Morte, saudade e esquecimento

Chegaram ao fim. Morreram. Finaram-se. Quebraram-se, simplesmente. E deixaram-me momentaneamente perdido. Às cegas. Foi ontem. Já foram substituídos. A saudade que ainda ontem sentia por eles já morreu. Acontece muito.



José Eduardo Agualusa


José Eduardo Agualusa, um enorme escritor angolano que este Portugal bem conhece, terá o seu novo romance, "As Mulheres do Meu Pai", publicado entre nós pela Dom Quixote (onde sai a 20 de Junho). O blogue A Origem das Espécies está a pré-publicar desde ontem essa obra. É serviço público.É de ir lá começar a antecipar o gozo.



O Império Romano e a União Europeia (3/3)


Em que é que a queda do Império Romano do Ocidente pode contribuir para uma reflexão sobre a União Europeia? O que é que interessa que a queda do Império Romano do Ocidente tenha tido como consequência um abaixamento dos níveis de conforto e de sofisticação da vida de largos estratos da população?


A queda do império romano do ocidente não foi, como vimos ontem, apenas um abalo para as elites políticas, sociais e culturais. Representou um retrocesso no conforto material da esmagadora maioria da população. Já para não falar de que desapareceu assim o instrumento do maior período contínuo de paz (500 anos) vivido na região mediterrânica. Talvez seja útil reflectir nisto: o progresso e o bem-estar (material e espiritual) não estão nunca garantidos. Podem sofrer atrasos profundos e duradouros se não soubermos preservar e melhorar as formas sociais e políticas que são as suas condições de possibilidade.


O império romano durou muitos séculos e foi finalmente abalado e destruído. E demorou muitos séculos a recuperar o que se perdeu. A “nossa Europa” tem 50 anos e há nela ainda muito por fazer. E também ela não está garantida para todo o sempre, dependendo da sabedoria com que soubermos ajustá-la continuamente às novas necessidades. Estaremos conscientes disso quando alimentamos o cepticismo, ou mesmo a indiferença, face a essa realização comum de paz e de progresso? Estaremos cientes de que nenhuma realização das sociedades humanas pode sobreviver à indiferença dos seus principais beneficiários?


Quererá isto dizer que devemos aceitar a UE como o melhor dos mundos possíveis? Aceitar sem crítica as suas políticas (e os seus políticos)? Não. Quererá isto dizer que a UE é intrinsecamente boa? Que devemos prescindir de tentar torná-la mais útil aos seus povos e aos outros povos do mundo? Não. Isto quer apenas dizer que nada está historicamente garantido e que, se não assumirmos (individual e colectivamente) a nossa quota-parte de responsabilidade pelo futuro comum, as consequências podem ser desagradáveis.

30.5.07

Greve geral


Hoje é dia de greve geral. Apenas duas breves reflexões sobre isso.

(1) O direito à greve tem de ser protegido. As múltiplas formas usadas para o tentar limitar, escoradas na antipatia que muitos sentem pelos incómodos causados, são um retrocesso civilizacional. Um país desenvolvido precisa de contar com os seus trabalhadores e precisa, portanto, que eles possam expressar o seu descontentamento. Uma dinâmica positiva de desenvolvimento precisa dos trabalhadores e das suas organizações, fortes e intervenientes. Se queremos que os trabalhadores se mobilizem não podemos pensar nisso só quando se trata de pedir mais produtividade, temos de respeitar a sua expressão também quando ela é de protesto.

(2) Esta greve geral é apenas uma expressão negativa, de rejeição. É pena que se ouça pouco acerca do contributo positivo que os sindicatos estão dispostos a dar para o desenvolvimento do país. É tempo de os sindicatos serem menos "oposição" e mais "proposição". É tempo de os sindicatos serem mais claros acerca da necessidade de partilhar responsabilidades em matéria de competitividade da economia. Isso tem de vir a par de mais democracia nas empresas, de maior participação dos trabalhadores, de melhor compatibilização da vida pessoal e familiar com a vida profissional, de melhor qualidade da vida profissional. Mas isso não se alcança apenas pela via da contestação. É preciso distribuir melhor a riqueza, mas também é preciso criar mais riqueza. Os sindicatos e os trabalhadores ganhariam muito em que se compreendesse melhor como eles se esforçam nesse sentido.

O Império Romano e a União Europeia (2/3)



O que Bryan Ward-Perkins procura mostrar, em “A Queda de Roma e o Fim da Civilização”, é que a queda do império romano do ocidente representou um retrocesso na vida material da maioria da população. Vejamos alguns dos seus exemplos.


Os romanos produziam bens de uso corrente (não apenas de luxo), de qualidade muito elevada, em enormes quantidades, e depois difundiam-nos largamente, sendo por vezes transportados por muitas centenas de quilómetros para serem consumidos por todos os grupos sociais (não apenas por ricos). A existência de “indústrias” muito desenvolvidas, funcionando com trabalhadores razoavelmente especializados, produzindo em grandes quantidades e vendendo para zonas remotas do império, suportadas em sofisticadas redes de transporte e de comercialização, era possível graças à infra-estrutura de estradas, pontes, carroças, hospedarias, barcos, portos de rio e de mar – e à burocracia imperial, incluindo um exército numeroso, para enquadrar e proteger todo esse fervilhar. Exemplos concretos são como seguem.


A cerâmica, utilizada para o armazenamento, preparação, cozedura e consumo de alimentos, era de alta qualidade, tanto em termos práticos como em termos estéticos. O nível de sofisticação da cerâmica romana usada para preparar e servir alimentos só volta a ser observado alguns 800 anos depois, pelo século XIV. Também as artes da construção de edifícios, que os romanos tinham sofisticado quer para casas luxuosas quer para casas vulgares, em vastas regiões do antigo império perderam-se e deram lugar a povoados construídos quase inteiramente de madeira, onde antes se construía de pedra e tijolo (para já não falar das casas mais sofisticadas com aquecimento por baixo do chão e água canalizada). Já a fundição de chumbo, cobre e prata, que permitia a realização de muitos utensílios sofisticados, também entrou em queda com o desabar do império e só nos séculos XVI e XVII terá voltado a atingir os níveis da época romana.


Enquanto no império as moedas de ouro, prata e cobre eram perfeitamente acessíveis e largamente utilizadas nas trocas económicas, o que veio depois foi o desaparecimento quase total da utilização diária da moeda, a par com o desaparecimento de indústrias inteiras e de redes comerciais. Os produtos de luxo continuaram, em maior ou menor grau, a ser produzidos para os mais ricos, mas os produtos de uso mais geral e de qualidade é que escassearam ou desapareceram. Em certas zonas do antigo império, certos aspectos da economia e do bem-estar material regrediram para níveis da Idade do Bronze. Mesmo muitas economias regionais foram destroçadas pela instabilidade política e militar.


Os benefícios do império também se estenderam à agricultura. Um exemplo curioso: até o tamanho médio do gado aumentou consideravelmente no período romano, graças à disponibilidade de pastos de boa qualidade e de forragem abundante no Inverno. O tamanho do gado regrediu, depois da queda do império, para níveis pré-históricos.


E que é que isto tem a ver com a União Europeia?


(conclui amanhã)

29.5.07

O Império Romano e a União Europeia (1/3)


Muitos creditam à União Europeia (ex-CEE) 50 anos (1957-2007) de paz e prosperidade a benefício dos povos europeus. Contudo, mesmo entre os que foram intensamente financiados por outros mais prósperos (como os portugueses), parece haver uma moda de indiferença ou até desconfiança face a essa “casa comum”. Parece pairar a convicção de que o que temos está garantido e não nos pode ser tirado, mesmo que demos largas aos egoísmos nacionais e cuidemos pouco de participar na construção europeia. Será assim? Procuremos contribuir para uma resposta com um paralelo com o império romano e a sua queda.


Poderíamos sempre tentar uma resposta “cultural”. Por exemplo, lembrando que ferramentas culturais básicas se ressentiram: a capacidade de ler e escrever, muito difundida no império romano devido às necessidades burocráticas e económicas, não apenas entre as elites mas também nas “classes médias”, regrediu no período pós-romano até ao ponto de mesmo grandes reis ocidentais terem sido analfabetos. (O clero foi, em larga medida, uma excepção importante.) Mas nesse campo poderíamos apontar, após a queda do império romano, o florescimento de formas superiores de cultura, por exemplo aquelas que foram protegidas e praticadas nos círculos religiosos. Por exemplo nos mosteiros e nas catedrais. Mas não vamos por aí. Vamos às coisas “menores”, à vida material quotidiana.


No auge da sua extensão o Império Romano incluía quase toda a Europa ocidental, largas faixas em redor do Mediterrâneo, bem como regiões mais orientais, desde os Balcãs à Grécia, Egipto, Ásia Menor, chegando à Síria e fazendo a oriente fronteira com a Pérsia e com as regiões caucasianas. A queda do Império a Ocidente, em 476 d.C., deu lugar a um longo período de retrocesso sócio-económico, como escreve Bryan Ward-Perkins, em “A Queda de Roma e o Fim da Civilização”: “o domínio romano, e sobretudo a paz romana, trouxe níveis de conforto e sofisticação para o Ocidente que não tinham sido vistos anteriormente e que não seriam vistos de novo durante muitos séculos”. Veremos, amanhã, o que quer isso dizer mais em concreto.


(continua amanhã)


28.5.07

"Ainadamar", de Osvaldo Golijov, uma ópera que chega por mão amiga



Federico García Lorca escreveu que a maior tragédia da história de Espanha foi a expulsão dos judeus desse país.

Osvaldo Golijov é argentino, descendente de judeus europeus, e escreveu a ópera “Ainadamar” (“fonte das lágrimas “ em árabe) sobre Lorca e o seu assassinato pelos franquistas, um dos gestos mais fundos da guerra civil espanhola.

O meu Amigo JPS veio oferecer-me um CD com essa ópera, “literalmente saturada de música espanhola”, em particular o flamenco, mas com muitas outras influências. Liturgicamente ouvimo-la logo ali, na íntegra. JPS usou uma sua provocação habitual (habitual nele, claro) para, pensando ele o que pensa em termos políticos, me oferecer uma ode a Lorca. Diz ele que o seu lema é “governo de direita, cultura de esquerda”, porque, acrescenta, “a inversa é uma catástrofe”. JPS, já pensaste que muita esquerda, secretamente, até concorda contigo, por ser mais cómodo?

Obrigado, JPS. Volta sempre.



Para ouvir legalmente alguns excertos:
http://www.deutschegrammophon.com/special/video.htms?ID=golijov-ainadamar

Indígenas


"Indigènes" no seu título original, "Dias de Glória" na versão portuguesa, é um filme francês sobre a história relativamente recente da França. Como os colonizados franceses do norte de África foram chamados a combater por esse país, cujo solo continental nunca tinham pisado, contra os alemães invasores. Como foram depois esquecidos. Como, depois das independências, viram mesmo perdidas as suas pensões de ex-combatentes. Uma pequena contribuição para que se comprenda que o racismo europeu não é uma invenção de uns poucos, mas uma realidade histórica concreta. Um filme que alguns franceses consideraram anti-francês. Porque em todo o lado há os que julgam que a verdade só deve ser dita salvas as conveniências. Chegou a Portugal e deve ver-se, para nossa ilustração - até porque não é maniqueísta e deixa que apareçam algumas das contradições que operam em tal cenário.

25.5.07

Populismo pornográfico


Há quem pense que todo o populismo é um tanto "pornográfico". Mas há quem abuse...

Tania Derveaux é cabeça de lista do partido NEE ao senado belga, nas eleições do próximo 10 de Junho. O NEE pretende ser um partido de protesto. O que propõem aos eleitores é o seguinte: votem em nós e tantos lugares quantos os que elegermos serão lugares vazios no parlamento, o que se traduzirá em perda de poder e de subvenções públicas para os (outros) partidos. Assim, mais do que um voto de protesto (NÃO), o NEE pretende oferecer um voto-sanção.

O lema de campanha mais difundido pelo partido NEE, na pessoa de Tania, é algo que se inspira na promessa que outros partidos fazem de "mais empregos" (jobs).



Mas este partido, criativo, tem uma outra versão:



A promessa já não é, pois, de "jobs", mas de "blowjobs". Uma espécie particular de trabalho, pois.

É claro que esta forma particularmente escabrosa de populismo não deixa de insistir em certos temas caros a qualquer das forma de populismo que por cá conhecemos.

O tema principal é "a limpeza dos partidos": o anjo puro varre os impuros agrupados em partidos.


Isso é necessário porque os partidos sugam o povo: os partidos estão num prato da balança e o povo noutro prato, pelo que o que vai para uns é "roubado" aos outros.

A pura Tania vai, pois, fazer uma limpeza ao parlamento:


Como convém, os políticos dos outros partidos são ridicularizados:


No final, o anjo Tania vencerá:



Será que ainda falta muito para, no nosso país, o populismo chegar a estas formas?

É muito mais fácil criticar tudo e todos, metendo toda a política e todos os políticos num saco de lixo, do que meter as mãos ao trabalho e fazer a nossa parte, assumindo responsabilidades de fazer e deixando o mero bota-abaixo. Disso vive o populismo. Talvez não demore muito a chegar ao nosso país algum arremedo de populismo pornográfico, uma vez que populismo sem vergonha já cá temos bastante.


23.5.07

A ditadura da economia (3/3)


Deixámos aqui, ontem e anteontem, uma breve reflexão acerca das possíveis consequências nefastas de pensar que as relações sociais se esgotam nos mecanismos económicos. Partimos da história dos atrasos no infantário e depois alargámos conceptualmente o problema para a relação entre preços e sanções. Hoje concluímos com uma referência a outro exemplo prático do mesmo tipo de problemas.


Uri Gneezy e Aldo Rustichini, os autores do estudo inicial sobre os atrasos no infantário, anunciaram (em 2005) que repetiram a experiência e que ela continuou a dar os mesmos resultados. Outros autores propõem leituras convergentes de situações diferentes.


Maarten Janssen e Ewa Mendys (Janssen e Mendys 2001) propõem um modelo explicativo para uma série de observações e estudos acerca dos métodos usados em vários países para obter sangue para fins médicos. O caso é usado como exemplo de desafios que podem enfrentar as políticas que recorrem a incentivos económicos para obter certos resultados de interesse público.


Um trabalho citado como pioneiro nesse domínio é o de Richard Titmuss no início da década de 1970, que comparou o sistema americano (assente no pagamento ou em outros benefícios materiais para quem entregasse sangue) com o sistema britânico (completamente voluntário e não pago) e concluiu que o sistema de pagamentos por sangue conduzia à escassez e a menor qualidade. Titmuss concluiu que pagar pelo sangue destruía as motivações altruístas para a doação e que, além disso, essa destruição era duradoura: o posterior abandono dos incentivos monetários não restaurava as motivações altruístas, ou pelo menos isso só seria possível a muito longo prazo. Janssen e Mendys citam outros estudos na mesma área e propõem um modelo (em teoria dos jogos evolutiva) para interpretar este tipo de dinâmicas. Não vamos entrar na apresentação desse modelo formal, mas, no entender desses autores, ele mostra como é que normas sociais que não dependem de ganhos económicos (embora possam depender do incentivo do reconhecimento social) podem ser destruídas por políticas que introduzem “prémios para egoístas” que afastam o contributo dos que se movem por outros incentivos.


A nossa conclusão é modesta: quanto à nossa vida em sociedade, é preciso pensar melhor acerca das consequências da “ditadura da economia”. Talvez nem tudo seja mercadoria...


REFERÊNCIA BIBLOGRÁFICA

(Janssen e Mendys 2001) JANSSEN, Maarten C.W., e MENDYS, Ewa, The Price of a Price: On the Crowding Out of Social Norms, Tinbergen Institute Discussion Paper Nº TI 2001-065/1, Tinbergen Institute (Erasmus Universiteit Rotterdam, Universiteit van Amsterdam, Vrije Universiteit Amsterdam), Roterdão e Amesterdão, 2001


22.5.07

A ditadura da economia (2/3)


Ontem contámos a história da multa introduzida para incentivar os pais a não se atrasarem a ir buscar os seus filhos ao infantário. A experiência realizada mostrou uma insuficiência da estratégia de pensar todos os aspectos das relações sociais em termos económicos. Quando a nossa consideração pelos outros é rebaixada ao estatuto de mercadoria, reduzindo o “raciocínio moral” ao “raciocínio económico”, as consequências podem ser desagradáveis. Continuamos hoje a pensar neste tópico levando-o para outro patamar: será que tudo tem um preço, no sentido estrito do termo “preço”?


O que podemos considerar que está em causa no caso do infantário, apresentado na posta anterior, é que ao tratar a multa como um preço se opera uma mudança de regime. Um texto do professor de Direito Robert Cooter é útil para ajudar a olhar para esta mudança de regime. O texto "Prices and Sanctions" (Cooter 1984), que podemos situar no domínio da análise económica do direito, distingue preços e sanções como segue. Vejamos.


Em geral uma sanção é uma punição imposta por se fazer o que é proibido, enquanto um preço é um custo por fazer o que é permitido. A imposição de uma sanção significa que o acto sancionado não deve, de todo, ser praticado, não cabendo ao indivíduo determinar o nível de cumprimento, o que equivaleria a tratar a sanção como um custo financeiro de um negócio. Diferentemente, a fixação de um preço deixa ao indivíduo a escolha do nível de actividade que resulta na relação custo/benefício que lhe seja racionalmente mais favorável em termos económicos.


O que Robert Cooter faz, a partir desta distinção, é interrogar-se acerca do significado das leis. A lei é um conjunto de obrigações que a comunidade impõe aos seus membros e que são suportadas por sanções (perspectiva jurídica) ou a lei é um conjunto de preços oficiais (perspectiva económica)? Um exemplo desta segunda forma de encarar a lei, mencionado por Cooter, é a opinião de dois juristas americanos que defendiam que os gestores não tinham nenhuma obrigação ética de respeitar as leis de regulação económica, devendo, isso sim, calcular os custos da desobediência e violar as leis sempre que tal se revelasse lucrativo.


Cooter entende que a lei tem de ser compreendida (e administrada) tendo em conta as duas perspectivas: a visão meramente económica esquece o significado específico das sanções enquanto ligadas a normas sociais; a perspectiva meramente jurídica esquece o peso das motivações económicas, mesmo face a constrangimentos legais. É que se um instrumento é genuinamente um preço ou uma sanção não depende apenas do que lhe chamamos, mas do modo como se aplica. Pagamos multas por estacionamento proibido e pagamos multas por condução sob o efeito do álcool, mas em geral percepcionamos essas multas de forma diferente. Uma multa por estacionamento ilegal pode ser vista como um preço: normalmente é preferível estacionar em locais permitidos a preços correntes, mas em certos casos de necessidade ou urgência considero que vale a pena estacionar em locais proibidos e pagar a multa correspondente, a qual não depende em geral das minhas intenções no acto praticado ou da reincidência. Uma multa por conduzir embriagado é claramente uma sanção, que assinala uma norma social que deve ser respeitada, e que, nomeadamente, costuma ser agravada pela reincidência.


Partindo destas considerações, Cooter propõe critérios para determinar quando o legislador deve recorrer a sanções ou a preços para influenciar da forma mais eficiente o comportamento social. Não entraremos aqui nessa proposta, uma vez que apenas quisemos sublinhar que a distinção entre preços e sanções ilumina a ideia de que, no caso dos atrasos no infantário, a percepção da multa como um preço operou uma mudança de regime na percepção global da situação por parte dos pais – e que essa mudança de regime tornou inoperante um quadro normativo, a troco de um quadro económico que desorganizou ainda mais as relações entre as pessoas em presença.


(Amanhã continuamos aqui com a reflexão sobre este caso.)


REFERÊNCIA BIBLOGRÁFICA

(Cooter 1984) COOTER, Robert, “Prices and Sanctions”, in Columbia Law Review, 84, pp. 1523-1560


21.5.07

A ditadura da economia (1/3)


Um dos problemas das sociedades ocidentais contemporâneas é a ditadura da ciência da economia: uma forma ideológica segundo a qual tudo na vida deve ser visto e pensado numa óptica económica. A partir de hoje, e nos próximos dois dias, dedicamo-nos a uma reflexão que nos parece pertinente para esse tópico.


Os economistas Uri Gneezy e Aldo Rustichini investigaram uma possível forma de resolver a seguinte situação: os pais falham com alguma frequência a obrigação de ir buscar os seus filhos ao infantário até às quatro horas da tarde, desrespeitando uma norma claramente anunciada e prejudicando pelo menos um dos educadores que tem de ficar para lá do seu horário à espera do último dos atrasados. A solução proposta consistia em multar os pais atrasados – e essa solução foi testada num infantário em Israel. Geralmente os atrasos não eram superiores a meia hora. A multa introduzida aplicava-se cada vez que os pais chegassem com um atraso superior a dez minutos e o pagamento fazia-se por acrescento ao pagamento mensal. O valor da multa era fixo e não proporcional ao atraso. O resultado desse sistema foi… que os atrasos começaram a aumentara logo que a multa foi introduzida e continuaram a aumentar: passado pouco tempo os atrasos mais do que duplicaram. A experiência durou vinte semanas e ao fim de algum tempo a multa foi abolida, mas o nível de atrasos não voltou a baixar. Porquê?


Uma explicação possível era que a multa tinha um valor relativamente baixo: um pai que chegasse atrasado todos os dias só pagava no fim do mês mais um sexto do preço normal. Sem prejuízo de que outro tipo de multa (mais elevada e progressiva) poderia conseguir efectivamente dissuadir os atrasos, neste caso essa explicação não explica nada: antes da introdução da multa a penalização ainda era menor (era inexistente) e os atrasos eram mais baixos.


Gneezy e Rustichini (2000) apresentam duas explicações possíveis. Uma explicação assenta na noção de “contrato incompleto”. Como em muitas outras situações que enfrentamos correntemente, também naquele caso nem todos os aspectos dos deveres e direitos das partes em relação estavam esclarecidos. Não era claro como deviam os pais lidar com a impossibilidade de excluir absolutamente qualquer atraso (um atraso pode sempre acontecer, mas “quantas vezes” e “por quanto tempo” era outra questão), nem era claro o que faria o infantário se os pais chegassem atrasados com frequência. Os pais sabiam que tinham alguma margem (o infantário tinha uma maneira organizada de garantir sempre a guarda das crianças), mas acreditariam que para lá do limite de tolerância alguma coisa desagradável podia acontecer (a criança poderia não ser aceite no ano seguinte?). A introdução da multa transmite uma informação aos pais acerca da parte do contrato que estava apenas implícita: a multa é o pior que o infantário pensa fazer neste caso. Esse perigo não é assustador para os pais e eles sentem-se livres para chegar atrasados quando isso lhes for conveniente. Essa mensagem parece continuar válida mesmo quando a multa é abolida, razão pela qual o comportamento dos pais não volta ao padrão anterior. Uma explicação deste tipo assume o egoísmo e a racionalidade das partes em presença.


Os autores propõem, contudo, outra explicação possível. O que se passou foi uma mudança na percepção da situação social e das normas que a regem. Inicialmente, os pais consideravam que os educadores faziam a simpatia de dedicar um tempo de trabalho extra, não pago, que ia para lá do horário de trabalho, para que as suas crianças ficassem em segurança apesar do atraso dos pais. A dedicação dos educadores devia ser correspondida com o respeito dos seus horários por parte dos pais. Com a introdução da multa, o tempo extra passa a ser entendido como uma serviço: é um serviço que se paga, tal como se paga o tempo normal. A multa é vista como um preço. O mecanismo “moral” (respeitar os educadores e a sua dedicação) foi substituído pelo mecanismo económico (se o tempo suplementar tem um preço, atraso-me sempre que necessário e pago o respectivo preço). O fim da multa não altera a percepção: trata-se apenas de um serviço, embora seja agora gratuito. Gneezy e Rustichini, invocando outro estudo que eles próprios tinham realizado anteriormente, consideram que a diferença entre ter preço ou não ter preço não pode ser reduzida à questão do montante: mesmo um preço ridiculamente baixo muda a percepção da situação e, consequentemente, muda o regime de incentivos aplicável.


(Amanhã e depois continuamos aqui com uma reflexão sobre este caso.)


(A nossa atenção para este caso foi provocada pela sua menção no livro Freakonomics, de Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner.)


REFERÊNCIA BIBLOGRÁFICA

(Gneezy e Rustichini 2000) GNEEZY, Uri, e RUSTICHINI, Aldo, "A Fine Is a Price", in Journal of Legal Studies, 29(1), pp. 1-17 (2000)


18.5.07

Cientistas e filósofos: haja decoro


No (repito) excelente blogue De Rerum Natura, Carlos Fiolhais publicou ontem uma posta intitulada Um Filósofo sem Razão. Trata-se de um texto sobre o filósofo da ciência Paul Feyerabend. Tal como Fiolhais lembra, trata-se, no essencial, de um texto publicado na imprensa diária no início dos anos 1990. Tendo sido publicado há tanto tempo, Fiolhais bem podia ter revisto a matéria, para evitar repetir os mesmos disparates com tantos anos de intervalo.

Como a generalidade dos que falam de Feyerabend sem o terem lido seriamente, ou sem o terem compreendido, Fiolhais acusa Feyerabend de ser “um dos modernos inimigos da ciência”, de ser um anarquista, de ser “uma espécie de Vasco Pulido Valente da ciência” que (apenas) “vê o que dizem os outros e defende, com visível talento, a opinião contrária”. Tudo isto só pode ser dito por quem não foi capaz de ler (com olhos de ver) Feyerabend.

Em primeiro lugar, Fiolhais faz de conta que conhece a obra de Feyerabend, comentando vários livros seus como se os tivesse estudado e soubesse o que eles valem. Contudo, o que Fiolhais diz é demasiado ligeiro e demasiado insustentável nos textos para ser mostra de conhecimento. O Professor parece pensar que Feyerabend começou a pensar a sua filosofia da ciência com a publicação do livro Contra o Método e diz que ele “passou o resto da sua vida a justificar o que aí tinha escrito”. Fiolhais ganharia alguma coisa em saber que essa obra é apenas um “resumo filosófico” de muitos trabalhos anteriores sobre filosofia da ciência, trabalhos muito mais técnicos e detalhados e que dão um fundamento sólido ao principal argumento deste livro. Este livro é o fecho de um argumento e não o princípio. Se Fiolhais conhecesse os estudos anteriores ganharia algo em compreensão, evitando dizer, por exemplo, que Feyerabend é um anarquista. A forma como Fiolhais fala de diversas obras de Feyrabend mostra a sua superficialidade. Diz que Adeus à Razão é uma obra mais séria, quando essa obra é a recolha dos piores textos (dos textos mais relativistas) de Feyerabend, aquela obra onde melhor se nota que o gosto excessivo pela polémica pode levar ao disparate. Diz que “a conversa do Diálogo sobre o Método é por vezes fiada, ainda que parecendo afiada”, com a qual “não vale a pena perder muito tempo”. Fiolhais teria ganho mais em perder algum tempo a compreender as matérias sobre as quais se pronuncia. Na verdade (embora na versão portuguesa falte um dos três diálogos originais), é nessa obra que Feyerabend esclarece o que se pode chamar “o desvio relativista” de um certo momento do seu percurso. Mas isso é feito com a subtileza de um diálogo filosófico, com muitas referências para a obra anterior, e isso escapa ao apressado Fiolhais. É típico: muitos leitores arrogantes têm tropeçado em muitos exemplares de diálogo filosófico.

Em segundo lugar, Fiolhais faz de conta que Feyerabend é um “habilidoso”: diz que se trata de “um provocador culto”, que “estudou história das ciências” e que “sabe escrever escorreitamente”. Não: Feyerabend tinha formação científica de nível superior (em física) e essa foi uma das razões do seu impacte em filosofia da ciência: sabia do que falava. Além do mais, para quem tenha tendência para querer defender os cientistas dos pretensos ataques de Feyerabend, convém que se perceba que Feyerabend se dedicou principalmente a atacar certos filósofos (por inventarem teorias disparatadas sobre a ciência), muito mais do que a "atacar" os cientistas. A sua grande tese, nesse ponto, é que a maioria dos filósofos da ciência não percebem o que os cientistas fazem. Mas essa parte Fiolhais não captou.

Fiolhais não é o primeiro, nem será o último, a falar de Feyerabend sem perceber o que ele escreveu. Inúmeros comentadores marginais (isto é, que falam de certos assuntos pela rama, por ouvir falar, e não por verdadeiro estudo) consideram que Feyerabend é partidário de um anarquismo epistemológico, que isso o leva a ser contra o método científico e que, portanto, propõe como princípio metodológico para a ciência a consigna "vale tudo". Os mais apressados citam frequentemente o seguinte excerto de Contra o Método: “existe apenas um princípio susceptível de ser defendido em todas as circunstâncias e em todas as fases da evolução humana. O princípio: vale tudo.”
Ora, na verdade, o que escreve Feyrabend é o seguinte: “a ideia de um método fixo, ou de uma teoria fixa da racionalidade, assenta numa visão demasiado ingénua do homem e das condições sociais que o rodeiam. Para os que têm olhos para a riqueza do material histórico, e não pretendem empobrecê-lo a fim de satisfazer os seus instintos mais baixos, a sua fome de segurança intelectual sob a forma de clareza, precisão, "objectividade", "verdade", é evidente que existe apenas um princípio susceptível de ser defendido em todas as circunstâncias e em todas as fases da evolução humana. O princípio: vale tudo.”
Pretendem alguns que Feyerabend defende aqui o princípio metodológico “vale tudo”. Mas quem assim pretende não percebeu o que lá se diz. O que aí se diz é que o princípio "vale tudo" se torna inevitável no caso de se pretender que o método seja válido em todas as circunstâncias e em todas as fases da evolução humana. Ora, o início da declaração mostra que Feyerabend não alinha nessa pretensão. Trata-se, portanto, de afirmar que o método científico muda. Como escreveu Fernando Gil, em Provas: “Feyerabend quer sobretudo sublinhar a variedade (mais do que a irracionalidade) dos procedimentos da prova”.
Conviria, portanto, ler com cuidado. Mas, especialmente para aqueles que são académicos, poder-se-ia pedir, sem exagero, que, se têm dúvidas, sigam o autor que citam e criticam e, assim, tomem precauções contra a precipitação. Feyerabend explicou, mais tarde, com mais pormenor, o significado dessa declaração. Faz isso logo em 1978, em Science in a Free Society (Londres, New Left Books, 1978), em vários pontos. Quase no início (pp. 39-40): “Note-se o contexto da declaração. "Vale tudo" não é o princípio de uma nova metodologia recomendada por mim. (...). Se a minha descrição está correcta, então tudo o que um racionalista pode dizer acerca da ciência (...) é: vale tudo”. Pode concordar-se ou não, mas o que se lê é uma crítica aos racionalistas (seja o que for que Feyerabend quer dizer com isso, não vamos discuti-lo aqui). Acrescenta: “(...) "vale tudo"não expressa uma convicção minha, é um resumo jocoso do predicamento do racionalista: se queres padrões universais, se não podes viver sem princípios que se apliquem independentemente da situação, da forma do mundo, das exigências da investigação, das peculiaridades do temperamento, então eu dou-te tal princípio. Será vazio, inútil e ridículo — mas será um "princípio". Será o "princípio" "vale tudo"”. (p. 188) Quanto ao pretenso projecto de Feyerabend para "acabar com o método", para continuar apenas na mesma obra: “as regras e padrões não são abolidos — não podemos encetar a investigação sem qualquer equipamento metodológico — mas são usadas à experiência e mudadas quando os resultados não são os esperados” (p. 166).

Em resumo: um blogue excelente como o De Rerum Natura devia cuidar do que lá se escreve. Não deveria vender-nos gato por lebre: não nos deveria dar textos pretensamente bem informados quando eles afinal não passem de comentários apressados sobre coisas que os seus autores apenas contactaram de forma muito superficial.
Já agora, se o Carlos Fiolhais achar que lhe faz jeito, posso até oferecer-lhe o meu livro A Filosofia da Ciência de Paul Feyerabend (Piaget, 1998). Lá encontrará estas coisas explicadas com muito maior detalhe.

"Darwin" ou "homenagem rocambolesca a Palmira F. da Silva"


Ponto 1) Palmira F. da Silva publicou, no excelente De Rerum Natura, um post intitulado Dawkins e as más companhias.

Ponto 2) Hoje fui ao teatro, ver a peça Darwin e o canto dos canários cegos, de Murilo Dias César, que está n'A Barraca.

Ponto 3) O texto da peça é tão revelador que gostaria de o publicar aqui na íntegra. Como isso é impossível, publico um texto do encenador, Helder Costa, que A Barraca distribui como parte da “introdução” ao espectáculo.

Ponto 4) Está contra todos os pontos da orientação editorial deste blogue publicar textos tão longos, mas desta vez não resisto a mostrar que, quanto a más companhias, cada um tem que aguentar com as suas. Segue-se, pois, sem tirar nem pôr, transcrição do texto “As ideias e as armas”, de Helder Costa, para o espectáculo "Darwin e o canto dos canários cegos", que vai n'A Barraca.



Darwin, o genial cientista a quem Marx dedicou o 1º volume de “O Capital”, tinha razão quando receava o impacto da sua teoria sobre a origem das espécies.

Não teve a morte de Giordano Bruno nem sofreu as perseguições e humilhações de Galileu, Newton, Lamarck e tantos outros, mas foi achincalhado, desprezado, e ainda hoje há quem o considere um sinistro “anti-Cristo”.
No fim do século XIX Engels escreveu um pequeno texto fascinante - ”O papel do trabalho na transformação do macaco em homem” -, onde provava que o esforço de procurar alimentação ou a necessidade de defesa iam criando adaptações à mão, o que demonstrava que o trabalho era o verdadeiro motor do desenvolvimento. E foi com trabalho, com a observação, o empirismo, que os nossos antepassados primitivos descobriram a arte de semear e cultivar, o movimento das marés, da lua, inventaram o calendário, o dia, o mês, o ano, e mais investigação e mais estudo desenvolveram a Ciência, e assim reinventaram a vida.

Neste novo milénio, algo de surpreendente está a acontecer: o reaparecimento do Criacionismo!

Os milhares de estudos que acabaram por provar que os seres vivos existiam devido a mudanças, transmutações, evoluções, e tudo tinha sido criado por fenómenos físicos, materiais, foram miraculosamente enterrados na poeira do tempo e substituídos por um acto misericordioso, inacessível, não comprovável, de um Deus desconhecido.

Essa “teoria” tomou novo folgo pela mão da Administração Americana do Bush (que os cartoonistas desenham com fácies e trejeitos simiescos, o que é evidentemente um insulto para os macacos). De repente, naquele país que simbolizou – até certo ponto – os sonhos da democracia moderna, desabou uma hecatombe do reaccionarismo mais retrógrado: em alguns Estados o criacionismo é estudado nas Universidades e Darwin ou é proibido ou é posto a par dessa dita “teoria científica” que defende que a criação do mundo é ipsis verbis a descrição do “Génesis”! Este é um dos sinais mais importantes da estratégia de dominação mundial do imperialismo Americano: as armas, os satélites espiões, o napalm, a corrupção de Estados lacaios, a tortura, a droga, o gaz mortífero, tudo isso se revela insuficiente como provam as derrotas do Exército USA um pouco por toda a parte. Então, o que é necessário? Atacar as ideias, destruir os avanços da civilização, restaurar a boçalidade e o primitivismo, apostar na ignorância, no misticismo, no esoterismo. Para, mais facilmente, se manipular o povo marionette.

Felizmente essa ofensiva contra a inteligência não está a fazer o seu caminho. Pelo contrário, despertou as consciências de cientistas, artistas e profissionais de todos os sectores para uma verdade indiscutível: a História não segue um caminho linear, e é frequente o reaparecer da barbárie e da amoralidade.

Já Darwin, citando Heraclito, escrevia “no mundo tudo se transforma”. E é essa a lição para hoje e para o futuro: na esteira de Darwin e milhares de outros, o nosso TRABALHO é esclarecer, discutir, polemizar, impedir o renascimento do obscurantismo.

Para prevenir a PAZ, ao contrário de prevenir a GUERRA, basta saber que a IDEIA é mais importante do que qualquer ARMA.

Hélder Costa


Esta é a minha "homenagem rocambolesca a Palmira F. da Silva".

17.5.07

Isabel Durão Pires Barroso de Lima

No passado dia 17 de Abril publiquei aqui uma posta (Jaime Durão Gama Barroso) onde mostrava o meu espanto por Jaime Gama, alto dirigente do PS e por esse partido indigitado para presidente do Parlamento, apoiar a renovação do mandato de Durão Barroso à frente da Comissão Europeia. O meu espanto derivava do seguinte: dada a conjugação das regras e das práticas institucionais da União, isso significa que Gama deseja que a direita vença as próximas eleições para o Parlamento Europeu.

Tenho de vir hoje aqui reafirmar a minha posição, porque parece ter pegado a moda, entre alguns socialistas, de desejarem perder as próximas eleições europeias. Hoje é a ministra da cultura, Isabel Pires de Lima, que diz apoiar a reeleição de Durão Barroso. Tudo com o devido destaque no Diário Económico.
Em boa verdade, isto não me fez gostar menos da senhora, porque nesse pano já não restava muito para cortar...

Pataxó Hã Hã Hãe


Como seria belo este mundo se a nossa capacidade de estimar a diversidade que nele existe não fosse tão pequena...

Na Bienal do Livro de Salvador tivemos a oportunidade de ver alguns índios do povo Pataxó Hã Hã Hãe, que lá se encontravam para lançar um livro feito com os seus próprios testemunhos. Apesar de termos ficado contentes com esse quase-contacto esporádico, ele fez-nos ter um pouco mais de consciência da nossa ignorância. Nada sabemos desse povo, nem dos muitos outros povos índios do Brasil. Assim não podemos de facto usufruir da rica diversidade humana do nosso mundo.

Por isso daremos aqui, em futuras ocasiões, algum testemunho dos nossos esforços para tentar compreender um pouco dessa realidade.


(Índios Pataxó Hã Hã Hãe na Bienal do Livro de Salvador, onde foram lançar um livro seu. 18 de Abril de 2007. Foto de Porfírio Silva.)

16.5.07

Energias renováveis


"Sinto nostalgia do período anterior à economia pós-combustíveis fósseis e pós-urânio!"
(Cartoon de Marc Schober)
(Clicar sobre a imagem para aumentar.)

15.5.07

Homenagem a Bronislaw Geremek e ao bom senso comum


A história mais ou menos recente está cheia de casos destes: quando um regime iníquo e opressor é substituído por um regime democrático, coloca-se geralmente a questão de saber o que fazer aos expoentes do regime deposto, ou, pelo menos, aos seus agentes que tenham tido responsabilidades pessoais directas nos actos mais condenáveis. Em Portugal essa questão colocou-se com o 25 de Abril. Apenas um punhado dos principais líderes do regime deposto se viu forçado ao exílio e poucos membros da polícia política foram incomodados. Há sempre os que clamam, em nome da justiça, por vingança. E há sempre os que, mais interessados no futuro do que no passado, clamam por clemência em nome da convivência. Mais recentemente, certas transições optaram pela clemência, mas acompanhada de processos de reconhecimento público das tropelias antigas: é o caso das “comissões de verdade”, como teve a África do Sul depois do fim do apartheid.

Normalmente não chegamos a poder fazer a experiência de como seriam as coisas se tivéssemos optado pela outra via histórica. Mas por vezes isso torna-se possível. A direita extrema e irresponsável que actualmente toma conta da Polónia deu-nos a oportunidade de verificar para o que podem servir os processos que, em nome da justiça, promovem a vingança do passado. A “lei da descomunização” obriga muitos milhares de pessoas, mais exactamente cerca de 700.000 (nomeadamente todos os que tenham funções públicas) a declarar por escrito que não colaboraram com a antiga polícia política, sob pena de destituição dos seus cargos. Cumulativamente, os arquivos são usados para perseguir pessoas que supostamente colaboraram e para ameaçar todos os declarantes de que podem vir a ser apanhados em falso. Apesar de se saber que muitos dos documentos “comprometedores” são falhos de credibilidade, por terem sido originados por situações de coacção exercida pelas autoridades comunistas (a "colaboração" não era sempre espontânea). O processo tem servido para instalar uma enorme tensão na sociedade polaca – e em particular para os partidários do poder instalado amedrontarem todos aqueles que não se vergam aos seus ditames. Esse é, aliás, o perigo geral destes processos.

O caso mais gritante foi o de Bronislaw Geremek. Geremek, hoje com 75 anos, teve um papel importante na democratização (antigo comunista, foi conselheiro de Lech Walesa no sindicato Solidariedade, que representou nas negociações para passar do regime comunista ao regime demcrático) e, não tendo nada a esconder do seu passado, recusou, por uma questão de princípio, subscrever a tal declaração. Tendo sido ministro dos negócios estrangeiros da Polónia pós-comunista entre 1997 e 2000, sendo agora deputado no Parlamento Europeu, viu a Dieta (parlamento polaco) votar que, por tal recusa, o seu mandato de deputado europeu deveria ser cassado.
Agora, o tribunal constitucional daquele país acaba de declarar parcialmente inconstitucional a lei que permitia tais abusos. Veremos como evolui a situação. Contudo, e desde já, uma coisa é certa: aqueles que pensam que chafurdar no passado é necessariamente a melhor via para preparar o futuro devem reflectir nesta situação. Aqui, o passado foi ressuscitado para fins mesquinhos de política imediata, para amedrontar a sociedade como um todo, para fazer reviver as feridas antigas e trazer de volta as velhas divisões, para colocar os arquivos do estado no papel de guilhotina ao serviço da vingança. Esse risco, julgamos nós, está sempre presente neste tipo de processos.

14.5.07

Estrangeirados de estimação


Por razões que não vou aqui explicar, há dois blogues (um recente, o outro recentemente reactivado) que actualmente me servem de olhos emprestados para ver o mundo. Sendo que esses olhos emprestados se abrem hoje em coordenadas diferentes daquelas em que de momento encontro poiso. Não sou eu que vou dizer aqui o que não dizem lá os dois donos desses olhos expatriados, nem vou fornecer chaves de leitura que poderiam ser apenas formas de estreitar o que eles podem significar. Nem vou explicar os meus gostos e as minhas solidariedades. Mas deixo os endereços dessas duas gazetas de novos futuros estrangeirados:

Uma Rua ao Frio

Uma Alfacinha em Paris

Política racional


O que é uma "política racional"? Será uma "política geométrica", com régua e esquadro mas sem pessoas, sem atenção ao concreto, às feridas que doem na carne?

Então, será de seguir o seguinte exemplo. Na figura abaixo temos um esquema, apresentado num relatório à Assembleia Nacional francesa em 1789, sobre as bases da repartição proporcional. Apresenta-se, e é isso que vemos na imagem, um esquema do que seria uma divisão "idealmente regular" do território da França em quadrículas iguais. Será assim a política racional?


11.5.07

O confuso Médio Oriente


O actual Médio Oriente parece confuso. É mesmo confuso. Já vem sendo confuso há 5000 anos, mais coisa menos coisa. Para ver a dança dos impérios, clicar na ligação abaixo e, depois, clicar no "play". Só isso: custa apenas minuto e meio...


http://www.mapsofwar.com/images/EMPIRE17.swf

A pista veio de Ciências Sociais e Jurídicas.

10.5.07

A última proposta de Carmona Rodrigues


Fontes extraordinariamente informadas (note-se que não digo "bem informadas", mas apenas "informadas") dizem-nos (note-se que não escrevo "informam-nos", mas apenas "dizem-nos", o que também pode significar "mentem-nos") que Carmona Rodrigues deixou a última reunião da vereação da câmara de Lisboa sem cumprimentar ninguém, não por mera falta de educação, mas por estar muitíssimo revoltado com o facto de não ter sequer conseguido agendar aquela que, no seu íntimo, sempre esteve pensada como a sua última proposta em qualquer circunstância. Tratava-se, podemos escrever, de uma proposta para uma homegagem póstuma a si mesmo: uma estátua que os nossos criativos, a partir dos esboços do próprio Carmona, recriam no boneco que publicamos abaixo.

Segundo a sua ideia a estátua deveria intitular-se "Dinamismo Realizador".


(Budapeste, Março de 2006. Foto de Porfírio Silva)

9.5.07

Leviathan de trazer por casa


Parece ter-se generalizado o discurso de que o nosso país vive em gravíssima falta de liberdade. Em sufoco. Debaixo da pata controladora de uma só pessoa. Com a imprensa (quase) amordaçada.

Uma única qualificação encontro para esse discurso: ridículo. Esse discurso vem, as mais das vezes, dos que sentem os seus privilégios ameaçados. Daqueles que pensavam que todos podiam ser alvos de políticas públicas, excepto eles próprios.

Há neste país quem não tenha acesso à palavra. Há, sim senhor. Mas são os mesmos de sempre: os pobres, os velhos, os que trabalham até se esquecerem de que a liberdade existe, os pequeníssimos agricultores dos recantos esquecidos, as vítimas das redes de imigração clandestina e do tráfico de seres humanos. Por exemplo. Esses não têm acesso à palavra. Estão tão radicalmente desprovidos de palavra que nem pensam em falar.

Esses não podem escrever nos jornais todos os dias que não têm acesso à palavra. Mas não é nesses que pensam os que se queixam de falta de liberdade.

Cuidado com gritar pelo lobo...

8.5.07

Corrupção e cidadania


Que o governo pretenda chamar a atenção dos funcionários públicos para o facto de que a corrupção de servidores do estado existe, não pode ser tolerada, tem de ser combatida; que o governo tenha o projecto de "ensinar" os servidores do estado a reconhecer quando possa estar a acontecer corrupção daqueles que devem proteger (profissionalmente) o bem comum; que o governo assuma que esse flagelo tem de ser combatido pela denúncia da prevaricação - tem sido apontado por uma casta imensa de comentadores moralizantes como pidesco, bufaria, estímulo do espírito delatório, etc. etc. etc.

Confesso a minha estupefacção. Não me refiro à questão de sermos legalmente obrigados a denunciar um crime de que sejamos testemunhas. Não é uma questão legal o que aqui me traz. Refiro-me à ideia de civismo. Proteger o bem comum. Agir contra os que minam os fundamentos da vida comum. Contrariar os que roubam do bolo que é de todos. Impedir que interesses particulares ilegítimos assaltem a máquina humana que deve servir a comunidade. Obstar a que aqueles que são pagos para servir, em vez disso se sirvam a si mesmos por caminhos ínvios. Refiro-me à ideia de que o que é de todos deve ser protegido por todos. Para não ser "bufo" tenho de ser cúmplice dos que roubam e dos que atraiçoam a confiança que a comunidade neles deposita? Para não ser "pidesco" tenho de olhar para o lado quando alguém atraiçoa a sua missão de "servidor público"?

Estranha noção de comunidade é esta que subjaz a tais teorias: cada um que se safe, legal ou ilegalmente, desde que as autoridades (polícia, tribunais) não consigam incriminar-nos. Um povo que tem essa noção do funcionamento das suas insituições é realmente um povo pobre: pobre, porque lhe falta qualquer noção de comunidade civilizada, de bem comum, de dever partilhado, de responsabilidade, de coisa pública. Os teóricos do "fecha os olhos e deixa roubar quem rouba" são os teóricos da barbárie, da incivilidade, do salve-se quem puder. Os teóricos da selvajaria colectiva vestem as roupas da moralidade individual. Não é novo.

Mapa do mundo online

XKCD oferece este mapa das comunidades online.

Este pode ser visto clicando aqui e a partir daí podem encontrar-se outros.

7.5.07

Duas derrotas


1. Ségolène perdeu. Em França é quase sempre assim. Raras vezes a esquerda tem chegado ao topo do poder de estado. Os barões socialistas logo começaram a morder na senhora. Isso também é habitual em França: não há qualquer pudor em entrar nos barcos das vitórias quando elas existem, tal como ninguém se inibe de morder os derrotados como se o mundo estivesse todo nas suas mãos e eles perdessem necessariamente pela sua incapacidade intrínseca. Havia, talvez, um candidato melhor do que Ségolène: Strauss-Kahn. Mas, mesmo os homens que talvez sejam grandes, deviam perceber que a história passa por outras coisas maiores que as suas cabeças brilhantes. Neste caso, a vitória de uma mulher para presidente, pelo lado da esquerda, teria um significado próprio. Por uma razão simples: porque é uma entorse à democracia que isso nunca tenha acontecido. Mas "homens inteligentes" como certos dirigentes socialistas franceses são incapazes de perceber isso, são incapazes de compreender que a mudança não se faz só com "ideias", "projectos", "renovações social-democratas". Que a mudança tem de acontecer com "acontecimentos". E seria um acontecimento que uma mulher "quase normal", esposa e mãe, tivesse completado a sua carreia política com a presidência. Hilary Clinton talvez lá chegue, quem sabe.

2. Jardim venceu. Não tenho fígado para falar muito nisso. Mas uma coisa tem de se dizer: aquilo não é uma democracia e é uma vergonha que os órgãos próprios do Estado, a começar pelo Presidente da República, olhem para o lado e façam de conta que não vêem nada. Tal como é uma vergonha que o PS "de Lisboa" ainda venha saudar a vitória do ditador. Que asco. Se aquilo fosse o ambiente que nos tocasse a nós viver, aqui no continente, suportaríamos essas palmadinhas nas costas? Aqueles que criticam com tanta facilidade o distante presidente da Venezuela calam-se a isto. Isso prova que Jardim há muito tempo começou a exportar o terror das suas ilhas para o continente: exporta os silêncios obrigados, os medos, a auto-censura, a conivência com o inaceitável. Tudo começa sempre assim.

Que domingo!

5.5.07

A sabedoria prática dos filósofos (regra geral)

Este vídeo Monty Python é por demais conhecido dos amantes dos circuitos de vídeo da chamada Web 2. De qualquer modo, porque não podemos permitir que um leitor deste blogue desconheça este hino ao engenho, à sabedoria prática, ao sentido da realidade dos verdadeiros filósofos, aqui o deixamos.

Por favor, notem como, até numa tarefa tão complexa como um jogo de futebol, ao fim de algum tempo pelo menos um filósofo encontra uma forma efectiva de atingir um determinado resultado. Isso justifica, nesse caso, um verdadeiro "Eureka". Quem poderá, depois disto, pretender que os flósofos andam às voltas no campo sem ter a noção do que há a fazer?




4.5.07

Rigor: ainda o debate Ségolène-Sarkozy (continuação)

Para ilustrar o post anterior intitulado "Rigor: ainda o debate Ségolène-Sarkozy", acrescentamos agora um cartoon original de Marc Schober (um francês perdido por essa Europa).

Banda Desenhada, coisa de miúdos…


BLANKETS. An illustrated novel by Craig Thompson. Editado por Top Shelf Production (Marietta, Georgia, nos States) Saiu em 2003. O exemplar de que eu sou o feliz proprietário pertence à sexta impressão, de Dezembro de 2005.


Para aqueles que lamentem que os miúdos (e as miúdas) só leiam coisas menores, como BD, informo: Blankets tem quase 600 páginas, é a preto e branco, está escrito em inglês. Foi feito (escrito e desenhado) por um moço nascido em 1975 – e é, em parte, autobiográfico desse mesmo moço, o tal Craig Thompson. O que se passa nesta novela gráfica são coisas simples da vida dos adolescentes: a chatice de ter que partilhar o quarto com o irmão, as batalhas com esse mesmo irmão pelas pequenas coisas ridículas da vida que são tão importantes; as coisas estranhas que acontecem quando os adolescentes começam a acreditar em coisas sérias; as confusões dos amores juvenis e de crescer com esses amores; as coisas bonitas que não se podem descrever por palavras mas ficam lindamente num traço preto que parece simples mas é muito expressivo. Mas essas coisas simples podem dizer muito: o amor, o idealismo, a desilusão, a alienação, os medos e os pesares. Um grande livro.





3.5.07

Rigor: ainda o debate Ségolène-Sarkozy


Tinha um assunto para esclarecer, para mim mesmo, desde ontem. Do pouco que sei sobre a questão do nuclear em França, parecia-me evidente que os números dados por Sarkozy acerca do peso do nuclear no consumo energético naquele país eram claramente fantasiosos. Pude agora confirmar, de acordo com o Figaro on-line (jornal de direita, insuspeito de simpatia por Royal) os números em causa.
Ségolène falou de 17% como peso do nuclear no consumo de electricidade em França, quando o correcto apontaria para 17% como peso do nuclear no consumo de toda a energia (e não apenas da electricidade). A candidata socialista cometeu, pois, uma imprecisão. Entretanto, segundo o Figaro, o número de 50%, adiantado pelo candidato da direita, "não corresponde a nada no domínio do consumo de energia". Quer dizer: a socialista cometeu de facto uma imprecisão, enquanto o populista de direita pura e simplesmente inventou um número qualquer para não ter de admitir em directo e ao vivo que não tinha a mais pequena ideia acerca de um dado essencial de um tema de que falava como um doutor.
Lamento parecer sectário, mas a verdade é que este pecadilho acontece muito a uma certa direita: julga que a esquerda, por definição, é estúpida e ignorante e, por isso, acha-se no direito de dizer qualquer coisa como se fosse a verdade mais sublime mesmo quando está apenas a fantasiar.

“Caixas de Memória”, de Bartolomeu dos Santos, na Galeria Ratton


Inaugura a 10 de Maio, e estará patente a partir do dia seguinte e até finais de Julho, a exposição “Caixas de Memória”. Bartolomeu dos Santos (n. 1931) viu mundo e actualmente vive e trabalha em Londres, Sintra e Tavira, tem exposto e está representado em colecções por esse mundo fora. Do texto que a Galeria Ratton divulgou retomamos o que segue, especificamente sobre esta exposição.
“Caixas de Memórias”, tem um duplo sentido, denotativo e simbólico. A maior parte das obras são caixas, objectos utilitários que o artista subverte, desvia da sua finalidade, transforma em objecto “outro”, não deixando de questionar em tom provocatório o novo estatuto que adquirem: “Is this art?”

As caixas servem, por definição, para guardar objectos, ocultá-los, preservá-los. As caixas de Bartolomeu dos Santos abrem-se na transparência de uma face de vidro, revelam segredos guardados na memória. São caixas mágicas onde sorriem sereias aladas, pacientes Penélopes à espera de Ulisses. Nas imagens femininas transparece uma terna ironia de que reencontramos eco nas alusões explícitas a Fernando Pessoa e ao seu heterónimo Ricardo Reis, seres de uma realidade mítica criada pela poesia. Estas figuras remetem para a viagem, para um mar que conduz a ilhas de prazer ou a portos seguros.

A maior parte das caixas desvendam memórias menos pacificadoras, contêm uma amálgama de ruínas: pedaços de objectos devastados, calhaus, estilhaços de espelhos, fragmentos ilegíveis de um passado que desconhecemos. Outras ainda transportam-nos para oceanos de perigos e batalhas, onde se inscrevem referências históricas alusivas a guerras e naufrágios.

Não é apenas “Under the surface” que nos revela tesouros submersos, cada uma e, no seu conjunto, todas estas caixas e telas são “flashes” de uma narrativa maior, em que individual e colectivo, mito e História, ficção e realidade, morte e memória se entrelaçam em vida habitada por sonhos e pesadelos, corpos doces e destroços, barcos de viajantes-poetas e navios de guerra, muitas interrogações e algumas certezas.


EXPOSIÇÃO A VISITAR NA GALERIA RATTON, Rua Academia das Ciências, 2C, em Lisboa


(Agradecemos que a Directora da Galeria Ratton tenha autorizado a divulgação aqui destes elementos: texto supra e imagens infra.)









2.5.07

Debate presidencial Ségolène vs. Sarkozy

Acabou há momentos o debate da segunda volta das presidenciais francesas entre Ségolène Royal e Nicolas Sarkozy. Está fora de causa fazer aqui um balanço de ganhos e perdas, porque sou suspeito (prefiro a candidata socialista), mas há duas ou três pequenas notas que não posso deixar de apontar.

Em primeiro lugar, noto que Ségolène diz "quero um país de empreendedores" e Sarkozy diz (e repete) "quero um país de proprietários". Isso diz tudo da diferença entre uma certa esquerda e uma certa direita: o apelo ao ser "proprietário", como primeiro objectivo, é o apelo a uma condição, a um estatuto, a "um estado" - mas não é um apelo à acção, nem à responsabilidade perante a comunidade, nem à imaginação criadora. Uma direita que apela à aspiração de ser "proprietário" é uma direita inspirada nas classes possidentes e ociosas do antigo regime, não é sequer a direita da iniciativa económica e do gosto pelo risco. Ao contrário, a esquerda que diz querer um país de empreendedores (ou de empresários, como mais directamente devíamos traduzir a palavra francesa) é uma esquerda que promete ser capaz de ultrapassar o estatismo, o "tudo-ao-estado", o culto da dependência como solução generalizada. Aí, voto Ségolène.

Em segundo lugar, Sarkozy teve várias oportunidades de mostrar a sua falta de carácter. Especialmente, quando citou repetidas vezes o marido de Ségolène, inclusivamente questionando-a sobre se ela seguia as opiniões dele. É certo que o marido dela é também o chefe dos socialistas, mas mesmo assim o abuso dessa referência parece pouco normal quando as coisas se mantêm no plano das ideias e das atitudes que importam à função pública, não extravasando para a mesquinhez.

Em terceiro lugar, aplaudo que Ségolène tenha reivindicado a sua condição de mulher e de mãe (de quatro flhos), porque é cada vez mais urgente para a qualidade da democracia que se abram as portas do armário e as mulheres cheguem, em força e rapidamente, às mais altas responsabilidades das nossas democracias.
Há, de facto, qualquer coisa em jogo no próximo domingo em França.

A Turquia na União

O actual momento social e político na Turquia constitui uma boa oportunidade para reflectir sobre um tema fundamental: a eventual adesão desse país à União Europeia.

Sejamos breves. Muitos têm dúvidas acerca da bondade dessa adesão. Outros respondem acusando os autores dessas dúvidas de quererem que a UE seja um "clube cristão", supondo que a oposição à adesão turca é uma rejeição cultural-religiosa. Nós, é claro, não equacionamos a religião como um motivo de apreciação de qualquer adesão: basta lembrar o papel actualmente representado pela Polónia na UE, para vermos um catolicíssimo país a agir como um terrorista institucional dominado pelo egoísmo nacional, pela irresponsabilidade e pelo mais rasteiro desrespeito pelas normas da convivência. Não, a questão com a Turquia não é essa. Não é a diferença de religião que está em causa.

A actual situação turca relembra outro aspecto da questão. Mais uma vez, como ciclicamente tem acontecido desde há muitos anos, são os militares que colocam o seu peso na balança para preservar o carácter laico do estado turco e para impedir que a república seja tomada por aqueles que, mais depressa ou mais devagar, a querem transformar num "braço secular" de uma certa visão religiosa do mundo. Se não fossem os militares turcos e as suas intervenções, umas vezes mais próximas do golpe de estado e outras vezes mais aparentadas com conselhos amigáveis, a Turquia há muito que teria soçobrado ao obscurantismo de feição muçulmana. Os militares têm sido, na Turquia, o seguro de vida dos que querem viver num país relativamente "moderno".

Ora, o problema que se põe com a eventual adesão da Turquia à UE é este: não poderíamos, depois, permitir que os militares dessem golpes de estado num país membro da União! Desculpem o cinismo: a Turquia não pode aderir à União Europeia pela simples razão de que não devemos impedir os militares turcos de continuarem a exercer o seu papel moderador nessa república sempre à beira do abismo obscurantista.