Um artigo de Laurenz Gehrke, no POLITICO (“
5 things we still don’t know about the new coronavírus”, 24 de Abril) aponta algumas das incertezas que persistem quanto ao coronavírus na base da pandemia que nos ameaça de contrairmos a Covid-19. Resumo, rapidamente.
1. Podemos ser reinfectados? Planear o regresso a algum tipo de normalidade seria mais fácil sabendo exactamente como está a imunização da população. Pensemos nos que já foram infectados e recuperaram: se estivessem imunizados poderiam voltar à actividade. Mas, segundo previnem alguns especialistas, isso não é certo. Não basta poder detectar a presença de anticorpos para estarmos certos de que a pessoa está imune. Esta incerteza revela que, mesmo tecnicamente, a ideia dos “passaportes de imunidade” é disparatada.
2. Como é transmitido o vírus? Sabe-se que o vírus se propaga através de gotículas respiratórias, as quais, expelidas, podem acumular-se em superfícies onde, depois, apanhamos o vírus e o levamos à boca, ao nariz ou aos olhos. Mas não se sabe quanto tempo sobrevivem nessas superfícies. E esse desconhecimento afecta o tipo de precauções que são certamente úteis.
3. O vírus será travado pelo bom tempo? Parece que não, na medida em que países com tempo quente e húmido nesta altura do ano foram atingidos pela pandemia. Essa ideia inicial era influenciada pela comparação com a gripe comum, que foi abandonada. Mas é cedo para ter certezas.
4. Quem é que o vírus mata? Sabe-se que pessoas com elevadas idades e com outras doenças são mais afectadas, mas também há jovens e adultos que morreram com o vírus. O problema é que não há explicações claras para isto, nem para certas variações étnicas que alguns pensam ter detectado.
5. Como é que o vírus mata? A resposta à pergunta anterior seria mais clara se se percebesse por que é que certas pessoas morrem da COVID-19 enquanto outras só têm ligeiros incómodos: se se percebesse a razão da letalidade em alguns casos. Alguns pensam que importa a quantidade de vírus a pessoa foi exposta na fase de infecção. Outros pensam que a genética do paciente pode tem importância. Mas não há certezas.
É importante, principalmente para um bom desempenho das autoridades na definição do melhor rumo para lidar com a pandemia, que se reconheça a incerteza do nosso conhecimento acerca dos factores da pandemia. Contrariamente aos que defendem, em cada momento, que se deve fazer tudo (sendo “fazer tudo”, para alguns, equivalente a “fazer qualquer coisa que alguém reclame que pode ser bom”), é preciso medir prudentemente o que se deve e o que se não deve fazer em cada fase, sabendo que a resistência das pessoas e das estruturas sociais não é eterna nem indefinidamente elástica. Por exemplo, muitos dos que mais cedo reclamaram “que tudo fique fechado”, são, também, dos que mais cedo exigiram “que se abra, que se abra”.
Há uma muito longa tradição de pensamento sobre a ciência e a sua relação com a sociedade, quer contra os que desprezam a importância da ciência na compreensão do mundo e das nossas possibilidades de acção, quer contra a ingenuidade dos que pensam que a ciência sabe sempre tudo. Contudo, também essas reflexões, por vezes, falham rotundamente o alvo. Este momento, de pandemia e de luta da ciência para tentar reduzir a incerteza, é uma boa oportunidade para reconsiderar algumas teses sobre a incerteza na ciência. É o que vou fazer no que resta deste texto.
Bruno Latour e a sua sociologia da ciência
Vamos acompanhar um pouco do pensamento de Bruno Latour, numa sua obra, já antiga, de sociologia da ciência:
Science in Action. How to Follow Scientists and Engineers through Society, 1987.
Para Latour, a distinção fundamental para uma abordagem da ciência é a distinção entre "ciência feita" e "ciência em vias de se fazer". Para tornar mais precisa essa distinção, temos de introduzir a noção de "caixa negra". Uma
caixa negra é um aparelho, uma série de instruções, um procedimento ou um modelo (por exemplo, a forma da dupla hélice ou um computador) relativamente ao qual, tendo entrado na rotina, deixamos de nos importar com o que "está lá dentro", com a complexidade dos seus mecanismos internos, interessando-nos apenas as "entradas" e as "saídas" dessa caixa fechada. Ora, enquanto à "ciência feita" pertencem as
caixas negras, fechadas e fiáveis, na "ciência em vias de se fazer" encontramos
controvérsias abertas, incertezas, competição.
Como é que a "ciência em vias de se fazer" se transforma em "ciência feita"? Para dar o ponto de vista de Latour, temos de nos referir brevemente ao seu construtivismo acerca dos factos: a resposta à questão "o que é um facto?" é a resposta à questão "como é construído um facto?". Vejamos como Latour descreve esse processo.
Alguém emite um enunciado (por exemplo, escreve um artigo numa revista científica). Esse enunciado será inserido noutros enunciados e, por essa via, qualificado, transformado: modalizado. Teremos uma
modalização positiva se o enunciado é inserido numa sequência onde aparece como uma premissa evidente, fechada, acabada e onde outros enunciados aparecem como consequentes menos acabados e menos evidentes do que o enunciado modalizado. Numa modalização positiva, o enunciado emitido é enquadrado por frases que o distanciam das suas condições de produção e o tomam como suficientemente sólido para que algumas das suas consequências se tornem necessárias. Teremos uma
modalização negativa se o enunciado emitido é enquadrado por frases que nos remetem para um questionamento das suas condições de produção e tentam explicar porque é que ele é sólido ou frágil, frases que incidem sobre as pessoas e o trabalho das pessoas que produziram o enunciado. Numa controvérsia científica, o autor de um enunciado apela ao maior número possível de aliados e aos aliados o mais poderosos possível, sendo que "aliado" é todo aquele que modaliza positivamente o nosso enunciado: um documento não é intrinsecamente científico, torna-se científico quando mobiliza aliados numerosos e os exibe. Um enunciado sujeito a modalizações positivas torna-se um
facto; sujeito a modalizações negativas torna-se um artefacto, uma
ficção: "a uma frase pode ser-lhe oferecida a qualidade de facto ou a de artefacto, segundo a forma como ela é inserida em outras frases." São sequências de modalizações (sequências de frases) que transformam um enunciado num facto ou num artefacto: é essa a natureza do processo de
construção dos factos, de
fabricação colectiva dos factos.
Deste modo, para Latour, aquilo a que nos referimos quando falamos de um "facto" é o acontecimento de um enunciado ser modelizado positivamente, de maneira sucessiva em numerosos textos e durante várias "gerações" de textos. No entanto, "esse acontecimento não torna [um facto] qualitativamente diferente de uma ficção" e "a força do enunciado original não reside no seu conteúdo próprio, mas na sua presença em artigos ulteriores".
Pergunta-se: mas qual é o papel da natureza neste processo? Escreve Latour que, para que um texto científico seja convincente, não bastam as inúmeras referências que ele contenha, é preciso algo mais - mas esse "algo mais" por detrás de um texto não é a natureza: "ir dos aspectos superficiais dos artigos às suas articulações mais recônditas, não consiste em passar do argumento de autoridade à natureza, já que a passagem se faz através do aumento do número de autoridades, de aliados, de recursos." Acrescenta: "Enquanto as controvérsias duram, a natureza aparece simplesmente como a consequência final das controvérsias. (...) A natureza, entre as mãos de um cientista, é um monarca constitucional que se assemelha muito à rainha Isabel II. Ela lê no seu trono, com o mesmo tom, a mesma solenidade e a mesma convicção, um discurso escrito por um Primeiro Ministro conservador ou trabalhista, segundo o resultado das últimas eleições. Ela acrescenta qualquer coisa ao debate, mas apenas depois dele ter terminado; enquanto dura a campanha eleitoral, ela limita-se a esperar."
Latour vê a ciência como uma sucessão de
controvérsias, mas cuja história e desenvolvimento se salda num contínuo
fechar de controvérsias: para pôr em causa um facto aceite, será necessário tentar tornar controversas as caixas negras que estão imediatamente por detrás desse facto ou instrumento. Mas essas caixas negras, sendo questionadas, mostram que há, por detrás delas, outras caixas negras mais antigas e mais geralmente aceites - e assim sucessivamente para cada "estrato de questionamento". Embora seja possível, em princípio, abrir todas as caixas negras (factos, procedimentos, instrumentos) que suportam um facto já construído que pretendemos questionar, na prática isso não é possível, porque obrigaria a questionar resultados aceites há dezenas ou centenas de anos e que estão integrados em milhares de instrumentos contemporâneos. O "céptico" necessitaria de tanto tempo, tantos aliados e tantos recursos para impugnar um facto geralmente aceite, que tem de (resignar-se a) aceitar o facto como "objectivo".
Vista nesta óptica, será a ciência mais do que um jogo de forças? Pergunta-se Latour: "... o vencedor [de uma controvérsia] é realmente o mais inocente, o mais racional, ou simplesmente o mais forte e o que teve mais sorte?". Esta pergunta justifica-se, porque "a crítica custa caro" (é preciso mobilizar laboratórios, imensos recursos); porque a literatura técnica ou científica "é feita para isolar o leitor, recorrendo a numerosos outros recursos": instrumentos, dados quantitativos, outros textos, formando vários estratos hierarquizados e entrelaçados que se protegem uns aos outros, progressivamente mais difíceis de questionar e que pretendem ter como efeito a desmobilização dos opositores. Ora, "os cépticos também são seres humanos; há um momento a partir do qual já não podem lutar contra tais obstáculos".
Para Latour, a análise precedente justifica a sua afirmação de que a ciência é
realista e
relativista: realista em relação aos resultados obtidos e consolidados (nesta perspectiva, a história da ciência "é uma história que coroa o vencedor com os qualificativos de melhor e de racional e que explica que os perdedores perderam simplesmente porque se enganaram, eram menos bons e menos racionais"); relativista em relação às controvérsias em aberto (as representações são decididas pelos cientistas). Em relação à "ciência feita", às controvérsias fechadas, porque é que não podemos ser relativistas? "Porque o preço da disputa é demasiado elevado para um cidadão médio, mesmo se ele é historiador ou sociólogo das ciências." Ser relativista sobre as partes estabilizadas da ciência é ridículo; ser realista sobre as partes da ciência onde ainda há controvérsia, é grotesco”.
Ora, infelizmente, o que resulta desta análise de Latour é uma justificação pragmática tanto do dogmatismo (aquilo a que chama o realismo da ciência feita), como do relativismo (provisório, antecâmara de novos dogmatismos); uma "mera" constatação dos mecanismos de poder da ciência aplicada, que se salda numa coexistência cúmplice com esses mecanismos (por isso se sente autorizado a declarar solenemente que ser relativista ou ser realista é umas vezes ridículo e outras vezes grotesto, consoante deparamos com dogmas estabilizados ou com dogmas em vias de estabilização).
A abordagem meramente sociológica resulta, assim, numa renúncia. A saída possível é a análise histórica: "[Não há] nenhum facto, nenhuma certeza, nenhuma forma, que não possamos reanimar, reagitar, reaquecer, reabrir. Basta deslocarmo-nos no tempo e no espaço até atingir o lugar onde a caixa negra é o principal assunto de controvérsia dos investigadores e dos engenheiros." Mas se, com Latour, por causa da dificuldade prática de exercer a crítica sobre teorias ou instrumentos amplamente aceites e estabilizados, optássemos pela renúncia a essa crítica, o interesse histórico por controvérsias passadas não passaria de uma mera curiosidade sem consequências ou, na melhor das hipóteses, de erudição inoperante.
O atual momento histórico – a lutar com uma pandemia e faltando-nos muito conhecimento que seria útil a essa luta – é propício a lançar um olhar sobre esta categoria de teorizações. O construtivismo acerca dos factos tem óbvios limites: a ideia de que são meras relações discursivas entre textos que produzem os factos (ou os artefactos) não resiste à prática historicamente presente de lidar com uma pandemia em curso, sendo que as nossas opções custarão vidas e terão efeitos sobre a saúde pública. A ideia de que a fronteira entre um facto e uma ficção é basicamente resultado de uma luta entre textos… é inequivocamente inadequada. Não resiste ao mundo.
Dizer que “algo mais” por detrás de um texto não é a natureza, que a diferença é uma acumulação de meios e autoridades a apoiar um texto (uma teoria), é pobre: mesmo que muitos cientistas digam que X é uma boa vacina contra o SARS-CoV-2, é a dura realidade sanitária que vai decidir essa disputa.
A ciência trabalha por uma sucessão de controvérsias, que vai fechando, é certo – mas o céptico não falharia a tentativa de deitar tudo abaixo (tentando reabrir todas as controvérsias passadas) apenas porque isso daria muito trabalho. Falharia, porque há, realmente, conhecimento acumulado que dá boa prova no contacto com o mundo.
Agora, sim, é certo: a ciência em vias de se fazer só pode progredir se reconhecer o que não sabe, se reconhecer a incerteza. Mas é isso que está a fazer.
Porfírio Silva, 24 de Abril de 2020