natureza da espécie quer a natureza do indivíduo. Era dos “humores naturais” do indivíduo, bem como da relação entre os líquidos do corpo e as qualidades dos planetas descritas pela astrologia, que dependia o respectivo comportamento, aparência, disposição, numa infinidade de combinações possíveis. Daí a importância do estudo da fisionomia, que se considerava reveladora da constituição interna. A partir do século XVI, contudo, o sentido de complexio desloca-se para se tornar mais representativa da natureza do grupo (raça), através das características exteriores (como a cor da pele).

No tocante ao problema da natureza dos humanos como espécie, é interessante notar, com (Schiebinger 2004), momentos de questionamento da própria unidade desse grupo natural. Schiebinger lembra episódios históricos (século XVIII) relativos aos testes de novos medicamentos ou novos tratamentos. Esses testes eram realizados para garantir que os seus efeitos não seriam mais prejudiciais do que benéficos. Ora, testar um novo fármaco num grupo de escravos ou de mulheres só daria resultados relevantes para outros grupos se a constituição natural do grupo de teste e dos outros grupos fosse similar. Se a “natureza” do escravo ou da mulher diferisse da do homem branco, o resultado do teste podia não ser transponível. Épocas houve em que a diferença de sexo era considerada relevante nessa óptica. Na passagem do século XVIII para o século XIX houve quem levantasse a questão da validade das experiências médicas com negros quando se pretendesse usar os resultados com brancos. Esta forma de “racismo científico” mostra o carácter histórico da concepção de “natureza humana”, concepção construída segundo critérios que hoje reconhecemos facilmente como pouco “naturais”.

REFERÊNCIAS

(Daston e Vidal 2004a) DASTON, Lorraine e VIDAL, Fernando (eds.), The Moral Authority of Nature, Chicago, The University of Chicago Press, 2004

(Groebner 2004) GROEBNER, Valentin, “Complexio / Complexion: Categorizing Individual Natures, 1250-1600”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 361-383

(Schiebinger 2004), SCHIEBINGER, Londa, “Human Experimentation in the Eighteenth Century: Natural Boundaries and Valid Testing”, in (Daston e Vidal 2004a) , pp.384-408


15.10.07

Puxar o rabo ao gato que está escondido e o deixou de fora (Lendo Teodora Cardoso – 5)

«(…) eis que surge um novo oportunismo, agora sob a forma de apelos ao consenso sobre temas a que esse método de decisão não é aplicável. Estamos, assim, chegados a uma situação em que o consenso se transformou na continuação do confronto por outros meios. (…)

Um consenso é, na realidade, necessário, mas não se trata de um cozinhado em que se usem alguns condimentos certos para temperar o prato errado. (…)»

(Teodora Cardoso, “Consensos e Oportunismos”, Público, 31/01/04)

A autoridade moral da natureza (2/6)

"Natural" como padrão? E com que consequências?




Por exemplo na tradição cristã medieval, a Natureza é o vigário de Deus, com influência directa na questão do pecado. (Puff 2004) analisa, para um vasto período entre a Alta Idade Média e o século XVIII, julgamentos civis de “vícios contra a natureza”, categoria que incluía, para alguns autores, toda uma série de actos sexuais (masturbação, bestialidade, sexo anal entre homem e mulher, actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo) que não contribuíam para a procriação e, desse modo, eram considerados como actos de resistência ao curso natural das coisas. Em particular, a actividade sexual entre pessoas do mesmo sexo foi considerada pelos pensadores cristãos como “contra natura”, o que dizia da sua gravidade (acarretava em geral a sentença de morte).


Mas a mudança dos “peritos em natureza” (dos sacerdotes para os cientistas) não muda necessariamente a essência do apelo ao natural como legitimador de um padrão. Também (Vidal 2004) analisa a relação entre as concepções de pecado e de natureza. Vidal chama a atenção para o mecanismo da autoridade moral da natureza: a “ordem natural” assenta em normas tidas como transcendendo quer a vontade individual, quer as variações culturais, quer as circunstâncias históricas – desde que essas normas sejam admitidas como reconhecidas pela razão através do estudo empírico da natureza. Vidal estuda o funcionamento desse mecanismo com o enquadramento medieval da masturbação, considerada como um “crime contra a natureza”, no sentido em que “crime” e “pecado” vão juntos. Para isso, analisa a mudança de enquadramento dessa actividade. No quadro da teologia tridentina e da Reforma de meados do século XVI, o que era crucial no pecado era o desejo. O pecado variava consoante o objecto do desejo aquando da masturbação: o homem que deseja uma mulher casada quando se masturba, comete adultério; que deseja uma virgem, estupro; um parente, incesto; uma freira, sacrilégio; outro homem, sodomia. Já no século XVIII a masturbação passou a ser considerada também um perigo para a saúde, juntando as duas ordens de considerações.




A título de ilustração deste mecanismo de coalescência do descritivo e do normativo, Vidal aprecia a obra de Samuel Auguste André David Tissot (1728-1797), L’Onanisme, na qual se considera que a masturbação realiza a utopia das leis que se fazem cumprir a si mesmas, pelos seus próprios efeitos, numa espécie de justiça imanente assente na natureza: para bem da sua saúde, o homem deve actuar bem moralmente, segundo a natureza; se não o fizer, a doença levá-lo-á rapidamente à decadência e à morte. Que seja o médico, o cientista, a interpretar a autoridade da natureza – não modifica radicalmente o carácter do dispositivo.

REFERÊNCIAS

(Daston e Vidal 2004a) DASTON, Lorraine e VIDAL, Fernando (eds.), The Moral Authority of Nature, Chicago, The University of Chicago Press, 2004

(Puff 2004) PUFF, Helmut, “Nature on Trial: Acts ‘Against Nature’ in the Law Courts of Early Modern Germany and Switzerland”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 232-253

(Vidal 2004) VIDAL, Fernando, “Onanism, Enlightenment Medicine, and the Immanent Justice of Nature”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 254-281




"As consequências fatais da masturbação" em Le livre sans titre, Paris, 1844 (2ª edição)

(clicar para aumentar)



12.10.07

Edital

(Clicar para aumentar.)



11.10.07

Boca do Inferno

Como de costume, também hoje a coluna de "humor" do Ricardo Araújo Pereira na "Visão" diz, na reinação, coisas com mais acerto do que muitos comentadores sérios (sérios porque não se riem).
Só isto: «a ASAE [Autoridade de Segurança Alimentar e Económica] verifica se a lei está a ser cumprida - o que, para a grande maioria dos portugueses, é intolerável.»

A autoridade moral da natureza (1/6)

O volume The Moral Authority of Nature, editado por Lorraine Daston e Fernando Vidal (Daston e Vidal 2004a) ilustra, por uma série de estudos de carácter histórico, como se tem de forma recorrente utilizado a ideia de “natureza” para pensar padrões de bem, de belo, de justo, de valioso. Na introdução a esse volume, Daston e Vidal (2004b) sublinham como o mecanismo subjacente requer dois tipos de dispositivos. Por um lado, o que é “natural” é apresentado como irrevogável e/ou perfeito – por contraste com o que aparece como “mera” convenção social ou arranjo político. Assim, a “naturalização” confere universalidade, firmeza, necessidade – numa palavra, a autoridade do dado – ao que de outro modo seria inventado ou produzido. Por outro lado, para que a “natureza” assim funcione como padrão é necessária a existência de “peritos no natural”: poetas, sacerdotes, médicos, filósofos, cientistas. Todos, uns numas épocas outros noutras, se afirmam como intérpretes alegadamente desinteressados dos veredictos da natureza, capazes de mobilizar o significado da natureza para resolver questões controversas e por vezes politicamente carregadas: raça, género, sexualidade, colonialismo, trabalho.

Um aspecto importante é o seguinte. O que é considerado “natural” intervém na marcação da fronteira entre liberdade e necessidade no plano dos humanos. Esse ponto é assinalado por (Cadde 2004), quando precisa o significado do livre-arbítrio na Europa medieval. É que, embora a ordem da “necessidade” estivesse ligada à dinâmica da natureza e a ordem da “liberdade” à esfera moral, o facto é que nem o governo da natureza era considerado absoluto nem a liberdade era da ordem da escolha ou da elaboração autónoma da sua própria realidade política. Desse modo, o livre-arbítrio medieval consistia em alinhar ou não alinhar com a vontade divina, expressa pela ordem da sua Criação. E daí a importância do apuramento do que seria “ o natural”.

Continuaremos a ver, nos próximos dias, outros aspectos desta questão da “autoridade moral da natureza”.

REFERÊNCIAS

(Daston e Vidal 2004a) DASTON, Lorraine e VIDAL, Fernando (eds.), The Moral Authority of Nature, Chicago, The University of Chicago Press, 2004

(Daston e Vidal 2004b), DASTON, Lorraine e VIDAL, Fernando, “Doing What Comes Naturally”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 1-20

(Cadde 2004), CADDE, Joan, “Trouble in the Earthly Paradise: The Regime of Nature in Late Medieval Christian Culture”, in (Daston e Vidal 2004a), pp. 207-231



Charles Sheeler, The Artist Looks at Nature, 1943



10.10.07

Será isto inteligência artificial?

No site que a seguir indicamos está um jogo: pensas numa coisa, respondes (com verdade) a 20 perguntas do programa acerca dessa coisa e ele adivinha em que estás a pensar. Se "ele" gastar mais do que 20 perguntas para chegar ao resultado, admite que perdeu. No fim faz comentários à forma como nós jogámos. Para aceder, clicar aqui no 20 perguntas.
Agora digam-me: acham que este programa é inteligente?

A public school teacher was arrested this morning at John F. Kennedy International Airport...

A public school teacher was arrested this morning at John F. Kennedy International Airport as he attempted to board a flight while in possession of a ruler, a protractor, a set square, a slide rule and a calculator. At a morning press conference, Attorney General Alberto Gonzales said he believes the man is a member of the notorious Al-gebra movement. He did not identify the man, who has been charged by the FBI with carrying weapons of math instruction.


"Al-gebra is a problem for us," Gonzales said. "They desire solutions by means and extremes, and sometimes go off on tangents in a search of absolute value. They use secret code names like 'x' and 'y' and refer to themselves as 'unknowns', but we have determined they belong to a common denominator of the axis of medieval with coordinates in every country. As the Greek philanderer Isos Celes used to say, 'There are 3 sides to every triangle'."


When asked to comment on the arrest, President Bush said, "If God had wanted us to have better weapons of math instruction, He would have given us more fingers and toes."


White House aides told reporters they could not recall a more intelligent or profound statement by the President.


(Recebido por e-mail. Merci Joëlle.)

Lekton - Lista Portuguesa de Filosofia

Para quem esteja interessado em estar em contacto com a comunidade de filosofia em português, surgiu um novo instrumento. Informação genérica, e possibilidade de se inscrever, em Lekton - Lista Portuguesa de Filosofia.

Jardins Metafísicos

Plano do jardim do Hojo do Tofuku-ji, "Jardim das Oito Vistas" (versão original inserida no livro de Christian Tschumi, Mirei Shigemori: Modernizing the Japanese Garden, Berkeley, Stone Bridge Press, 2005 ).
Estamos aqui num complexo religioso com muitos templos, que é a sede da escola Tofuku-ji do Budismo Zen de Rinzai. Este espaço foi fundado em 1236, mas foi sendo modificado muitas vezes posteriormente. Vamos aqui focar-nos principalmente na última grande reconstrução do jardim, já no século XX.
Shigemori (1896-1975) foi o maior dos renovadores do jardim japonês no século XX, apostando em voltar à inspiração tradicional em vez de participar na importação dos modelos ocidentais.
O jardim do Hojo (instalações do abade) no templo Tofuku-ji é a sua primeira grande obra, datando de 1939. Shigemori ofereceu o projecto ao abade da comunidade budista (que não tinha meios para lhe pagar). O abade ofereceu algo muito valioso para Shigemori: prometeu que aceitaria o projecto sem modificações. E assim se fez. Um único pedido fez o abade e aceitou o artista: para honrar um princípio religioso, seriam aproveitados materiais que tinham sobrado da reconstrução do templo. Algumas das pedras deste jardim têm essa proveniência.




Na zona oriental do jardim, um aproveitamento de pedras que sobraram das fundações dos edifícios. Trata-se de uma representação da constelação da Ursa Maior, num céu nublado feito de gravilha penteada.





Na zona sul do jardim: os quatro grupos de rochas representam (como muitas vezes acontece nestes jardins) as ilhas dos imortais, enquanto os cinco montes cobertos de musgo (ao fundo) representam as cinco seitas do budismo Zen existentes em Quioto. A zona de musgo ao fundo, tal como a gravilha penteada, representam o mar.





Aspecto parcial das ilhas dos imortais no jardim sul.





Aspecto parcial das cinco seitas zen de Quioto, no jardim sul.





Ilha no mar de gravilha e ilhas no mar de musgo.





O jardim ocidental, inspirado nas paisagens de campos de arroz. A estrutura de base é uma quadrícula (uma espécide de tabuleiro de damas)marcada por pedras (coisa que se vê mal nesta imagem). Em algumas interpretações, representa-se aqui uma batalha, correspondendo aos dois tipos de preenchimento da quadrícula.





Pormenor do jardim do norte, no qual se aproveitaram mais restos de pedra da construção, desta vez para um desenho muito simples de xadrez pedra/musgo.





A estrutura de xadrez dispersa-se no jardim do norte, progredindo de uma malha clara e organizada para uma dissipação progressiva, até ao desaparecimento na pequena mata. Trata-se de um exemplo, entre outros, do uso que Shigemori fazia de elementos pontilhistas nos seus jardins, o que é um deslocamento relativamente às práticas dominantes no jardim tradicional.





A ver o mar, na gravilha. Coisa só possível num jardim metafísico.




(Fotos de Porfírio Silva. 6 de Novembro de 2005, Quioto, Japão.)

9.10.07

A tecnologia do religioso

As grandes religiões dominantes no Ocidentes fizeram um percurso civilizacional que as conduziu a uma certa intelectualização. Nesse espaço cultural, as instituições (as igrejas) preocupam-se com a ciência, procuram esse saber, procuram conciliações e alianças entre conhecimento da matéria e vida do espírito. Individualmente, também muitos crentes esforçam-se por conciliar a sua fé com os seus conhecimentos científicos. Há nisso algo de atraente: a religião não tem de ser obscurantismo. Mas há nisso, também, uma cedência ao núcleo ideológico central do cientismo. Na ideologia do cientismo, a ciência tende a tudo explicar e as alternativas de compreensão que não passam pela ciência tendem a extinguir-se. Muitas vezes, a “fé esclarecida” assemelha-se perigosamente à fé explicada aos intelectuais.


Essa intelectualização abriu um espaço às concepções mágicas do sagrado. Nessa mundividência, a manipulação de certos objectos, com certas conotações, por pessoas com certos “saberes” e “poderes”, produz certos “resultados” e “resolve” certos problemas. Por encomenda. Esse é o fascínio de certas seitas, mas também de certas franjas das igrejas dominantes. Que assim respondem à dominante “ideologia do tecnológico”. Um caso que, para o meu ver, é disso exemplo: as práticas exorcistas, que a hierarquia mais formal vê com maus olhos e tenta enquadrar e limitar, mas que continuam a existir e são bem aceites pela “religião popular”. O exorcismo pretende resolver, por uma manipulação de certos sinais, uma avaria do espírito. A possessão é um desarranjo que um bom mecânico repara. O exorcista é o especialista que detém o segredo das peças de origem. A marca da sua capacidade tecnológica é que a sua intervenção transforma um comportamento anterior aberrante num comportamento posterior estatisticamente normal. E tudo isto depois de o behaviorismo mais descarado ter sido expulso da posição dominante mesmo na psicologia científica.


Este, como outros fenómenos de magia “para resolver desarranjos”, traduz talvez uma resposta à intelectualização das religiões oficiais dominantes. À tendência pesada para esquecer o corpo, para esquecer as emoções e os afectos que deveriam contar numa experiência do sentido (do sagrado). Mas, creio eu, esse recurso à tecnologia do religioso traduz a nossa própria redução à condição de robot que precisa de uma intervenção. A experiência tecnológica da religião é o grau zero do sentido – mas vai muito bem com o ar do tempo.


(Publiquei este texto originalmente, como convidado, no extinto Terra da Alegria, a 21-Jun-2004)

8.10.07

O problema alimentar das modelos de moda

(Clicar para aumentar. Cartoon de Marc S.)

Aos que esperam o milagre do agente económico privado (Lendo Teodora Cardoso - 4)

«Portugal tem reconhecidamente um problema orçamental, mas tem também um sério problema de qualidade do investimento, público e sobretudo privado. Em termos de atribuição dos recursos – o factor que determina o crescimento da produtividade e o enriquecimento geral do país –, este é, de longe, o problema mais grave da economia portuguesa. Desde a adesão à UE, em 1986, Portugal tem o mais elevado racio de investimento da UE-15. Se quisermos ir mais longe, observaremos que, desde que há dados (cuja publicação se iniciou na década de 50), o racio de investimento privado em Portugal é dos mais elevados do mundo. O peso do investimento público acentuou-se após a adesão à UE mas, como não podia deixar de ser, o investimento privado permanece largamente dominante.

Ao contrário do que se esperaria, deste investimento não resultou o acréscimo paralelo da produtividade. Ao longo das quatro décadas e meia cobertas pelas estatísticas europeias, a produtividade em Portugal não cessou de distanciar-se da maioria dos seus parceiros europeus.
É claro que são muitos os factores que explicam esta divergência, desde os culturais aos institucionais, à definição e execução da política económica. Por isso mesmo, é tempo de deixarmos de contentar-nos em atribuir à fiscalidade ou à má qualidade da administração pública os problemas da economia. Menos ainda podemos esperar repor os equilíbrios macroeconómicos somente através da redução do peso do sector público, supondo que – por alguma espécie de milagre – o sector privado se torna subitamente eficiente e competitivo.»

(Teodora Cardoso, “Matérias de Reflexão”, Portal da Ordem dos Economistas, 16/05/05)

4.10.07

Free Burma !


Free Burma!



Eu apoio a campanha internacional «Free Burma!». Eu acredito que vale a pena empurrar, empurrar os que esperam sentados nos seus tronos pela passividade geral. Eu acredito que vale a pena fazer saber aos que lutam que o mundo olha para eles. Quero apenas ser mais um, engrossar o número dos que levantam um braço, só isso. Para que os que reprimem possam tomar conhecimento de quantos se opõem. Para que os que resistem possam ser informados de que não estão sós. Só para isso servem as nossas vozes pequenas. Mas isso talvez um dia valha alguma coisa.

Eu tenho pena de não poder ir...

Ciclo de Conferências
EVOLUÇÃO E CRIACIONISMO: UMA RELAÇÃO IMPOSSÍVEL.



Na Culturgest, nos fins de tarde de 8 a 12 de Outubro, associado ao lançamento de um livro pela QUASI subordinado ao mesmo tema (e com o mesmo título).

Mais informação no sítio da Culturgest, cantinho dedicado a esta iniciativa.




Putin



Depois da Polónia... os gémeos russos.

(Cartoon de Marc S.)

Controlo cerebral

No passado 9 de Julho publicámos aqui um apontamento, Controlo mental, onde se falava das possibilidades actuais de fazer com que o nosso cérebro controle directamente os movimentos de próteses externas. A edit on web publicou recentemente novidades de investigação no mesmo campo, para as quais nos permitimos chamar a atenção. Estão num texto de Filipa Ribeiro, intitulado Poderá o nosso cérebro controlar um computador? e que incide sobre investigação realizada na Universidade de Aveiro. É de ir ver, pensamos nós.

2.10.07

Prémio Literário Políbio Gomes dos Santos

Escrevemos aqui anteriormente umas poucas linhas acerca do poeta. Digamos agora qualquer coisa sobre o prémio literário.

A Câmara Municipal de Ansião instituiu e retomou este ano, no âmbito da sua política cultural, o Prémio Literário Políbio Gomes dos Santos. O prémio, dedicado exclusivamente à poesia e tendo como "patrono" aquele poeta natural de Ansião, é promovido com a colaboração da Associação Portuguesa de Escritores, que indica dois dos três membros do júri.
No passado dia 13 de Agosto podia ler-se o seguinte na página de entrada do site do Município de Ansião:

Foi revelado no dia 12 de Agosto, em cerimónia integrada nas Festas do Concelho 2007,o vencedor do Prémio Literário Políbio Gomes dos Santos.

O vencedor foi Porfírio Simões de Carvalho e Silva, de Lisboa, com o trabalho Horas do Tempo Comum. Para além do prémio monetário de 2.500 Euros, o autor teve a satisfação de, logo no momento de revelação da sua vitória, uma editora ali representada ter manifestado interesse na publicação do seu trabalho.

Este Prémio Literário tinha 68 trabalhos admitidos a concurso, um sinal inequívoco do seu mérito e do interesse que suscitou.


Temos, portanto, que este vosso parceiro de blogosfera teve um prémio de poesia. Não é, de momento, um dos mais prestigiosos prémios de poesia do nosso país, bem sei. E também não passo a ser poeta por ter ganho um prémio de poesia. Mesmo assim não deixei de ficar muito contente com o facto, como se compreende. E agradeço daqui aos amigos que comigo se alegraram.

Numa próxima intervenção aqui no blogue publicarei um dos poemas que pertencem à obra premiada. O qual é, claro, absolutamente inédito. Podem começar a afiar as facas.


Recorte do jornal Serras de Ansião
(Ano XVIII, nº 206, 15 de Agosto de 2007, p. 17)

(clicar para aumentar)



(Foto "Notícias de Ansião")

1.10.07

O poeta Políbio Gomes dos Santos

«Nascido em 8 de Agosto de 1911, em Ansião, fez estudos em Leiria, de onde partiu para Lisboa, a fim de frequentar, contrariado, o Instituto dos Pupilos do Exército, que cedo abandonou, por motivos de saúde. Em Coimbra, concluiu os estudos liceais e matriculou-se simultaneamente nos cursos universitários de Letras e de Direito. O seu destino ficou ligado a esta cidade: aí publicou o único livro de poesia enquanto vivo, As três pessoas, e integrou o grupo de poetas que formaria o Novo Cancioneiro. Em Setembro de 1938, foi surpreendido pela doença e internado, com tuberculose pulmonar, no Sanatório da Guarda. Morreu na sua terra natal, em 3 de Agosto de 1939.
O amor dos deuses não permitiu que o malogrado Políbio Gomes dos Santos (...) viesse a tornar-se um dos maiores vultos da lírica neo-realista, como prometiam os seus versos (...).»

Estas são palavras escritas por Luís Adriano Carlos no Prefácio ao volume Poemas, de Políbio Gomes dos Santos (Campo das Letras, colecção Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, século XX).


Em breve explicaremos a que vem esta referência a este poeta.



Manuscrito de um dos poemas da obra As três pessoas,
de Políbio Gomes dos Santos
(clicar para aumentar)