29.11.20

As esquerdas em tempos difíceis

No rescaldo da discussão e votação do Orçamento de Estado para 2021, aprovado com o voto contra do BE e a abstenção do PCP e do PEV (para mencionar apenas o voto daqueles que subscreveram as “posições conjuntas” com o PS a 10 de Novembro de 2015), vale a pena pensar um pouco sobre os caminhos que, a partir do que tem acontecido nos últimos tempos, se abrem à esquerda portuguesa quanto à forma de assumirmos as nossas responsabilidades perante o país. Deixo as minhas reflexões em quatro pontos.
 
1. Só encontro uma explicação para todo o processo que levou ao voto do BE contra o OE: os dirigentes bloquistas estimam que a pandemia, de uma maneira ou de outra, terá efeitos tão devastadores na sociedade e na economia do nosso país que trará como consequência política o fim deste ciclo político, concretizada em alguma forma de derrota do PS e de afastamento do seu governo. Creio que, na realidade, o BE não está propriamente interessado em discutir quais as melhores políticas para enfrentar a crise: o BE está convencido de que não há nenhuma política capaz de evitar pelo menos um ou dois anos de grande tensão social, de grande conflitualidade, de grande dificuldade de lidar serenamente com a incerteza pandémica, pelo menos um ou dois anos de grande sofrimento para largas camadas da população portuguesa – e, na visão bloquista, essa é uma boa oportunidade para humilhar o PS.
As divergências de hoje, entre o BE e o PS, não são significativamente diferentes das divergências que tivemos durante os últimos cinco anos, razão pela qual tem de haver uma explicação para, agora, essas mesmas divergências produzirem uma ruptura que não tinha sido publicamente perspectivada antes. A razão é simples: o BE não consegue desperdiçar o que lhe parece uma oportunidade para derrotar o PS, que assume como o seu principal alvo eleitoral. (Faz parte da estratégia a prazo do BE destruir o PCP, mas os bloquistas entendem que, nessa frente, a dissimulação rende mais: não deixar que se torne demasiado pública a completa incomunicabilidade política entre comunistas e bloquistas.) A pandemia está no cerne da estratégia política do BE. Tal como a República de Weimar foi derrotada, não apenas pelas suas próprias insuficiências, mas, em larga medida, pela problemática herança deixada pelo militarismo e pela monarquia autoritária, também há quem espere queimar o PS na luta contra a pandemia, embora a pandemia não seja da responsabilidade do PS.
 
2. O que deve, face a uma situação destas, pensar um militante socialista? Depende.
Há militantes socialistas que sempre desconfiaram, secreta ou publicamente, da solução política que combinava um governo minoritário do PS e uma maioria parlamentar plural formada pelos diferentes partidos que se reclamam da esquerda. São os que entendem que a democracia portuguesa viveria bem dispensando permanentemente o milhão de portugueses que volta e meia votam no PCP ou no BE, nunca lhes permitindo fazer parte de uma maioria política. São os que não compreendem que a crescente fragmentação política, um fenómeno que a Europa conhece bem, aconselha maior capacidade para fazer compromissos e criar maiorias a partir da diversidade. São, também, os que nunca entenderam que o PS não se podia permitir, depois das eleições de 2015, ficar no parlamento a suportar a continuação de um governo PSD/CDS, um governo de Passos e Portas, numa espécie de “abstenção violenta” continuada, depois de termos feito toda a nossa campanha contra esses governantes e as suas políticas. Os que ainda assim pensam estarão, talvez, convencidos de que o desentendimento à esquerda é bom e já tardava.
Entretanto, outros militantes socialistas entendem que a solução política construída a partir das posições comuns do PS com o BE, o PCP e o PEV, assinadas em Novembro de 2015, sendo um caminho difícil, é um caminho necessário. Conto-me no grupo dos que pensam dessa maneira. Uma vez que já expliquei essa minha posição muitas vezes, deixo repetida apenas uma ideia: toda a esquerda europeia, incluindo as correntes social-democratas, socialistas e trabalhistas, mas também outras correntes que se consideram mais à esquerda, atravessam um longo período de grande fragilidade política, por vezes de desorientação programática, e também de debilidade eleitoral, a tal ponto que precisam de construir uma capacidade de diálogo que permita, não apenas resistir, mas também construir soluções novas, progressistas em vez de conservadoras, para os desafios que enfrentam as nossas sociedades (não só os novos desafios, como a transição climática ou a transição digital, mas também os velhos desafios nunca resolvidos, como as desigualdades sociais e a insuficiente aplicação dos direitos humanos à vida concreta das pessoas). 
Quero dizer: não vai voltar a haver “frentes de esquerda” como no passado, com pretensões de fusão programática, mas precisamos de ser capazes de construir maiorias políticas (e sociais) de uma esquerda plural que tenha amadurecido – isto é, onde saibamos viver com as nossas diferenças, sem as ignorar e sem as tentar eliminar, onde desapareça o sectarismo dos que se sentem na função de ditar o que é ou não é ser de esquerda.
 
3. A observação do que se passou este fim-de-semana com o congresso do PCP, a culminar um processo político de vários meses, incluindo a onda de anticomunismo primário que a direita portuguesa tentou ressuscitar nos últimos tempos, obriga a colocar a seguinte questão: qual é a natureza do PCP e do BE, designadamente no que toca à fronteira entre reforma e revolução, e como é que isso deve ser tido em conta por um PS que não se desinteresse da esquerda plural?
No plano ideológico mais geral, o PCP e o BE seriam partidos revolucionários. Partidos que concebem a mudança de sistema político e social pela força: uma revolução é essa ruptura, não é uma coisa que se decida no parlamento. O PS é um partido reformista, que não concebe nenhuma ruptura violenta do sistema político e social à margem da democracia representativa. Então, como pode conceber-se uma colaboração política entre o PS e aqueles partidos?
Sem andar muito às voltas, a resposta é simples. O PCP nunca deixou de ser ideologicamente revolucionário, mas, como é da tradição, não avança para nenhuma iniciativa revolucionária sem verificar condições objectivas para a mesma, designadamente, uma adesão de sectores importantes das classes trabalhadoras à ideia de uma mudança profunda de sociedade, adesão essa normalmente provocada por uma degradação brutal das condições de vida que, pelas suas consequências concretas e sentidas, exclui a esperança dos explorados em melhorarem as suas vidas no sistema dominante. O PCP sabe que, de momento, não existem essas condições revolucionárias – e, ao conseguir ganhos concretos para aqueles sectores da população (“os trabalhadores e o povo”) que considera representar, em termos de salários, pensões, direitos laborais e sociais, está, objectivamente, a afastar a perspectiva de um momento revolucionário. Enquanto a democracia portuguesa for capaz, mesmo que de forma descontínua, de dar perspectivas de melhoria de vida a camadas suficientemente largas da população, a natureza revolucionária do PCP esperará pelas condições objectivas, como esperou até hoje. 
Já no BE, que sem dúvida teve origem em grupos com ideologias revolucionárias, essa perspectiva está claramente esquecida na prática política. Como Catarina Martins reconheceu na campanha das últimas legislativas, o programa eleitoral do BE era social-democrata (no velho sentido do termo, que também é o que eu uso). Mas, mais do que isso, qualquer tentação revolucionária foi, há muito, substituída pela mais corriqueira identificação do PS como inimigo principal, como primeiro alvo eleitoral, “na forma tentada”: tentar forçar o PS a qualquer forma de acordo que dê ao BE o estatuto de força principal da esquerda da esquerda, para, primeiro, subalternizar o PCP e, simultaneamente ou depois, forçar a entrada no governo para tirar ao PS o estatuto de único partido governante da esquerda. O BE, que é um partido política e ideologicamente mais maduro do que o Podemos espanhol, não suporta a ideia de ter sido menos bem-sucedido do que Pablo Iglesias a forçar os socialistas a aceitarem esse parceiro de governo. Não vejo que o acesso a responsabilidades governativas deva estar vedado a um partido como o BE; o que vejo é o BE excessivamente focado em objectivos tácticos, que giram principalmente em torno da disputa com o PS em prejuízo de estratégias políticas de longo prazo mais desejáveis: aquelas que seriam capazes de reunir diferentes correntes de esquerda em transformações estruturais do país, focadas no combate às desigualdades e na promoção dos direitos sociais.
Não acredito na unidade da esquerda. A esquerda andou demasiado tempo agarrada à ideia de unidade, que se transformou numa ideia de homogeneidade – e, daí, em tentações de hegemonia. Acredito, sim, na diversidade da esquerda. Na vantagem democrática da diferença. Na esquerda plural. Em fazer da diferença, da diversidade, da pluralidade – em vez de uma fraqueza, uma força.
 
4. Ainda continuo a pensar que a missão do PS é ser o centro da esquerda: o partido do socialismo democrático, que vem na linha do reformismo e não da revolução (que quer transformar a sociedade sem recurso à violência revolucionária), que é democrata antes de ser socialista, que toma como missão diminuir as desigualdades e as injustiças num quadro democrático, assumindo que a mobilização de outras forças de esquerda para a prossecução desses objectivos é indispensável neste momento histórico de grande enfrentamento com as forças do retrocesso e de ataque à democracia. A quem pergunta: "como é isso possível depois dos acontecimentos recentes?" eu respondo: isto é ainda mais necessário depois dos acontecimentos recentes.
Quer isto dizer que os socialistas devem excluir as pontes com outras forças democráticas, mesmo da direita? Não. Uma direita democrática faz falta a um país democrático e a esquerda democrática deve ser capaz, com ela, de garantir a configuração adequada do regime para garantir uma democracia efectiva e com resultados, incluindo a alternância sem a qual não é possível concretizar a democracia. Mas há que separar as questões: devemos garantir uma democracia com alternativas democráticas de governo, mas devemos fazer a nossa parte para oferecer ao país uma esquerda plural capaz de responder ao país. Ainda mais nos tempos difíceis que vivemos. Sem perdermos o rumo e sem cometermos o erro daqueles que escolhem os tempos mais difíceis para exercer o sectarismo.
 
 Porfírio Silva, 29 de Novembro de 2020
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28.11.20

As vacinas, os poderes e as liberdades

Deparamos com todas as questões fundamentais em tempos difíceis. E, nestes tempos de pandemia, tropeçamos todos os dias com falantes de línguas humanas que usam essa ferramenta essencial da nossa humanidade para largar à solta o medo e deixar que o pânico se sobreponha ao estudo das matérias na definição do rumo de acção a seguir.

 

O exemplo mais recente que encontro está relacionado com a futura vacinação contra a covid. Ontem espalhou-se a notícia de que alguém colocava como possibilidade de planeamento que os maiores de 75 anos não teriam acesso à vacina da covid. Uns falavam em “recomendação de Bruxelas”, outros citavam especialistas que alertavam para a inexistência de testes (pelo menos em certas vacinas) em maiores de 75 anos e o imponderável que seria vacinar grupos para os quais não existia evidência dessa natureza, outros apontavam para a comissão técnica de vacinação como autora de uma exclusão das pessoas com mais de 75 anos dos grupos prioritários. Outros pareciam deixar pairar a sugestão de que estava tomada uma decisão política de discriminação com base na idade. A onda cresceu a tal ponto que o Primeiro-Ministro e o Presidente da República vieram desmentir a existência de tal decisão – e também afirmar que não seria tomada uma decisão de discriminação no acesso à vacina com base em critérios puramente etários. Nos telejornais mais seguidos continuou, no entanto, o foco no alarme. Com um impacto directo nas pessoas, incluindo as pessoas pertencentes aos grupos etários visados, como pude constatar em casos concretos.

 

Há um leque de questões decisivas implicadas nesta matéria.

 

Desde logo, a decisão política não é uma mera cópia do parecer técnico. A decisão política tem de assumir a incerteza científica e não tomar por certo o que é incerto. E, face à incerteza, a decisão política tem, mesmo assim, muitas vezes, de escolher – sim, com risco de falhar. A decisão política tem de contar com a adesão ou rejeição de qualquer medida pela comunidade. Se é certo que o decisor político não pode evitar tomar uma decisão só porque ela terá oposição; se é certo que o decisor político tem de assumir, como parte do seu trabalho, a tarefa de explicar as suas decisões, mesmo quando tenha de as impor segundo as funções que legal e democraticamente lhe estão cometidas, porque os cidadãos não são súbditos e têm o direito de conhecer os elementos de avaliação das opções tomadas – também me parece ser certo que, por vezes, o decisor não pode tomar uma decisão precisamente por ela ser de tal modo incompreensível para a generalidade dos cidadãos, para além de qualquer explicação que se dê, que a tentativa de a aplicar minaria a coesão social e a confiança necessária ao próprio funcionamento de uma sociedade organizada democraticamente. A autoridade democrática não é uma autoridade qualquer, porque depende da legalidade e da representação, que não são factores instantâneos (o representante não age, a cada momento, como o representado está a pensar nesse momento), mas a autoridade democrática também depende de um grau razoável de consentimento actual (não apenas retrospectivo, no futuro).

 

Por outro lado, o debate democrático como espaço da decisão política, e os próprios mecanismos da decisão política, não podem ser saudáveis se excluirmos a liberdade do exame técnico. Os ignorantes pensam que o conhecimento científico consta de uma espécie de tábuas da lei entregues por um deus ao seu profeta Moisés no monte Sinai. Os ignorantes pensam que a ciência sabe tudo, ou deveria saber tudo, ou que sabe o que sabe com toda a certeza. Os ignorantes recusam entender que a comunidade científica, se já aprendeu muito sobre esta pandemia, tem ainda muito por descobrir; recusam entender que as novas vacinas terão um grau de segurança previsto pelos padrões de verificação que foram seguidos, mas que nem tudo foi testado, nem tudo é certo. E que, portanto, quando passarmos à fase de aplicação, é preciso ter em conta tudo o que se sabe e tudo o que se sabe que não se sabe. Para encontrar o melhor caminho é preciso deixar que os cientistas e os especialistas possam analisar, possam discutir, possam suscitar questões, possam apontar limites. É preciso deixar que os cientistas e os especialistas tenham toda a liberdade para contribuir para essa análise, sem anátemas, sem preconceitos, sem moralismos. Não temos de seguir, depois, o parecer dos especialistas – porque a decisão política não é uma decisão técnica –, mas temos de garantir que os especialistas tenham liberdade para analisar as matérias e dar o seu parecer. Se, com campanhas de imprensa e com notícias alarmistas, os especialistas forem pressionados a não dizerem o que pensam, estamos a prescindir do que precisamos para não tomarmos decisões às escuras.

 

O que aconteceu ontem, no palco mediático, foi atacar as instâncias de análise técnica sobre o plano de vacinação, numa acção que, intencionalmente ou não, redunda numa limitação desse recurso fundamental para uma boa decisão: temos de ouvir os especialistas e temos de garantir que eles dão o seu parecer em toda a liberdade. Aparentemente, há especialistas que duvidam de que seja acertado incluir na primeira linha de vacinação grupos etários cuja reacção à vacina não foi bem estudada nas fases de teste. Podemos fazer disso uma orientação estrita no plano de vacinação? Provavelmente, não. Temos de ter essas cautelas em conta? Evidentemente, sim. Mas, sobretudo, temos de evitar que estratégias comunicacionais alarmistas sejam um travão a que os especialistas dêem a sua opinião sobre essa matéria.

 

Outro domínio de matérias que temos de esclarecer, em relação com esta questão, diz respeito às fronteiras das decisões do Estado e das decisões dos cidadãos. O Estado informar os cidadãos de que o resultado de tal ou tal vacina é particularmente incerto para pessoas em tal ou tal condição, aconselhando-as a ponderar bem a toma dessa vacina, é uma coisa. Impedir esses cidadãos de tomar essa vacina, seria outra coisa. Até porque o raciocínio estatístico tem o seu domínio de aplicação, dizendo respeito aos “grandes números” (não no sentido matemático estrito, mas no sentido de um retrato para uma população) de uma maneira que não se traduz directamente numa aplicação prescrita a cada caso individual. Idêntico cuidado será preciso aplicar se, com a evolução da situação, se colocar a necessidade de ponderar a obrigatoriedade de toma de uma vacina.

 

Todas estas precauções, necessárias para manter em funcionamento os mecanismos de análise e preparação da resposta a situações difíceis e complexas como a que vivemos, são descartadas e maltratadas por quem, ávido de qualquer coisa que alimente a espiral de medo, envenena o espaço público com mensagens imprecisas que, em vez de informarem, alarmam. Nem tudo deveria ser pasto para a ânsia de escândalo de meios de comunicação aparentemente impreparados para pensarem no serviço público. Porque quem explora o poder do medo não nos torna mais capazes de vencer a pandemia; pelo contrário, gasta em tiros oportunistas, de curto prazo, as energias necessárias para a resposta dura, demorada e persistente que, só ela, nos poderá salvar como comunidade humana.

 
Porfírio Silva, 28 de Novembro de 2020
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22.11.20

Agora, o congresso do PCP


 
 
Uma das heranças do salazarismo, o qual tanto moldou a nossa vida colectiva - e ainda molda a mentalidade de muita gente -, é o desprezo pela democracia e pelo papel que os partidos desempenham na democracia. Os dois desprezos (pela democracia e pelos partidos políticos) não são a mesma coisa, mas, no presente, vão dar ao mesmo, na medida em que os partidos têm uma função específica na representação democrática em concreto que é insubstituível aqui e agora. Durante o salazarismo, o partido único era o partido dos que não tinham partido, como dizia o ditador. Agora, parece mal dizer-se que se é contra a democracia (embora se possa sugerir a sua suspensão por seis meses..), mas há livre curso para minar os partidos políticos.
 
Esta subcultura contra os partidos está sempre a vir ao de cima. Quando ela se mistura com o anticomunismo primário, os efeitos são imediatamente evidentes. Como se nota, agora, a propósito da pretensão de alguns para proibir a realização do congresso do PCP. (Ah, dizem que é adiar: adiar é proibir agora). 

Anteriormente, os mesmos fizeram imenso barulho contra as comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República. (Sobre isso escrevi aqui: Marcelo e o 25 de Abril no Parlamento.) Depois, foi a Festa do Avante! (sobre isso escrevi aqui: Não há festa como esta.) Entretanto, os mesmos de toda essa indignação não abriram a boca sobre o congresso do partido da extrema-direita xenófoba, onde os delegados, enquanto debatiam moções repugnantes, estavam todos sentadinhos muito chegadinhos uns aos outros, berrando muito e sem máscara. Regressam os mesmos, agora, para zurzir no PCP e no governo.

Sobre tudo isto queria deixar ditas três coisas.

Primeiro: o governo, no respeito pela legalidade, não podia interferir com o congresso de qualquer partido político. A Lei nº 44/86, que é o "Regime do estado de sítio e do estado de emergência", lei essa que veio ao nosso ordenamento jurídico durante um governo de Cavaco Silva, prescreve, na alínea e) do número 2 do seu artigo 2º: "As reuniões dos órgãos estatutários dos partidos políticos, sindicatos e associações profissionais não serão em caso algum proibidas, dissolvidas ou submetidas a autorização prévia." Seria, pois, ilegal fazer aquilo que Rui Rio e o resto da gritaria pretendem do governo.

Segundo: pela nossa parte, no Partido Socialista, há vários meses que suspendemos a realização do nosso Congresso Nacional, que se realizará quando entendermos que há condições sanitárias para que o mesmo aconteça em segurança, tal como suspendemos os congressos federativos, que se realizaram mais tarde do que o previsto, em regimes diferenciados consoante as situações em cada distrito (presencial, à distância ou em regime misto). As reuniões dos nossos órgãos internos têm-se realizado em larga medida à distância, ou com poucas pessoas numa sala em Lisboa e o resto dos camaradas espalhados por pequenos grupos em diversos pontos do país. A democracia não está suspensa - e isso é verdade também internamente, no partido dos socialistas. Não pretendo dar lições ao PCP, nem a ninguém, mas a nossa opção foi por esta dose de cautela.

Terceiro: é evidente (para quem queira ver) que, dos vários eventos de massas que se têm realizado durante a pandemia, aqueles cuja organização coube ao PCP têm primado pelo maior rigor, não se registando as perturbações da Fórmula 1 nem do Santuário de Fátima, por exemplo. Os comunistas terão os seus defeitos, mas a desorganização é um pecadilho que não lhes quadra. E percebe-se bem que os comunistas, que tanto sofreram perseguições governamentais durante tantos anos, se apeguem aos seus direitos como partido político. Aliás, como disse Jerónimo de Sousa, está, talvez, em causa um dever, até mais do que um direito: o dever de não desleixar a organização colectiva em tempos tão desafiantes.

Dito isto, pode perguntar-se: um socialista não deveria estar calado e deixar o PCP arcar com os custos políticos desta sua opção, que não é popular? Concedo que seria o mais cómodo. Não seria, contudo, o mais justo: nós fizemos diferente, mas os comunistas têm direito a fazer como decidiram fazer e não podemos ficar indiferentes à tentativa de os linchar politicamente por causa de exercerem os direitos de acção política que lhes estão consagrados - a eles e a todos os demais. Nesse sentido, o PCP está a defender os direitos de todos os que não querem que, na enxurrada da pandemia, vá também a democracia. Por isso temos de falar, mesmo quando é a casa dos outros que está a ser atacada.

 
 
Porfírio Silva, 21 de Novembro de 2020
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20.11.20

Sobre a investigação em filosofia

Deixo aqui, sem mais comentários, um comunicado da Sociedade Portuguesa de Filosofia
 
 
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Posição pública da Sociedade Portuguesa de Filosofia sobre o concurso de projetos em todas as Áreas científicas (FCT, 2019-2020), enviada à Fundação para a Ciência e a Tecnologia

A FCT publicou a 6 de novembro os resultados do Concurso de projetos de investigação em todos os domínios científicos aberto em 2019. Nesse concurso foram submetidas e avaliadas 62 candidaturas pelo painel de “Filosofia”. Apenas 3 foram propostas para financiamento. É uma taxa inferior a 5,0%, a mesma em todas as áreas e que corresponde a uma queda muito acentuada relativamente aos c. de 35% financiados no concurso anterior.

Estes resultados e outros elementos do concurso estão a suscitar grande perplexidade e decepção entre a comunidade filosófica, razão pela qual a Direção e o Conselho Científico da Sociedade Portuguesa de Filosofia tomam a iniciativa de solicitar à FCT outra abordagem a estes concursos e sobretudo a correção de situações verificadas em particular no painel de Filosofia e que consideramos lesivas da investigação de qualidade. Por essa razão propomos mudanças que reintroduzam a confiança dos investigadores num procedimento que todos sabemos que é muito competitivo, mas esperamos que seja justo, transparente e robusto do ponto de vista científico.

No plano geral, o financiamento destes concursos carece de reforço, sendo atualmente exíguo para uma comunidade ativa e que cresceu muito nos últimos anos e é incentivada a procurar financiamento para os projetos que queira desenvolver.

Também não parece justificada a opção de maximizar o financiamento dos projetos, sem oferecer modalidades para projetos de diferentes dimensões consoante o financiamento necessário para o seu desenvolvimento, o que permitiria o desenvolvimento de mais projetos. Nesse sentido, seria de utilidade o regresso ao financiamento de projetos exploratórios, por exemplo sem necessidade de contratação de pós-doutorados, que tornaria possível a manutenção em atividade de um maior número de grupos e de investigadores.

Já no caso concreto do painel de Filosofia, verifica-se um equívoco científico injustificado, integrando neste painel os projetos em “História e Filosofia da Ciência e Tecnologia”, que teve como consequência o acolhimento de projetos de “história da ciência e da tecnologia” (que nada têm que ver com Filosofia), acarretando também a atribuição da coordenação do painel de Filosofia a um historiador da ciência e não a um filósofo, como a designação do painel e a grande maioria de candidaturas submetidas fazia esperar. Esse viés introduz um outro: a maioria dos membros do painel trabalham em áreas e com metodologias afins às do Coordenador, ficando de fora quase toda a investigação fundamental em Filosofia e mesmo a investigação em História da Filosofia exterior à chamada “filosofia prática”. Lamentamos que esta dupla situação, que já era visível e comentada no concurso anterior, não tenha sido corrigida e agora tenha sido acentuada.

Tendo auscultado um grande número de participantes neste concurso, vimos propor que a FCT empreenda uma discussão com as Unidades de Investigação e os Departamentos em Filosofia, para a qual também estamos disponíveis, de modo a:

1) Tornar claros os padrões de referência para as sub-áreas da Filosofia e a investigação corrente a nível nacional e internacional, que a constituição do painel de avaliação não contempla;
2) Encontrar uma composição equilibrada no plano científico (e mesmo na origem nacional) para a coordenação e para o painel de avaliação, dentro da área que o define: a Filosofia;
3) Autonomizar as sub-áreas que pertencem a outros domínios científicos, separando a “História da Ciência e da Tecnologia” da “Filosofia da Ciência e da Tecnologia (que enquanto tal não precisa de ser individualizada, pois também não o são outras sub-áreas da Filosofia). Sub-áreas de “História da Ciência e da Tecnologia” poderão ser incluídas em cada painel onde sejam relevantes (tal como em Filosofia já está a “História da Filosofia”);
4) Ampliar o financiamento disponível para o próximo concurso;
5) Criar modalidades de projetos exploratórios de modo a manter mais equipas em atividade.

As opções tomadas pela FCT e os resultados até agora anunciados neste concurso têm um forte efeito desincentivador da investigação de qualidade. Tememos pela abrupta interrupção de um trabalho que vem sendo desenvolvido com crescente projeção internacional desde há alguns anos. Não será possível manter este envolvimento dos investigadores com procedimentos que cortam as melhores esperanças, e mesmo a confiança nos procedimentos, com que todos participaram no concurso.

A Sociedade Portuguesa de Filosofia endereçou estas propostas à FCT e fica à disposição para colaborar em todas as iniciativas que se considerem adequadas para encontrar as melhores soluções para superar as situações identificadas.

Lisboa, 19 de novembro de 2020

(Comunicado subscrito pela Direção e pelo Conselho Científico da SPFil)
 
 
 
 
Porfírio Silva, 20 de Novembro de 2020
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