26.4.20

Marcelo e o 25 de Abril no Parlamento



O Presidente da República fez ontem, na cerimónia de comemoração dos 46 anos do 25 de Abril de 1974 no parlamento, um grande discurso. Foi um grande discurso, porque foi inteiramente sobre o momento que vivemos, sem fugir a nenhuma das questões que afligem o país: e isso é o melhor da política, quando o pior da política é falar de cor e salteado sobre coisas abstractas sem ligar ao que realmente está a acontecer às pessoas em cada momento. Foi um grande discurso, porque foi um discurso de adesão sem peias à democracia representativa: quando, tantas vezes, tem mostrado a face de um presidencialista para lá da Constituição, deu-se ao exercídio de uma empenhada explicação do papel da Assembleia da República na nossa democracia. Escrevi, no calor do momento, a seguinte mensagem nas redes sociais: "Na cerimónia do 25 de Abril na Assembleia da República, o PR deu o peito às balas, contra a demagogia e pelas instituições da democracia representativa. Eu, que nem sempre concordo com o PR, aqui declaro o meu respeito." Não me arrependo nem um segundo de o ter escrito.

O Presidente da República deu uma resposta cabal e inteira aos que, por estes dias, falaram da cerimónia do 25 de Abril no parlamento como «"democracia celebratória" da elite oficial, à margem dos cidadãos», mostrando como sempre volta à superfície, mesmo na "elite intelectual e letrada", mesmo entre o selecto grupo dos constitucionalistas, a pulsão antiparlamentar e o desprezo pela representação (como fizeram aqueles que disseram que "aprovar leis pode ser trabalho, mas uma cerimónia comemorativa não"). Curioso é ter visto quem, na ânsia de atacar o parlamento e a cerimónia, tenha ido buscar o exemplo do Papa Francisco sózinho na Praça de S. Pedro. Queriam dizer que também os deputados deviam seguir o exemplo, assim cometendo dois erros reveladores: primeiro, mostraram não distinguir entre uma teocracia (tecnicamente, como Estado, é isso que o Vaticano é) e uma democracia representiva, onde a diversidade é essencial e se corporiza no parlamento, nunca numa única pessoa; segundo, fazem de conta que valorizam o gesto de Francisco, mas, na realidade não o entenderam: se não o entenderam como acto simbólico, também não podem entender a força simbólica de uma comemoração no parlamento. Quem não entende a carga simbólica de uma cerimónia de Estado não passa de um funcionário do pensamento cinzento.

O Presidente da República ainda fez notar que há grandes diferenças entre uma democracia e uma ditadura no modo de lidar com estas situações. Falou, designadamente, na liberdade de informação. Talvez falte a alguns o registo adequado a perceber quão concreta esta questão é para o nosso país. Mas, para todos os que temos memória histórica, é notável a diferença que faz enfrentar um desafio desta dimensão em democracia e não em ditadura. Basta comparar o respeito pelas pessoas com que esta crise tem sido gerida com o absoluto desrespeito com que o governo da ditadura lidou com as vítimas das grandes cheias de 1967 no nosso país. A tentativa de usar a censura para esconder a dimensão da tragédia, que pode ter causado 700 mortes, onde 20 mil casas foram danificadas, prejuízos de mais de 17 milhões de euros a preços atuais, uma desgraça que atingiu os mais pobres, embora não tenha tocado os centros de poder. Enquanto os estudantes, do superior e do secundário, se mobilizavam como voluntários para socorrer a população, o governo de então primou pela inoperância e as forças de segurança foram usadas para perseguir os estudantes em vez de apoiarem as populações. (E Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos estudantes que se mobilizaram nesse momento.) É usar a memória e olhar para história, e comparar, para entender a diferença que faz enfrentar os momentos difíceis da vida de um povo em ditadura ou em democracia. E, por isso, faz todo o sentido assinalar solenemente o Dia da Liberdade no parlamento, na instituição da pluralidade democrática, precisamente nestes tempos difíceis e dolorosos de pandemia. Porque tudo o que está a ser feito é mais bem feito também por vivermos em democracia, porque a democracia é algo concreto nas nossas vidas e não um ideal abstrato.

(Sugiro duas leituras sobre as cheias de 1967: Cheias de 1967. A tragédia que Salazar quis esconder e Cheias de 1967: A miséria que a natureza esmagou e a ditadura encobriu .)

Quero voltar, aqui, a algo que já escrevi noutro sítio, no princípio desta polémica: não acho que sejam fascistas, ou anti-democratas, todos os que estiveram contra, ou tiveram dúvidas, sobre a cerimónia do 25 de Abril na Assembleia da República. Mas creio, isso sim, que foram empurrados por duas motivações erradas: ou estavam mal informados sobre o formato da cerimónia (que sempre esteve muito longe das 700 pessoas que costumavam estar dentro daquela sala em ano normal) ou estavam a alinhar numa interpretação estreita, demasiado funcionalista, do papel do parlamento numa democracia representativa - longe dos regimes onde o parlamento é decorativo.

Mas Marcelo Rebelo de Sousa explicou tudo isto muito melhor do que eu (como se pode verificar aqui: Discurso do Presidente da República na Sessão Solene Comemorativa do 46.º aniversário do 25 de Abril).

Porfírio Silva, 26 de Abril de 2020
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24.4.20

Saber o que não sabemos



Um artigo de Laurenz Gehrke, no POLITICO (“5 things we still don’t know about the new coronavírus”, 24 de Abril) aponta algumas das incertezas que persistem quanto ao coronavírus na base da pandemia que nos ameaça de contrairmos a Covid-19. Resumo, rapidamente.

1. Podemos ser reinfectados? Planear o regresso a algum tipo de normalidade seria mais fácil sabendo exactamente como está a imunização da população. Pensemos nos que já foram infectados e recuperaram: se estivessem imunizados poderiam voltar à actividade. Mas, segundo previnem alguns especialistas, isso não é certo. Não basta poder detectar a presença de anticorpos para estarmos certos de que a pessoa está imune. Esta incerteza revela que, mesmo tecnicamente, a ideia dos “passaportes de imunidade” é disparatada.

2. Como é transmitido o vírus? Sabe-se que o vírus se propaga através de gotículas respiratórias, as quais, expelidas, podem acumular-se em superfícies onde, depois, apanhamos o vírus e o levamos à boca, ao nariz ou aos olhos. Mas não se sabe quanto tempo sobrevivem nessas superfícies. E esse desconhecimento afecta o tipo de precauções que são certamente úteis.

3. O vírus será travado pelo bom tempo? Parece que não, na medida em que países com tempo quente e húmido nesta altura do ano foram atingidos pela pandemia. Essa ideia inicial era influenciada pela comparação com a gripe comum, que foi abandonada. Mas é cedo para ter certezas.

4. Quem é que o vírus mata? Sabe-se que pessoas com elevadas idades e com outras doenças são mais afectadas, mas também há jovens e adultos que morreram com o vírus. O problema é que não há explicações claras para isto, nem para certas variações étnicas que alguns pensam ter detectado.

5. Como é que o vírus mata? A resposta à pergunta anterior seria mais clara se se percebesse por que é que certas pessoas morrem da COVID-19 enquanto outras só têm ligeiros incómodos: se se percebesse a razão da letalidade em alguns casos. Alguns pensam que importa a quantidade de vírus a pessoa foi exposta na fase de infecção. Outros pensam que a genética do paciente pode tem importância. Mas não há certezas.

É importante, principalmente para um bom desempenho das autoridades na definição do melhor rumo para lidar com a pandemia, que se reconheça a incerteza do nosso conhecimento acerca dos factores da pandemia. Contrariamente aos que defendem, em cada momento, que se deve fazer tudo (sendo “fazer tudo”, para alguns, equivalente a “fazer qualquer coisa que alguém reclame que pode ser bom”), é preciso medir prudentemente o que se deve e o que se não deve fazer em cada fase, sabendo que a resistência das pessoas e das estruturas sociais não é eterna nem indefinidamente elástica. Por exemplo, muitos dos que mais cedo reclamaram “que tudo fique fechado”, são, também, dos que mais cedo exigiram “que se abra, que se abra”.

Há uma muito longa tradição de pensamento sobre a ciência e a sua relação com a sociedade, quer contra os que desprezam a importância da ciência na compreensão do mundo e das nossas possibilidades de acção, quer contra a ingenuidade dos que pensam que a ciência sabe sempre tudo. Contudo, também essas reflexões, por vezes, falham rotundamente o alvo. Este momento, de pandemia e de luta da ciência para tentar reduzir a incerteza, é uma boa oportunidade para reconsiderar algumas teses sobre a incerteza na ciência. É o que vou fazer no que resta deste texto.

Bruno Latour e a sua sociologia da ciência

Vamos acompanhar um pouco do pensamento de Bruno Latour, numa sua obra, já antiga, de sociologia da ciência: Science in Action. How to Follow Scientists and Engineers through Society, 1987.

Para Latour, a distinção fundamental para uma abordagem da ciência é a distinção entre "ciência feita" e "ciência em vias de se fazer". Para tornar mais precisa essa distinção, temos de introduzir a noção de "caixa negra". Uma caixa negra é um aparelho, uma série de instruções, um procedimento ou um modelo (por exemplo, a forma da dupla hélice ou um computador) relativamente ao qual, tendo entrado na rotina, deixamos de nos importar com o que "está lá dentro", com a complexidade dos seus mecanismos internos, interessando-nos apenas as "entradas" e as "saídas" dessa caixa fechada. Ora, enquanto à "ciência feita" pertencem as caixas negras, fechadas e fiáveis, na "ciência em vias de se fazer" encontramos controvérsias abertas, incertezas, competição.

Como é que a "ciência em vias de se fazer" se transforma em "ciência feita"? Para dar o ponto de vista de Latour, temos de nos referir brevemente ao seu construtivismo acerca dos factos: a resposta à questão "o que é um facto?" é a resposta à questão "como é construído um facto?". Vejamos como Latour descreve esse processo.

Alguém emite um enunciado (por exemplo, escreve um artigo numa revista científica). Esse enunciado será inserido noutros enunciados e, por essa via, qualificado, transformado: modalizado. Teremos uma modalização positiva se o enunciado é inserido numa sequência onde aparece como uma premissa evidente, fechada, acabada e onde outros enunciados aparecem como consequentes menos acabados e menos evidentes do que o enunciado modalizado. Numa modalização positiva, o enunciado emitido é enquadrado por frases que o distanciam das suas condições de produção e o tomam como suficientemente sólido para que algumas das suas consequências se tornem necessárias. Teremos uma modalização negativa se o enunciado emitido é enquadrado por frases que nos remetem para um questionamento das suas condições de produção e tentam explicar porque é que ele é sólido ou frágil, frases que incidem sobre as pessoas e o trabalho das pessoas que produziram o enunciado. Numa controvérsia científica, o autor de um enunciado apela ao maior número possível de aliados e aos aliados o mais poderosos possível, sendo que "aliado" é todo aquele que modaliza positivamente o nosso enunciado: um documento não é intrinsecamente científico, torna-se científico quando mobiliza aliados numerosos e os exibe. Um enunciado sujeito a modalizações positivas torna-se um facto; sujeito a modalizações negativas torna-se um artefacto, uma ficção: "a uma frase pode ser-lhe oferecida a qualidade de facto ou a de artefacto, segundo a forma como ela é inserida em outras frases." São sequências de modalizações (sequências de frases) que transformam um enunciado num facto ou num artefacto: é essa a natureza do processo de construção dos factos, de fabricação colectiva dos factos.

Deste modo, para Latour, aquilo a que nos referimos quando falamos de um "facto" é o acontecimento de um enunciado ser modelizado positivamente, de maneira sucessiva em numerosos textos e durante várias "gerações" de textos. No entanto, "esse acontecimento não torna [um facto] qualitativamente diferente de uma ficção" e "a força do enunciado original não reside no seu conteúdo próprio, mas na sua presença em artigos ulteriores".

Pergunta-se: mas qual é o papel da natureza neste processo? Escreve Latour que, para que um texto científico seja convincente, não bastam as inúmeras referências que ele contenha, é preciso algo mais - mas esse "algo mais" por detrás de um texto não é a natureza: "ir dos aspectos superficiais dos artigos às suas articulações mais recônditas, não consiste em passar do argumento de autoridade à natureza, já que a passagem se faz através do aumento do número de autoridades, de aliados, de recursos." Acrescenta: "Enquanto as controvérsias duram, a natureza aparece simplesmente como a consequência final das controvérsias. (...) A natureza, entre as mãos de um cientista, é um monarca constitucional que se assemelha muito à rainha Isabel II. Ela lê no seu trono, com o mesmo tom, a mesma solenidade e a mesma convicção, um discurso escrito por um Primeiro Ministro conservador ou trabalhista, segundo o resultado das últimas eleições. Ela acrescenta qualquer coisa ao debate, mas apenas depois dele ter terminado; enquanto dura a campanha eleitoral, ela limita-se a esperar."

Latour vê a ciência como uma sucessão de controvérsias, mas cuja história e desenvolvimento se salda num contínuo fechar de controvérsias: para pôr em causa um facto aceite, será necessário tentar tornar controversas as caixas negras que estão imediatamente por detrás desse facto ou instrumento. Mas essas caixas negras, sendo questionadas, mostram que há, por detrás delas, outras caixas negras mais antigas e mais geralmente aceites - e assim sucessivamente para cada "estrato de questionamento". Embora seja possível, em princípio, abrir todas as caixas negras (factos, procedimentos, instrumentos) que suportam um facto já construído que pretendemos questionar, na prática isso não é possível, porque obrigaria a questionar resultados aceites há dezenas ou centenas de anos e que estão integrados em milhares de instrumentos contemporâneos. O "céptico" necessitaria de tanto tempo, tantos aliados e tantos recursos para impugnar um facto geralmente aceite, que tem de (resignar-se a) aceitar o facto como "objectivo".

Vista nesta óptica, será a ciência mais do que um jogo de forças? Pergunta-se Latour: "... o vencedor [de uma controvérsia] é realmente o mais inocente, o mais racional, ou simplesmente o mais forte e o que teve mais sorte?". Esta pergunta justifica-se, porque "a crítica custa caro" (é preciso mobilizar laboratórios, imensos recursos); porque a literatura técnica ou científica "é feita para isolar o leitor, recorrendo a numerosos outros recursos": instrumentos, dados quantitativos, outros textos, formando vários estratos hierarquizados e entrelaçados que se protegem uns aos outros, progressivamente mais difíceis de questionar e que pretendem ter como efeito a desmobilização dos opositores. Ora, "os cépticos também são seres humanos; há um momento a partir do qual já não podem lutar contra tais obstáculos".

Para Latour, a análise precedente justifica a sua afirmação de que a ciência é realista e relativista: realista em relação aos resultados obtidos e consolidados (nesta perspectiva, a história da ciência "é uma história que coroa o vencedor com os qualificativos de melhor e de racional e que explica que os perdedores perderam simplesmente porque se enganaram, eram menos bons e menos racionais"); relativista em relação às controvérsias em aberto (as representações são decididas pelos cientistas). Em relação à "ciência feita", às controvérsias fechadas, porque é que não podemos ser relativistas? "Porque o preço da disputa é demasiado elevado para um cidadão médio, mesmo se ele é historiador ou sociólogo das ciências." Ser relativista sobre as partes estabilizadas da ciência é ridículo; ser realista sobre as partes da ciência onde ainda há controvérsia, é grotesco”.

Ora, infelizmente, o que resulta desta análise de Latour é uma justificação pragmática tanto do dogmatismo (aquilo a que chama o realismo da ciência feita), como do relativismo (provisório, antecâmara de novos dogmatismos); uma "mera" constatação dos mecanismos de poder da ciência aplicada, que se salda numa coexistência cúmplice com esses mecanismos (por isso se sente autorizado a declarar solenemente que ser relativista ou ser realista é umas vezes ridículo e outras vezes grotesto, consoante deparamos com dogmas estabilizados ou com dogmas em vias de estabilização).

A abordagem meramente sociológica resulta, assim, numa renúncia. A saída possível é a análise histórica: "[Não há] nenhum facto, nenhuma certeza, nenhuma forma, que não possamos reanimar, reagitar, reaquecer, reabrir. Basta deslocarmo-nos no tempo e no espaço até atingir o lugar onde a caixa negra é o principal assunto de controvérsia dos investigadores e dos engenheiros." Mas se, com Latour, por causa da dificuldade prática de exercer a crítica sobre teorias ou instrumentos amplamente aceites e estabilizados, optássemos pela renúncia a essa crítica, o interesse histórico por controvérsias passadas não passaria de uma mera curiosidade sem consequências ou, na melhor das hipóteses, de erudição inoperante.

O atual momento histórico – a lutar com uma pandemia e faltando-nos muito conhecimento que seria útil a essa luta – é propício a lançar um olhar sobre esta categoria de teorizações. O construtivismo acerca dos factos tem óbvios limites: a ideia de que são meras relações discursivas entre textos que produzem os factos (ou os artefactos) não resiste à prática historicamente presente de lidar com uma pandemia em curso, sendo que as nossas opções custarão vidas e terão efeitos sobre a saúde pública. A ideia de que a fronteira entre um facto e uma ficção é basicamente resultado de uma luta entre textos… é inequivocamente inadequada. Não resiste ao mundo.

Dizer que “algo mais” por detrás de um texto não é a natureza, que a diferença é uma acumulação de meios e autoridades a apoiar um texto (uma teoria), é pobre: mesmo que muitos cientistas digam que X é uma boa vacina contra o SARS-CoV-2, é a dura realidade sanitária que vai decidir essa disputa.
A ciência trabalha por uma sucessão de controvérsias, que vai fechando, é certo – mas o céptico não falharia a tentativa de deitar tudo abaixo (tentando reabrir todas as controvérsias passadas) apenas porque isso daria muito trabalho. Falharia, porque há, realmente, conhecimento acumulado que dá boa prova no contacto com o mundo.

Agora, sim, é certo: a ciência em vias de se fazer só pode progredir se reconhecer o que não sabe, se reconhecer a incerteza. Mas é isso que está a fazer.



Porfírio Silva, 24 de Abril de 2020
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22.4.20

Educação em tempo de pandemia, e depois




Deixo, para registo, a intervenção que fiz hoje, no debate quinzenal com o Primeiro-Ministro na Assembleia da República.

***

Senhor Primeiro-Ministro,

Os portugueses têm dado uma extraordinária resposta a esta crise pandémica que nos caiu em cima. Não só os profissionais de saúde, que estão na linha da frente; também os pais e as mães que estão com os seus filhos alunos em casa; também os trabalhadores do sector social, em várias valências. E todos os milhões de trabalhadores que tiveram de continuar a sair de casa todos os dias para ir trabalhar, para os portugueses continuarem a ter alimentos, eletricidade e gás em casa, recolha do lixo, seguranças nas ruas, medicamentos – até o ensino à distância precisa de gente que saia de casa para o concretizar. O país tem, coletivamente, respondido de forma extraordinária a esta situação.

A escola pública merece um destaque específico neste contexto. E vou usar uma expressão que usam as pessoas da minha terra: os professores têm feito das tripas coração para responder aos seus alunos sozinhos, para não os deixar sozinhos, para não os deixar desligados, para não os deixar sem ensino, para não os deixar sem chão. O país tem um grande muito obrigado a dar aos seus professores e aos seus educadores. As escolas reinventaram-se, fizeram das fraquezas forças. Há dias dizia-me uma professora, já com uma certa idade, “diziam que nós éramos velhos, nós não somos velhos, somos é mais experientes e demonstrámos agora a força da nossa experiência”. E isso é verdade. E acho que temos aqui uma oportunidade para o país perceber realmente a importância que a sua escola pública e os seus professores e todos aqueles que trabalham pela educação valem para este país.

Claro que ficaram ainda mais evidentes nesta circunstância as desigualdades sociais e o seu impacto na escola. É claro que as medidas tomadas não eliminaram as desigualdades, mas o agravamento das desigualdades teria sido muito pior se nada disto tivesse sido feito, se estas medidas não tivessem sido tomadas.

A verdade é que o Governo tem feito também a sua parte. Foi a disponibilização de refeições escolares; foram as escolas abertas para acolhimento dos filhos dos profissionais em intervenção prioritária; foi a adaptação da avaliação às circunstâncias, pôr a avaliação ao serviço da aprendizagem e não o contrário; os concursos realizados em plataforma digital; as matrículas que serão feitas em plataforma digital.

Foi a aposta na educação à distância, combinando vários recursos, o Estudo em Casa, os canais de vídeo na internet, o trabalho por videoconferência, mas, claro, também outros meios desenvolvidos pelos professores – porque o professor, com a sua turma, com os seus alunos, é sempre a força motriz daquilo que de concreto se consegue fazer em cada escola e em cada turma. É que a educação à distância, ao contrário do que muitos pensavam, é muito mais do que tecnologia. É saber fazer, é saber perceber as pessoas em concreto que estão naquela circunstância, é perceber as diferenças, é encontrar as soluções e modulá-las para cada momento.

Pois, se fomos capazes de fazer isso, numa mobilização coordenada em que cada um fez a sua parte, queria perguntar-lhe, Senhor Primeiro-Ministro, para o futuro.

Como vamos fazer? Como vamos, coletivamente, nas escolas, aprender a conviver com o risco que a Covid representa, aprender a conviver com aquilo que aprendemos de novo durante estas semanas, aprender a conviver com aqueles fatores que fizeram com que a escola respondesse melhor. A autonomia das escolas, porque foi a força das escolas quererem responder que permitiu que isto se fizesse. A flexibilização, porque muitos professores me têm dito que, por estarem na flexibilização estavam mais preparados para responder a uma situação destas. A aposta no digital. Foi agora publicado o plano para a transição digital, se calhar até vai ajudar a metermos tudo mais no mesmo barco. O combate às desigualdades.

Senhor Primeiro-Ministro, a pergunta é esta: temos estado a fazer aquilo que é preciso; e para o futuro, qual é o rumo? Porque o governo dar o rumo tem sido um fator fundamental, também em termos de saúde pública nestes tempos, e é isso que queremos que continue a ser.

Muito obrigado.

Porfírio Silva, 22 de Abril de 2020


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20.4.20

Tecnologias contra a pandemia e a favor da liberdade



Num texto anterior (Apps para combater a pandemia, liberdade e segurança) suscitei, de forma genérica, a questão da procura de um equilíbrio entre liberdade e segurança na utilização de dados recolhidos nos smartphones dos cidadãos com vista a acrescentar ferramentas no combate à pandemia Covid-19. Talvez por ser pouco concreto quanto às formas técnicas e tecnológicas de prosseguir esse equilíbrio, recebi o retorno de muito cepticismo. Muitos leitores que se dignaram dialogar comigo não acreditam que seja possível preservar a privacidade com qualquer utilização dessas máquinas e desses procedimentos. Esse cepticismo, saudável, fez-me voltar ao tema para procurar ser mais concreto.

O ponto é este: os direitos digitais dos cidadãos, incluindo os direitos dos pacientes, não podem ser desprezados, ou sequer tratados com ligeireza, nem sequer neste contexto de pandemia. Não obstante, não podemos ser preguiçosos: não devemos descurar nenhuma possibilidade de usar as tecnologias disponíveis no combate à Covid-19, desde que encontremos formas de o fazer que respeitem aqueles direitos. Logo, temos de procurar soluções que façam esse equilíbrio. E temos de estar disponíveis para analisar essas questões.

A boa notícia é que já há quem esteja a trabalhar nesse sentido. Creio que devemos manter-nos informados desses esforços. No que que segue, farei o seguinte: (1) exponho alguns elementos do método sul-coreano de uso das tecnologias para detectar percursos de infecção, assinalando alguns dos perigos contidos nesse método e de outros similares; (2) apresento um exemplo de más práticas ocorrido nos Estados Unidos e procuro encontrar pistas para o que precisamos de práticas aceitáveis; (3) apresento o essencial de um esforço de investigação que está em curso na Europa para encontrar uma solução tecnológica que responda aos equilíbrios de que necessitamos para proteger a nossa saúde e a nossa liberdade, sem descurar nem uma nem outra.

1. O método sul-coreano

Num artigo recente, Max S. Kim (“Seoul’s Radical Experiment in Digital Contact Tracing”, The New Yorker, 17 de Abril) descreve os métodos de seguimento das pessoas com Covid-19 usados pelos sul-coreanos, que incluem a monitorização dos percursos feitos pelos infectados, dos transportes públicos que usaram, dos serviços de saúde onde são tratados – e a divulgação dessa informação. Embora o princípio seja o da preservação do anonimato, o que efectivamente se tem passado está longe desse princípio. Desde logo, porque as autoridades locais têm alguma margem de manobra nas decisões acerca do que podem divulgar, levando a situações de identificação pública dos indivíduos envolvidos. O ponto é que não é preciso dizer explicitamente quem é a pessoa em causa, basta fornecer certas informações para facilitar a identificação: idade, género, bairro de residência, locais públicos (de residência ou de trabalho) que tenham visitado, percursos, transportes usados. Com estas informações públicas, são espoletadas conversas e “investigações” privadas para determinar quem corresponde ao perfil, dando lugar a situações de assédio.

O clima é de exigência popular por mais informação dessa: o público quer saber onde estão os infectados. As autoridades estão pressionadas por exigências de transparência criadas em crises sanitárias anteriores, quando foram acusadas de reter informação. Mas há especialistas preocupados mesmo com os efeitos sanitários dessas medidas: com um forte risco de estigmatização social provoca-se a reacção de esconder a doença e os sintomas, em vez de procurar tratamento adequado, com prováveis efeitos perversos na saúde pública.

A publicação de mapas com percursos detalhados de infectados tem um efeito devastador e inapropriado. O articulista narra uma situação de um café que ficou sem clientes, porque foi publicado o percurso de uma pessoa infectada que tinha estado por breves momentos ao balcão desse estabelecimento à espera de uma bebida.

2. Más práticas a partir da Florida e lições a tirar

A experiência sul-coreana exemplifica uma categoria de abordagens ao rastreamento electrónico que aposta em sistemas centralizados e que usam dados de georreferenciação (que ligam um indivíduo-com-smartphone a uma localização ou a um percurso). Dependendo das tradições culturais, do regime político e do quadro legal, nuns países há menos, noutros países há mais protecção contra os abusos a que os cidadãos podem ser submetidos em consequência da existência destes sistemas.

Um artigo recente de John Naughton (“For non-intrusive tracking of Covid-19, smartphones have to be smarter”, The Guardian, 11 de abril), conta o que aconteceu quando, no fim-de-semana ensolarado de 20 e 21 de março, as praias da Florida se encheram de turistas que, manifestamente, não respeitavam qualquer tipo de distanciamento social. Duas empresas privadas especializadas em georreferenciação de smartphones trabalharam os dados dos telefones dos visitantes da praia de Fort Lauderdale e construíram um mapa que mostrava para onde tinham ido depois dessa visita: para todo o país, incluindo grandes cidades como Nova Iorque e Chicago. Publicaram o mapa no Twitter, ficando a sugestão de que aquela massa de trajectórias podia ser um mapa de espalhamento do vírus. Por muito chocante que a operação tenha sido, até por ser da autoria de empresas privadas e não de autoridades sanitárias, a publicação não revela mais do que informação que existe hoje em todos os países onde as telecomunicações cobrem o mundo do modo total que é o actual.

Este é um aspecto curioso desta questão: muitas pessoas parece não estarem cientes da quantidade de dados que estão continuamente a oferecer a quem os queira apanhar, pelo simples facto de usarem os smartphones da forma que a maioria utiliza. E, de repente, escandalizam-se quando lhes dizem que se estão a recolher os dados que estão incessantemente a oferecer…

A partir deste incidente americano, John Naughton transmite uma mensagem essencial: “Parece que estamos a caminhar para um futuro de pesadelo. Mas não tem de ser assim. Tudo depende de como projectamos e implantamos as capacidades de rastreamento dos smartphones. E ao contrário do que você vai ouvir de fontes governamentais e da indústria tecnológica, existem tecnologias que nos permitirão ter o benefício social (ser capaz de rastrear o vírus e manter indivíduos e autoridades informadas), minimizando ao mesmo tempo as intrusões na privacidade pessoal. Só temos de ser mais espertos.”

Aqui, “ser mais esperto” é recusar os modelos que capturam dados (incluindo dados de localização) para os centralizar num único ponto e os analisar centralizadamente, em troca da promessa de que a privacidade está legalmente protegida. Sem curar de que muitas protecções legais são quebradas sem sequer o podermos saber. E sem curar do risco de esses dados serem capturados (roubados) por terceiros (porque não há segurança informática infalível). E tentando fazer passar despercebido que é ilusória a promessa de que esses dados serão anonimizados, porque é muito difícil anonimizar efectivamente dados com georreferenciação.

Mas “ser mais esperto” também não é recusar a ajuda que estas máquinas podem dar no combate à pandemia. Ser mais inteligente é optar por outros sistemas, descentralizados, que deixam ficar nos smartphones dos utilizadores quase todos os dados, protegendo a privacidade, mas permitindo construir informação útil quando seja necessário e com o consentimento do próprio produtor dos dados.

O articulista menciona, de passagem, vários exemplos de trabalhos em curso neste sentido. Um deles, Safe Paths, é americano, no MIT. O outro é europeu, envolvendo várias “universidades técnicas”. Vamos dar um pouco mais de atenção a este caso.

3. O projeto europeu Decentralised Privacy-Preserving Proximity Tracing

O projeto Decentralised Privacy-Preserving Proximity Tracing (DP-3T) junta uma série de instituições de ensino superior europeias, a saber: EPFL – École polytechnique fédérale de Lausanne, ETHZ (Instituto Federal Suíço de Tecnologia em Zurique), Universidade Católica de Leuven, Universidade Técnica de Delft, University College London, Centro Helmholtz para a Segurança da Informação em Saarbruecken, Universidade de Oxford, Instituto para o Intercâmbio Científico da Universidade de Turim. Vamos dar alguns elementos a partir de um texto dos investigadores, texto de uma fase inicial da investigação, que é público e de que dou o link: Decentralized Privacy-Preserving Proximity Tracing.

O documento dá a ambição do projecto: um sistema de rastreamento de proximidade, em larga escala, que seja seguro e que preserve a privacidade.

O objectivo do rastreamento de proximidade é poder informar alguém de que esteve na proximidade física de uma pessoa infectada, sem revelar nem a identidade do contacto nem o local desse contacto. Para alcançar este objectivo, os utilizadores instalam no seu smartphone uma aplicação e deixam-na a correr continuamente. Essa aplicação transmite um ID (identificador) efémero (não é um ID permanente, muda frequentemente, por exemplo a cada minuto), difundido localmente via Bluetooth. Esta modificação frequente do ID emitido inviabiliza o seguimento por um sistema centralizado que pudesse recolher esses sinais e reconstruir percursos. Um smartphone que esteja a correr a mesma aplicação, e que esteja próximo, pode captar esse sinal e gravar o ID efémero, junto com uma datação pouco fina (por exemplo, “2 de Abril”) e a duração do contacto.

Se uma pessoa é diagnosticada com COVID-19, pode carregar para um servidor central uma representação compacta dos seus dados, mantendo o anonimato. Este passo deve requerer a aprovação de uma autoridade de saúde e depende da autorização explícita do indivíduo que transmite os dados: até aí, todos os dados permanecem exclusivamente no telefone do utilizador. Outras instâncias da aplicação (a serem usadas por outras pessoas), tendo acesso aos dados anónimos do servidor, calcularão localmente (no seu próprio smartphone) se houve um cruzamento perigoso com uma pessoa infectada: basta haver uma correspondência entre ID efémeros registados na sua aplicação e ID efémeros identificados pelo servidor central como tendo sido emitidos pelo telefone de um infectado. Caso a aplicação detecte um risco elevado (contacto dentro do período de contágio), ela informará o usuário. Além disso, o sistema permite que os utilizadores forneçam voluntariamente informações aos epidemiologistas, de modo a preservar a privacidade, para permitir estudos da evolução da doença e para ajudar a encontrar melhores políticas para prevenir mais infecções.

A aplicação não faz o rastreamento de (uma vez que uma pessoa infectada tenha auto-reportado o seu caso, a aplicação não tenta rastreá-la), nem permite determinar locais ou trajectórias de utilizadores infectados (não recolhe de dados de localização, que são difíceis de publicar de uma forma que preserve a privacidade). O servidor central não dispõe de dados que comprometam a privacidade, pelo que, mesmo que o servidor seja comprometido ou tomado, a privacidade permanece intacta. O servidor central apenas serve a comunicação entre as aplicações dos utilizadores, não faz qualquer processamento de dados.

Pretende-se que a aplicação garanta os seguintes requisitos funcionais: Completude: o histórico de contacto é abrangente em relação a eventos de contacto; Precisão: os eventos de contacto relatados devem reflectir a proximidade física real; Integridade: os eventos de contacto correspondentes a pessoas em risco são autênticos, ou seja, os utilizadores não podem falsificar eventos de contacto; Confidencialidade: um agente malicioso não pode aceder ao histórico de contactos de um utilizador; Notificação: os indivíduos em situação de risco podem ser informados.

O sistema deve, ainda, garantir a preservação dos direitos de privacidade dos indivíduos face aos meios digitais, de acordo com o Regulamento Europeu de Protecção de Dados; limitar a recolha de dados ao estritamente necessário para o propósito explicitado (por exemplo, não deve recolher dados de geolocalização); controlar as inferências possíveis a partir dos dados recolhidos (cada entidade envolvida só deve poder aceder aos dados necessários para cumprir a sua parte); impedir a identificação de qualquer pessoa (sem a sua autorização); apagar todos os dados que sejam ou se tornem irrelevantes para os propósitos anunciados; ser escalável para a grandeza da pandemia; funcionar apenas com base em métodos e técnicas já dominadas e não em descobertas a fazer; usar dispositivos geralmente disponíveis. O sistema pode ser usado para além das fronteiras nacionais.

Cabe notar que grandes empresas tecnológicas já tinham começado a explorar estas possibilidades, mas deram, entretanto, suporte a esta abordagem, que será mais poderosa.

O que proponho ao leitor é que devemos pensar nisto, sendo firmes nos nossos valores democráticos e, ao mesmo tempo, estando abertos às possibilidades de fazer mais pelo combate à pandemia, inclusivamente sento criativo no uso das tecnologias. É um debate a que não podemos fugir, por responsabilidade cidadã.


Porfírio Silva, 20 de Abril de 2020

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17.4.20

Apps para combater a pandemia, liberdade e segurança



Um dos desafios mais cruciais que a presente pandemia coloca às nossas sociedades diz respeito ao equilíbrio entre liberdade e segurança. Até certo ponto, nada de novo: a tentação de controlar os desviantes, ou os simplesmente diferentes, nunca desaparece de nenhuma sociedade, em qualquer tempo histórico, e qualquer risco, real e/ou publicamente percecionado, acaba sempre por ser aproveitado por alguns para propor formas de domesticar a massa. Em tempo de pandemia, esse debate torna-se mais complicado, porque a preservação da saúde, especialmente quando claramente associada à preservação da vida, é um valor que colocamos lá no alto das nossas prioridades – tanto racional como emocionalmente, porque a sensação de risco de ficarmos doentes ou morrermos é, claramente, perturbadora das condições para que a comunidade possa analisar as decisões a tomar com serenidade. E, entrando a saúde na equação, não será difícil desequilibrar os frágeis consensos democráticos em matéria tão delicada.

Olhando para a experiência chinesa, quer pelo lado das possibilidades de um governo autoritário na gestão da vida social, quer pelo lado do elevado grau de imposição social das ferramentas tecnológicas de gestão da população, notamos que nem tudo o que poderia eventualmente ser útil para um determinado propósito concreto é, só por isso, possível numa democracia decente. Em certas circunstâncias, os regimes totalitários são mais eficazes do que os regimes democráticos. Infelizmente. Certo, certo, é isto: se tantos prescindem da sua privacidade para usar certas ferramentas que por aí andam, e que não servem tantas vezes realmente para nada, fornecendo carregamentos de informação pessoal sem qualquer cuidado, com que facilidade não se disporão a entregar a privacidade em troca da promessa de estarem mais protegidos em caso de contágio com o vírus que colocou o mundo em pandemia?

Esse debate ainda não entrou em força em Portugal por uma razão muito simples: a maioria de nós ainda acredita que isto se resolve em mais algumas semanas. Poucos entenderam ainda que, enquanto não estiver massivamente disponível uma vacina apropriada, vamos conviver com o vírus. Teremos imunidade de grupo (quer dizer, teremos, coletivamente, criado uma significativa barreira ao contágio) quando uns 60% a 70% da população estiver imunizada. Estamos muito longe disso: com o sucesso da estratégia de isolamento social, não deverá haver sequer 2% da população imunizada. E, como não podemos ficar fechados em casa mais um ou dois anos (até a vacina ter permitido criar a tal imunidade de grupo), vamos ter de sair de casa, mas com duas condições: primeiro, com precauções adicionais (uso de máscaras muito mais generalizado, a acrescentar a um elevado grau de distanciamento nas linhas do que já conhecemos); segundo, com capacidade para identificar o mais rapidamente possível novas transmissões, para secar precocemente os caminhos de propagação do vírus. Só assim podemos regressar à vida (e temos de regressar à vida, a menos que esperemos que os marcianos venham produzir tudo o que nós precisamos para sobreviver) com a suficiente segurança de que o número de contaminados não volta a atingir níveis alarmantes e capazes de rebentar com a capacidade do serviço nacional de saúde.

É aqui que entram as apps, na medida em que elas podem ajudar a detetar caminhos e ocasiões de propagação do vírus, para responder rapidamente a novas ameaças. As autoridades chinesas usaram as apps para controlar o acesso dos cidadãos a certas áreas: quem não podia mostrar o sinal verde no telemóvel, não entrava. Aqui entram, e chocam de frente, duas ideias: para uns, se é para nos proteger do vírus, que se faça; para outros, se põe em perigo a nossa privacidade, e podem seguir os nossos passos e identificar-nos como doentes, nem pensar. Provavelmente, vai ser preciso ir um pouco mais fundo neste debate.

O ponto principal é este: pode saber-se muito acerca de fenómenos em curso numa população sem saber nada de relevante sobre esta ou aquela pessoa concreta. É por aí que temos de prosseguir a exploração. Vou, no que segue, deixar algumas notas sobre uma contribuição recente para este debate.

A rede eHealth é uma rede voluntária, criada ao abrigo do artigo 14.º da Diretiva 2011/24/UE, relativa ao exercício dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços, funcionando como uma plataforma das autoridades competentes dos Estados-Membros que se ocupam da saúde digital.

Ora, muito recentemente (há dois dias, 15 de abril), a eHealth divulgou um documento sobre as aplicações móveis de apoio à rastreabilidade dos contactos na luta da UE contra a COVID-19, propondo uma “caixa de ferramentas” comum da UE para os Estados-Membros.

Esse documento parte do reconhecimento de que as aplicações móveis têm potencial para reforçar as estratégias de rastreio de contactos que podem ser úteis para conter e inverter a propagação da COVID-19, mas também do reconhecimento de que isso só será viável nas nossas sociedades se se encontrarem soluções que minimizem o tratamento de dados pessoais. A dimensão do desafio é acrescentada pela ideia de que a operação seria muito mais poderosa se houver uma estratégia coordenada comum a todos os territórios da UE, em vez de cada um ter a sua abordagem – podendo, até, facilitar a reabertura segura das fronteiras internas.

O que propõem é que se faça um recurso forte às mais recentes soluções tecnológicas de melhoria da proteção da privacidade permitindo, mesmo assim, contactar indivíduos em risco e, se necessário, testá-los o mais rapidamente possível, independentemente do local onde se encontrem e da aplicação que utilizem. O valor acrescentado destas aplicações, dizem, é poderem registar contactos que uma pessoa pode não notar ou lembrar.

Identificam quatro requisitos essenciais para as aplicações nacionais que entrassem nessa estratégia, nomeadamente o de serem:
- voluntárias;
- aprovados pela autoridade sanitária nacional;
- capazes de preservar a privacidade - os dados pessoais são codificados de forma segura; e
- desmantelados logo que deixem de ser necessárias.

O documento considera que é preciso que toda a ação respeite as boas práticas em duas dimensões: basear-se em orientações epidemiológicas aceites (fazer só aquilo que seja necessário para a prossecução de objetivos de saúde pública) e respeitar as regras em matéria de cibersegurança e acessibilidade. Isto implica, nomeadamente, trabalhar para evitar o aparecimento de aplicações potencialmente nocivas não aprovadas, para que se estabeleçam critérios claros para avaliar o sucesso ou insucesso da ação, e garantir que haja um controlo coletivo da eficácia das aplicações, bem como comunicar adequadamente com as pessoas envolvidas.

A jornalista Elena Sánchez Nicolás, escrevendo no euobserver, resume assim: “Os Estados Membros concordaram que as aplicações móveis Covid-19 não devem processar os dados de localização dos indivíduos, porque não é necessário nem recomendado para efeitos de rastreio de contactos".

O documento da eHealth não propõe uma aplicação única europeia, só propõe uma estratégia coordenada. Já a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados desconfia da viabilidade de garantir a segurança dessa estratégia com um sem número de aplicações a operar, pelo que defendeu a existência de uma aplicação pan-europeia Covid-19, em vez da proliferação de aplicações específicas em diferentes países. Ao mesmo tempo, surgem propostas alternativas para alcançar o mesmo desiderato, como seja usar o bluetooth para rastrear quem esteve em contato com casos de coronavírus, em vez de usar dados de localização.

Há caminhos, temos de os trabalhar: nem desperdiçar nenhuma oportunidade de combater a pandemia, nem entregar as nossas liberdades em troca de segurança – porque essa é sempre, afinal, uma troca ilusória.

(Clicar para ir para o documento da eHealth Network, “Mobile applications to support contact tracing in the EU’s fight against COVID-19. Common EU Toolbox for Member States”.)




Porfírio Silva, 17 de abril de 2020

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13.4.20

Os filósofos podem ser perigosos



Quero confessar-vos que, como cidadão e amante da liberdade - das liberdades concretas - receio os discursos daqueles que buscam o demónio da pandemia no facto de a nossa época ser um tempo onde massas imensas de pessoas não podem ser impedidas de viajar, visitar, viver, negociar, estudar, namorar, ..., por todo o mundo. Em qualquer recanto do mundo.

Explico-me.

Às vezes dizendo-o, outras vezes sem o dizer com todas as letras, lemos apóstolos inconfessos da autarcia misturarem a crítica (merecida) às injustiças económicas e sociais da globalização com a crítica (para mim absurda) à liberdade de circulação de pessoas, que tornou a Terra uma aldeia (para os que podem, não para todos). Essa mistura, tratando tudo como malvadez do capitalismo, só poderia, para ser consequente, resultar num conselho: não saiam da vossa terra, do vosso país, da vossa cidade, da vossa aldeia, da vossa empresa, da vossa universidade. Esse horror à mundialização é, desgraçadamente, querer conceder completa vitória ao vírus, sem luta e sem alma.

É ainda mais triste quando esse horror à mundialização é propagado por intelectuais, filósofos, pensadores, artistas. É que foram precisamente os intelectuais os que, historicamente, mais beneficiaram da largueza do mundo - e, durante largas épocas, os únicos que realmente dela puderam usufruir.

Tenham sido, ou não, os milhões de chineses que se espalharam pelo mundo com o vírus a origem próxima do fenómeno; tenham sido, ou não, os seus hábitos alimentares a ponte do vírus para os humanos; tenham eles andado em negócio ou em turismo enquanto infectados - identificar nesse espalhamento de pessoas pelo mundo a causa essencial da pandemia, em vez de apenas a causa contingente, e julgar que se encontra, a longo prazo e numa perspectiva civilizacional, um remédio apropriado em fechar cada povo na sua casa... é uma triste renúncia. É fazer do "proibido abraçar" um remédio que, em vez de ser a desgraça momentânea das relações entre pessoas, seria a desgraça permanente das relações entre povos. Inacreditável. Confundir distopia com utopia.

Os que tratam tudo isto como "capitalismo e ponto", e os que falam com desdém das tentativas de reabrir as nossas ruas com o regresso ao trabalho - e abrangem nesse desdém a tentativa (escândalo!) de pôr de novo a economia a funcionar, são a desgraça do pensamento. Aproximam-se, lamento dizê-lo, dos longínquos admiradores da "Revolução Cultural" de Mao, que também custou massas imensas de vítimas humanas em nome de uma ideia que nada curava do bem-estar concreto das pessoas reais. E tudo justificava em nome de uma ideia de organização futura da sociedade e do mundo. A diferença, abissal, é que Mao sabia bem que estava apenas a proteger o seu próprio poder pessoal e da sua clique. Hoje, neste contexto, "basta", tão simplesmente, adoptar sem reflexão crítica a ideia de que o mundo pode sobreviver um ano sem produção: a comida cairá do céu e com ela a água, a electricidade, os medicamentos, a capacidade para pagar a habitação,...

Precisamos de soluções políticas, quer dizer, precisamos de formas de nos organizarmos como sociedade que respeitem a dignidade de todas as pessoas humanas, não precisamos nada de profetas da salvação pelo encarceramento. Essa mitologia do fechamento é o que justifica que se deixem morrer os refugiados lá longe - e disso estamos fartos. E não precisamos de filósofos para justificar esse fechamento criminoso. Precisamos de soluções políticas: sociedades onde cada vez menos a saúde seja uma mercadoria - e quem diz saúde diz educação, habitação, cultura, ...Precisamos de um pensamento filosófico que dê consistência ética a uma sociedade decente, sem regressar a qualquer tipo de pensamento feudal pró-fechamento como ideal de vida em comum.


Porfírio Silva, 13 de Abril de 2020

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6.4.20

Telescola?!



Vejo por aí muita risota a propósito do "regresso à telescola". Partilho duas ou três notas sobre isso.

Observação preliminar: deixo de lado os que, há uns anos, fizeram uma enorme campanha política contra o Magalhães. Quanto a esses, fico só à espera de qualquer sinal de que reconheçam, à distância, a gravidade da miopia como doença política.

Depois, sugiro, aos que fariam sempre melhor, que se informem sobre as condições em que poderíamos, nestas circunstâncias, pôr a funcionar cerca de 50.000 equipamentos para suprir as faltas mais evidentes só no ensino básico. Não é pensar quanto custaria comprar, em condições normais, 50.000 máquinas capazes de irem para casa dos alunos e funcionarem, ligados à rede. É pensar em que condições isso seria feito agora, com a produção em baixo e com os eventuais fornecedores sabendo que o Estado precisava de comprar em 15 dias essa quantidade de máquinas. E não bastaria comprar as máquinas: haveria que instalar as mesmas, agora. Aparentemente, para os que têm a crítica fácil, tudo isto não interessa nada. Ah, dizem, e por que não se fez nada antes? Não se fez nada?! 50 mil alunos sem acesso em cerca de um milhão de alunos do básico, isto é nada?!

A outra nota é: os que parecem pensar que a escola vai ser só TV, podiam informar-se melhor. A escola a distância já não foi só isto ou só aquilo durante as últimas semanas do segundo período. As escolas, os professores, fizeram das tripas coração para tentar respostas que servissem o maior número possível de alunos. Sabemos que alguns ficaram de fora. É principalmente por causa dos que ficaram de fora que temos de alargar os modos de chegar a todos. Usar a TV é, em larga medida, uma via para tornar as coisas menos desiguais para os que ficaram de fora até agora. Mas o que as escolas vão fazer é usar várias vias, entre elas os conteúdos transmitidos por TV vão ser um dos elementos. Não há milagres, mas a esmagadora maioria das escolas e dos professores estiveram a fazer milagres - e vão continuar a fazer. O uso da TV não é a panaceia, é mais um recurso para apoiar este enorme esforço.

Uma coisa me parece certa: tudo o que se está a fazer é importante, antes de mais, para aqueles que encontram na escola o seu principal elo a uma vida futura possivelmente melhor do que a sorte herdada. E, nestas condições, as falsas soluções, que seriam bonitas na aparência mas seriam impossíveis de implementar a tempo e horas, e deixariam pendurados os mais frágeis, são apenas isso: falsas soluções.

O grande problema de alguns é que continuam a pensar que o que está em causa na transição digital é uma operação tecnológica: é pôr lá as máquinas e pronto. Mas não é assim. Pensava que esta crise teria ensinado aos distraídos essa coisa simples: mudar de hábitos e rotinas não é assim tão simplesmente uma questão de máquinas. Já pensaram na diferença entre um menino que está numa família onde toda a gente sabe trabalhar com computadores e um menino de uma família que pela primeira vez está debaixo de um mesmo tecto com um computador? A máquina pode ser igual, mas tudo o resto...

Porfírio Silva, 6 de Abril de 2020
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4.4.20

Decisões políticas, evidência científica, Galileu e a pandemia




Nestes tempos conturbados de pandemia, e de crise social associada, os responsáveis políticos têm de tomar decisões na ausência de informação completa ou conhecimento estabilizado acerca do que está realmente a acontecer. Tem sido explicado vezes sem conta: os próprios cientistas desconhecem muito do que seria necessário saber para termos maior segurança acerca do melhor caminho a seguir. Contudo, e curiosamente, estamos sempre a falar de – e a pugnar por – decisões políticas baseadas na evidência científica. E bem! Não obstante, o que seja “a evidência científica” está longe de ser claramente apreendido pelas nossas sociedades. Num mundo onde, felizmente, a maior parte dos decisores se guia mais pelo conhecimento científico disponível do que por meras convicções acerca do mundo, é importante saber que a dita “evidência científica”… está longe de ser evidente.

Compreender esta incerteza é decisivo para entendermos como nos comportarmos (colectivamente) em situações extremas, como esta em que estamos. E, na verdade, é muito difícil aceitar que vivemos numa base incerta, que é o nosso conhecimento acerca do mundo. Procuro, neste texto, aproveitar um testemunho recente para vos trazer ao caminho da incerteza…

O Expresso publica (na revista da edição de hoje) uma entrevista com José Lourenço, um epidemiologista computacional que é um dos co-autores do estudo da Universidade de Oxford que traça um cenário, para o impacto mundial do novo coronavírus, alternativo ao que tem aparecido como dominante. A entrevista, realizada por Raquel Albuquerque, tem por título “Não estamos habituados a fazer ciência por necessidade” e é interessante a vários títulos, mas relevo aqui apenas um aspecto.

Vejamos uma pergunta e uma resposta:

Pergunta: No estudo agora publicado pela Universidade de Oxford, do qual é coautor, levantam a hipótese de o número de infetados por covid ser muito superior ao que conhecemos e, por consequência, a taxa de letalidade ser mais baixa. Como traçaram esse cenário?
Resposta: Ao contrário do que foi dito, o estudo não conclui que 50% da população do Reino Unido já terá sido infetada, porque não estamos a projetar o progresso da epidemia. Tentámos criar uma discussão sobre como é possível que o cenário seja o inverso do que tem sido debatido. Sem saber a imunidade da população (porque não sabemos quantas pessoas já foram expostas ao vírus) nem o tamanho do grupo de risco, tanto podemos assumir que a epidemia é gigantesca e o risco baixíssimo ou que a epidemia é pequena mas o risco é gigante. Ninguém consegue com certeza dizer qual é o cenário atual e qualquer um dos dois poderia resultar na mesma curva epidémica de mortos a que estamos a assistir. O nosso objetivo era transmitir a ideia de que temos de tentar, o mais rapidamente possível, medir uma das duas variáveis. Estimar o tamanho do grupo de risco só é possível depois de a epidemia passar, portanto a única coisa que podemos medir agora é a imunidade. Precisamos de saber em que cenário estamos, porque se o cenário for o inverso do que até agora tem sido apontado, então uma grande parte da população poderá já estar imune e não sabemos.

Atentem, por favor, aos segmentos sublinhados. O raciocínio que eles sublinham, expresso no conjunto da resposta, é este: há uma dada evidência (as curvas de mortalidade que temos por causa da pandemia), mas há duas interpretações possíveis (a epidemia é gigantesca e o risco é baixíssimo OU a epidemia é pequena e o risco é gigante) e ainda não temos os dados para saber qual dessas leituras é correcta (e diz o que há a fazer para chegar lá: “temos de tentar, o mais rapidamente possível, medir uma das duas variáveis. Estimar o tamanho do grupo de risco só é possível depois de a epidemia passar, portanto a única coisa que podemos medir agora é a imunidade”). Isto é: nem sempre a evidência disponível permite estar certo acerca do que ela quer dizer para questões fundamentais à compreensão da realidade.

Vou, agora, deixar outro exemplo desta relação entre evidência e interpretação em ciência. É um exemplo histórico, relacionado com o uso que Galileu faz do telescópio em defesa do heliocentrismo coperniciano.

Galileu atribui-se a possibilidade de observar os fenómenos celestes com maior fiabilidade do que Aristóteles ou os seus sucessores adversários do heliocentrismo de Copérnico, devido ao facto de dispor e usar para o efeito o telescópio. Uma declaração típica dessa atitude tem como porta-voz o personagem Salviati, no “Diálogo dos Dois Principais Sistemas do Mundo”: "Nós, graças ao telescópio, tornámos o céu trinta ou quarenta vezes mais próximo do que o era para Aristóteles, de tal modo que podemos aí descobrir mil e uma coisas que ele não podia ver".

No entanto, a verdade é que o telescópio não era, à data, um instrumento indiscutível para o uso científico que Galileu lhe queria dar. O telescópio obtivera, já, sucessos importantes na visão de objectos terrestres, mas, nesse campo, era possível cotejar essas observações com observações de proximidade – coisa impossível na observação de objectos celestes. Ainda mais estranha era essa extensão do uso do telescópio quando, ao tempo, se consideravam as regiões terrestre e celeste como obedecendo a leis diferentes e formadas de diferentes matérias. Além do mais, não estava disponível na altura nenhuma concepção científica do funcionamento do telescópio, que era usado de forma ad hoc. Para se ter esse enquadramento científico do uso do telescópio na observação de corpos celestes seria preciso, pelo menos, a intervenção de ciências auxiliares como a óptica e a meteorologia (para explicar o instrumento e para explicar a visão através da atmosfera). Galileu ainda chegou a pretender que o seu aperfeiçoamento do telescópio se deveu a profundos estudos teóricos, mas noutras ocasiões revela que procedeu essencialmente por tentativa e erro. O próprio Kepler manifesta a Galileu a sua preocupação por esta situação.

Nada disto impediu Galileu de fazer das observações telescópicas um argumento de peso na defesa da concepção coperniciana, mas não havia certeza nenhuma nesse procedimento.

Alexandre Koyré (cf. “Do Mundo Fechado ao Universo Infinito”) suporta amplamente esta análise. Segundo este autor, o facto de o telescópio permitir observar "novas" estrelas, que anteriormente não estavam ao nosso alcance, poderia dever-se a
(1) essas estrelas serem demasiado pequenas, embora estando perto, ou…
(2) essas estrelas, sendo grandes, estarem demasiado afastadas para poderem ser vistas sem o telescópio.
Para os efeitos pretendidos por Galileu, essas duas alternativas arrastavam conclusões de consequências desiguais:
(2) implicava o abandono da distinção aristotélica entre uma região sublunar imperfeita e sujeita à mudança e uma região supralunar perfeita e imutável;
(1) não afectava minimamente a concepção tradicional.

Como decidir entre as duas alternativas? Com apoio num completo domínio teórico do instrumento implicado? Segundo Koyré, na época "as duas interpretações convêm tanto uma como outra aos dados de facto da óptica; um homem deste tempo não podia então optar entre elas a não ser por razões filosóficas e não estritamente científicas. E foi por razões filosóficas que a tendência dominante no pensamento do século XVII rejeitou a primeira interpretação e adoptou a segunda": porque esta conflituava com a concepção tradicional e favorecia a concepção coperniciana.

Em convergência com esta análise, Bernard Cohen (cf. “The Birth of a New Physics”) afirma que "a análise da experiência de Galileu da observação de corpos celestes por meio do telescópio, em 1609 e nos anos subsequentes, mostra como o seu apego às doutrinas copernicianas condicionou e até dirigiu a interpretação do que observou nessa altura". Galileu não "viu" montanhas na Lua: viu um conjunto de manchas, umas mais escuras do que outras e, depois, "transformou estes dados sensoriais ou imagens visuais num novo conceito: a superfície lunar com montanhas e vales", militando a favor da semelhança entre a Lua e a Terra. Galileu não "viu" satélites de Júpiter: observou o que lhe pareceu inicialmente ser um conjunto de pequenas estrelas, tendo sido o seu interesse teórico em defender o copernicanismo que o conduziu mais tarde a concluir que eram satélites de Júpiter, ponto importante para mostrar mais uma semelhança não aceite tradicionalmente entre a Terra e os planetas (já não era só a Terra a ter satélites). Trata-se, diz-nos Cohen, de mais um "processo de transformação dos dados sensíveis da experiência", com um interesse especial: é que, contra aqueles que diziam que uma Terra em movimento a grande velocidade perderia o seu satélite, podia agora mostrar-se como Júpiter, que todos admitiam mover-se, não perdia os seus satélites - anulando mais um argumento anti-coperniciano. Há ainda o caso das manchas solares: observadas desde a Idade Média, nenhum aristotélico ortodoxo admitiria que elas fossem mudanças nesse astro, tomando-as antes como resultado de passagens de planetas diante do Sol. Galileu, liberto desse condicionamento, pode ver outra coisa, "vendo" exactamente o mesmo.

Isto serve para quê?

Para entendermos que a incerteza quanto ao conhecimento do mundo não é exclusiva dos “leigos”, é uma condição importante do melhor conhecimento científico.

Para estarmos cientes de que a evidência científica não é garantia de certeza, especialmente enquanto estamos a lidar com um fenómeno novo, mundial na sua extensão, que lida ao mesmo tempo com o muito pequeno e com a grande escala das dinâmicas populacionais.

Para não esquecermos que uma comunidade só pode lidar com esta incerteza se for capaz de mobilizar valores extra-científicos para lidar com a fragilidade da condição humana e o sofrimento.

Para aproveitarmos o que sabemos como guia. José Lourenço, o entrevistado acima mencionado, diz o seguinte na mesma entrevista: “Os especialistas podem discordar em alguns detalhes e nas formas como lidamos com a epidemia no dia-a-dia. Mas há consenso sobre o seu desfecho. Estaremos livres desta epidemia quando uma determinada proporção da população de cada país ficar imune e o vírus deixar de conseguir propagar-se por falta de indivíduos ainda disponíveis para infeção. Podemos, de futuro, chegar a esse nível de imunidade de grupo por exposição natural (ou seja, infeção) ou artificial (a vacinação), mas é altamente improvável que o vírus seja eliminado de outra forma.”

Não, nós não somos os “senhores do universo”. Sabemos muito sobre o nosso mundo, mas sabemos muito pouco. É preferível termos noção disso e não pensarmos que tudo se resolve apelando à evidência científica. Porque, nos momentos de novidade, é preciso encaixar, nessa evidência científica, uma interpretação que ligue adequadamente com o profundo mistério da realidade.


Porfírio Silva, 4 de Abril de 2020

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3.4.20

O Império Romano, a pandemia e o futuro



Vai a pandemia substituir a globalização pela "economia natural"? Vamos passar a economias nacionais de auto-suficiência?

-1-

Não sou entusiasta de grande parte das análises que tenho lido sobre as consequências futuras da actual pandemia em termos de organização da sociedade. Não creio razoável postular a estagnação económica como solução para os problemas ambientais dos terráqueos; não acredito que a loucura consumista possa ser curada pelo confinamento (embora possa ser travada pelo empobrecimento generalizado e profundo); receio que, mais uma vez, passado o pior momento da crise, voltarão à carga os defensores do Estado mínimo: a saúde encarada como mercadoria voltará a inspirar as propostas políticas de muitos; a fragilidade da civilização, no sentido concreto e imediato de fragilidade das instituições, era ignorada por muitos, mas sempre esteve entre nós – apesar de se ter revelado de forma exuberante no fracasso dos sistemas de governação de países muito ricos, muito poderosos e com histórias institucionais muito sólidas; o nosso conhecimento do mundo, apesar dos sucessos extraordinários da ciência, é incerto… e agora temos a certeza dessa incerteza, apesar de ela nunca ter deixado de ser um facto que só os irresponsáveis faziam por ignorar.

O único ponto em que concordo na generalidade das “grandes análises” que tenho visto por aí é o que se relaciona com a globalização: somos, hoje, um mundo de viajantes e a quase totalidade das sociedades em todos os cantos do mundo estão intensamente interligadas por esses viajantes. E, isso sim, esse foi um factor determinante neste acontecimento fulcral nas nossas vidas que foi o desenvolvimento da pandemia. A questão é: vamos acabar com a globalização? Se calhar vamos, mas não estou contente por isso.

Para apreciar essa questão, já várias vezes achei útil olhar para os efeitos da queda do Império Romano. Volto a essa perspectiva, para a ligar a uma opinião que li recentemente e que reportarei daqui a pouco.

-2-

No auge da sua extensão, o Império Romano incluía quase toda a Europa ocidental, largas faixas em redor do Mediterrâneo, bem como regiões mais orientais, desde os Balcãs à Grécia, Egipto, Ásia Menor, chegando à Síria e fazendo a oriente fronteira com a Pérsia e com as regiões caucasianas. A queda do Império a Ocidente, em 476 d.C., deu lugar a um longo período de retrocesso socioeconómico, como escreve Bryan Ward-Perkins, em “A Queda de Roma e o Fim da Civilização”: “o domínio romano, e sobretudo a paz romana, trouxe níveis de conforto e sofisticação para o Ocidente que não tinham sido vistos anteriormente e que não seriam vistos de novo durante muitos séculos”. O que esse autor procura mostrar nessa obra é que a queda do império romano do ocidente representou um retrocesso na vida material da maioria da população. Vejamos alguns dos seus exemplos.

Os romanos produziam bens de uso corrente (não apenas de luxo), de qualidade muito elevada, em enormes quantidades, e depois difundiam-nos largamente, sendo por vezes transportados por muitas centenas de quilómetros para serem consumidos por todos os grupos sociais (não apenas por ricos). A existência de “indústrias” muito desenvolvidas, funcionando com trabalhadores razoavelmente especializados, produzindo em grandes quantidades e vendendo para zonas remotas do império, suportadas em sofisticadas redes de transporte e de comercialização, era possível graças à infra-estrutura de estradas, pontes, carroças, hospedarias, barcos, portos de rio e de mar – e à burocracia imperial, incluindo um exército numeroso, para enquadrar e proteger todo esse fervilhar. Exemplos concretos são como seguem.

A cerâmica, utilizada para o armazenamento, preparação, cozedura e consumo de alimentos, era de alta qualidade, tanto em termos práticos como em termos estéticos. O nível de sofisticação da cerâmica romana usada para preparar e servir alimentos só volta a ser observado alguns 800 anos depois, pelo século XIV. Também as artes da construção de edifícios, que os romanos tinham sofisticado quer para casas luxuosas quer para casas vulgares, em vastas regiões do antigo império perderam-se e deram lugar a povoados construídos quase inteiramente de madeira, onde antes se construía de pedra e tijolo (para já não falar das casas mais sofisticadas com aquecimento por baixo do chão e água canalizada). Já a fundição de chumbo, cobre e prata, que permitia a realização de muitos utensílios sofisticados, também entrou em queda com o desabar do império e só nos séculos XVI e XVII terá voltado a atingir os níveis da época romana.

Enquanto no império as moedas de ouro, prata e cobre eram perfeitamente acessíveis e largamente utilizadas nas trocas económicas, o que veio depois foi o desaparecimento quase total da utilização diária da moeda, a par com o desaparecimento de indústrias inteiras e de redes comerciais. Os produtos de luxo continuaram, em maior ou menor grau, a ser produzidos para os mais ricos, mas os produtos de uso mais geral e de qualidade é que escassearam ou desapareceram. Em certas zonas do antigo império, certos aspectos da economia e do bem-estar material regrediram para níveis da Idade do Bronze. Mesmo muitas economias regionais foram destroçadas pela instabilidade política e militar.

Os benefícios do império também se estenderam à agricultura. Um exemplo curioso: até o tamanho médio do gado aumentou consideravelmente no período romano, graças à disponibilidade de pastos de boa qualidade e de forragem abundante no Inverno. O tamanho do gado regrediu, depois da queda do império, para níveis pré-históricos.

A queda do império romano do ocidente não foi, na realidade, apenas um abalo para as elites políticas, sociais e culturais. Representou um retrocesso no conforto material da esmagadora maioria da população. Já para não falar de que desapareceu assim o instrumento do maior período contínuo de paz (500 anos) vivido na região mediterrânica.

A esta reflexão de Bryan Ward-Perkins juntou-se, numa leitura recente, outra reflexão sobre a dinâmica da desintegração do Império Romano do Ocidente. Num pequeno livro datado de 1946, intitulado “The Decline of the Roman Empire in the West”, F. W. Walbank defende a tese de que a decadência romana teve, na vertente económica, a dinâmica de uma desintegração do outrora grande espaço de trocas económicas numa miríade de pequenos territórios relativamente autárquicos, tendendo para a auto-suficiência, entre os séculos IV e VI. Nessa economia, deu-se uma reversão gradual para o pequeno artesanato virado para o consumo local, em pequena escala, eventualmente satisfazendo secundariamente encomendas específicas nas proximidades, tendo sido abandonada a prática da produção especializada destinada a um comprador desconhecido que podia estar em qualquer ponto do império.

-3-

Quem apresenta esta referência, que eu não conhecia, é Branko Milanovic, num artigo recente na Foreign Affairs, intitulado “The Real Pandemic Danger Is Social Collapse. As the Global Economy Comes Apart, Societies May, Too”. Aí, apresenta uma visão das possíveis consequências desta crise, se ela se prolongar, em termos de organização económica global: o mundo pode passar a uma “economia natural”, no sentido de uma economia que privilegia a auto-suficiência.

O prolongamento desta crise vai, a ocorrer, fazer com que volte a parecer natural a restrição da liberdade de circulação (de pessoas, de bens, de serviços, de capitais), embora essa liberdade de circulação fosse, mesmo antes, bastante descontínua à volta do mundo. Essa restrição da liberdade de circulação, nomeadamente de pessoas, tornou-se mais popular durante a corrente pandemia. Será fácil, no futuro, fazer pressão política para a permanência dessas restrições, mesmo com formas aparentemente suaves, mas efectivas no seu propósito restritivo: por exemplo, exigir um certificado de saúde para entrar num país, além de um passaporte e um visto.

A deriva para a “economia natural”, em que os países prescindem de participar num certo padrão de especialização internacional da economia, seria reforçada pelo receio, que esta pandemia acentuou enormemente, de estarmos dependentes de outros para nos equiparmos devidamente na resistência à doença e para mantermos o abastecimento seguro de bens essenciais à vida da comunidade que partilha o mesmo território dentro de uma fronteira comum. A tendência dos países para a auto-suficiência económica tornar-se-á, se a crise se prolongar e se os egoísmos nacionais se impuserem nesta fase crítica, uma auto-estrada para a tal “economia natural”. Dessa deriva temos uma imagem retrospectiva na decadência do Império Romano do Ocidente.

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A União Europeia vai ter um papel decisivo em irmos ou não por este caminho. Se esta região do mundo for capaz de criar uma dinâmica de cooperação interna que, apesar dos iniciais tiros nos pés e da subsequente tibieza, demonstre utilidade para a preservação da coesão social entre os europeus, esse factor será uma alavanca para a recuperação económica e social e para a consolidação da construção europeia. Se falhar, produzirá mais um conjunto de jangadas à deriva na “economia natural”.

A globalização que temos é económica e socialmente injusta, mas ela não se cura voltando a fechar os territórios sobre si mesmos. Só podemos curar a globalização dos seus piores defeitos agindo no mundo global, inseridos em alianças suficientemente poderosas para contarem para as forças fáticas que por aí andam. Para dar um exemplo: apesar das suas deficiências, a União Europeia consegue fazer frentes a certos aspectos das estratégias corrosivas das grandes multinacionais tecnológicas, coisa que nenhum Estado europeu poderia fazer sozinho, nem Portugal nem a Alemanha. Mas, indo pelo outro caminho da encruzilhada, que é o reino dos egoísmos nacionais, não servirá para nada e desintegrar-se-á.

Culturalmente, a queda do império romano também teve consequências. Por exemplo, a capacidade de ler e escrever, muito difundida no império romano devido às necessidades burocráticas e económicas, não apenas entre as elites mas também nas “classes médias”, regrediu no período pós-romano até ao ponto de mesmo grandes reis ocidentais terem sido analfabetos. (O clero foi, em larga medida, uma excepção importante.) Mas, nesse campo, poderíamos apontar, após a queda do império romano, o florescimento de formas superiores de cultura, por exemplo aquelas que foram protegidas e praticadas nos círculos religiosos. Por exemplo nos mosteiros e nas catedrais. Contudo, para a esmagadora maioria da população, com o recuo para as pequenas unidades políticas e territoriais, vivendo em dinâmicas de auto-suficiência, a vida tornou-se muito pior. É nisso que temos de pensar, outra vez.



Porfírio Silva,3 de Abril de 2020


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1.4.20

Democracia de salvação nacional



Um destes dias, Rui Rio foi entrevistado na RTP. Muito haveria a dizer sobre essa entrevista, e sobre a inteligência de um homem que entendeu a gravidade do momento e que, tal como o primeiro-ministro, está a agigantar-se neste momento difícil da nossa vida coletiva. Contudo, gostaria de ser agora mais específico.

É que há algo que começa a notar-se cada vez mais nas intervenções de Rui Rio: o presidente do PSD tem uma forma de falar que, pelos vistos, muitos intervenientes no espaço público não conseguem entender. Vou ser mais preciso: Rui Rio introduz no seu discurso, sem parecer dar-lhes muita importância, certos elementos que fazem toda a diferença em termos de sofisticação da mensagem – mas deixa para quem ouve ou lê o trabalho de ouvir ou ler com cuidado e, portanto, de interpretar. Manifestamente, muitos dos ocupantes do nosso espaço público não têm tempo, nem diligência, para entender essas subtilezas e tratam tudo com o carro vassoura da displicência e da politiquice banal.

A forma como o tema do “governo de salvação nacional” foi tratado por Rui Rio, e a forma como as suas palavras foram transmitidas pela generalidade da comunicação social, exemplifica bem o que acabo de escrever.

Em geral, o que passou foi que Rui Rio ponderava a ideia de um governo de salvação nacional.

Entretanto, o que Rui Rio disse foi, exatamente, isto:

“A sociedade portuguesa vai ter efetivamente de debater a composição de um governo de salvação nacional, porque o governo que vier – pode ser o mesmo, como é lógico – vai sempre ser de salvação nacional. Face aquilo que nós temos, que se está a ver, que isto vai durar, nós vamos ter tempos muito pesados.”

Ou seja: Rui Rio fala de “governo de salvação nacional” na perspetiva da magnitude da tarefa de qualquer governo que governe a seguir a esta tempestade. E diz que esse “governo de salvação nacional” até pode ser o mesmo que temos. Porque, digo eu, não está a falar da fórmula, está a falar do gigantismo da tarefa.

A sofisticação da mensagem não passou para os fazedores de títulos. É sofisticação excessiva para quem raciocina com os olhos postos no artigo de intrigalhada do sábado anterior. Apesar de Rui Rio também ter dado uma valente sova na cobardia desse tipo de intrigalhada, na mesma entrevista – e com todas as letras.

Seria bom se todos pudéssemos entender que o que nos pode “salvar” é a qualidade da nossa democracia, onde não se confunda unidade com unanimismo nem com obliteração das diferenças e das alternativas.


Porfírio Silva, 1 de Abril de 2020
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