23.12.19

Canja de Galinha com Cintra



Não tem acontecido muito nos últimos tempos: fomos ao teatro (Domingo à tarde, um horário aziago para ir ao teatro, mas faço os impossíveis para não falhar um aparecimento do Mestre) ver Canja de Galinha (Com Miúdos), de Luis Miguel Cintra.
Não sei se deva começar pelo espectáculo ou pelo resto.
Comecemos por tudo.

Tanto quanto é dado ver a quem vai de fora, e não de dentro da máquina da criação (como explicaram autores vários da filosofia da ciência, a ordem da descoberta e a ordem da justificação são dois mundos muito diferentes), este espectáculo parte principalmente de duas peças de Camilo Castelo Branco, “Entre a Flauta e a Viola” e “Patologia do Casamento”.

“A uma estalagem de Barcelos chega, numa noite, Aniceto com a sua bela filha, Vitorina. Aniceto anda em fuga com a rapariga, pois quer mantê-la afastada de um tocador de flauta, que sabe ser seu pretendente. O que ele não sabe é que atrás dela andam, não um, mas dois pretendentes – o tocador de flauta e um outro que toca viola. Aniceto pensa que está a salvo mas nessa mesma noite a estalagem vai viver uma situação de peripécias cómicas em que ninguém vai dormir.” Alguém propôs esta sinopse de “Entre a Flauta e a Viola”, de Camilo Castelo Branco. Na sua primeira edição, de 1871, esta peça aparecia publicada num volume intitulado “Teatro Cómico”, juntamente com outra peça do mesmo autor, “A Morgadinha de Val D’Amores”. Nesse volume, Camilo fez inserir uma nota onde se desculpava da sensaboria de “A Morgadinha de Val D’Amores”, explicando que o brilho esperado teria resultado do acompanhamento musical encomendado ao maestro Francisco de Sá Noronha, o qual, não tendo chegado a ser produzido, inviabilizou a representação da peça e deixou como despojo um texto que, assim despido, provocaria fastio no leitor. Quanto ao segundo elemento do volume, “Entre a Flauta e a Viola”, Camilo escreve apenas isto: “Com referência à farsa, não temos que pedir desculpa. Seria desvanecimento irrisório recearmos nós que a ponderosa e grave crítica descesse até coisa tão pequena.” Este “Entre a Flauta e a Viola”, anunciado no volume da edição original como entremez em um acto, é um dos textos que Cintra escolheu como material deste espectáculo.

Outra base deste trabalho é “Patologia do Casamento” (1855), que retoma um capítulo de “Cenas Contemporâneas”, uma táctica de produção (adaptação ao teatro) a que Camilo repetidamente recorreu. É um texto teatral que Camilo ora qualifica como drama, ora como comédia – mas, chamar-lhe drama será, talvez, essencialmente parte do dispositivo alargado da comédia. Mas, como tanto fez Camilo, o intuito era mesmo falar do que era de actualidade. E, para este autor, o casamento é sempre um tema de actualidade – sendo, também, um atalho para a abordar numa perspectiva de crítica social, fazendo perfis de certos estratos da sociedade e pintando-os com cores onde berram as lógicas desviadas dos respectivos comportamentos. Esta “Patologia do Casamento”, onde dois casais se vão fazendo, desfazendo e refazendo, comentados por um cínico (o próprio Camilo?), pode fazer-nos lembrar as farsas do “Morgado de Fafe”, na medida em que retoma a ridicularização das mulheres com leituras, escarnecidas por serem pretensiosas, e dos seus apaixonados, escarnecidos por terem discursos românticos vazios e emproados.

Então, daqui diz Cintra que parte. Mas os espectáculos de Cintra são sempre recortes labirínticos de textos de outros e de referências enxertadas pelo encenador. Quem já teve a felicidade de ver Luis Miguel a construir teatro com pedaços vários de palavras de outros, sabe porque se chama ao resultado um labirinto: o arquitecto do labirinto conhece o desenho global mas essa sorte não sorri ao utilizador, que anda sempre à cata de fragmentos que façam sentido (e indiquem uma saída), mas nunca deixa de estar sempre em risco de se perder. Embora seguindo Cintra há muitos anos, continuo convencido de que é impossível capturar tudo o que ele quis plantar em cada uma das suas obras. Porque Cintra cria como um rio à beira da cascata, não como um desenhador de móveis para uso confortável. No caso deste Canja de Galinha (Com Miúdos), o objecto parte das tolices próprias dos casamentos arranjados por conveniência social e dos enganos e desenganos por aí advindos. Podemos rir-nos, e julgar que é coisa camiliana e de um romantismo que ficou lá para trás na história. Contudo, basta conhecer apenas um dedo mindinho de Cintra para saber que não se navega em puras perspectivas históricas quando se vai ao seu teatro.

O encenador terá dito à Visão / Sete que estas peças de Camilo o interessaram por tocarem “numa coisa que me irrita solenemente: a maneira superficial com que, politicamente, ainda são tratadas as questões que dizem respeito à mulher”. E o diabo, sempre por ali em risinhos e a meter a colher, marcaria esse desrespeito leve, um desrespeito marialva erradamente confiante em não ser assim tão pecaminoso como isso. E claro que uma ideia sobre a forma desajustada como estamos com as mulheres nestas nossas sociedades seria tema perfeitamente entendível em Cintra. Mas acho que a coisa é mais larga.

Em termos mais concretos, o que Cintra anda sempre a dizer, há séculos, é que nada disto faz sentido. O mundo tem falta de verosimilhança. A sociedade em que vivemos destrói sentido enquanto mastiga os nossos ossos.

Foi o fim da Cornucópia, vencida por uma burocracia que arrepia e por um toque de insensibilidade da máquina de fazer subsídios. Algo que desmoraliza um anarquista emocional como Cintra. E que angustia um homem que sente a fragilidade vivencial dos seus colegas, mais jovens e menos jovens, e que se dedicam ao teatro apenas se encararem a pobreza franciscana como ideal de vida. (“O fim do Teatro da Cornucópia em que depositei toda a alegria e energia de que fui capaz, tirou-me das mãos o martelo com que fui carpinteirando leituras de texto de que gostava muito, quase sempre grandes obras da dramaturgia mundial de todas as épocas que me apetecia e julgava útil partilhar com o público.”)

É a utopia, todos os dias calcada aos pés do realismo sacrossanto destas sociedades “organizadas”. Aquilo que Cintra, em mais um texto “Este Espectáculo”, chama “a troca da inteligência pelo funcionalismo, da afectividade pelo comportamento correcto, da alegria pelo conforto, da imaginação pela regra social”. Aquilo que o faz sentir um inadaptado ao presente.

É a morte, a morte de parceiros da sua vida, mas também a sua própria morte individual como horizonte, que o faz pensar – embora, diz, sem medo.

E, sempre presente em Luis Miguel Cintra, o azedume contra a política: “Se tudo isto existe é porque não desisti de amar. Ao contrário do que a via da chamada Política parece querer fazer no mundo. “ (Oh, tanto discutimos isto, nunca concordando no fim mais do que no princípio.)

Finalmente, face ao capitalismo, Cintra só encontra sentido noutro plano: “Obra e graça do Espírito Santo. Não é verdade Papa Francisco? Que tudo se desorganize para que saia das minhas e das tuas mãos alguma ideia nem que seja esboçada. Para que um dia cada um seja feliz e deixe de haver algarismos. Fiquem imagens, sons, gestos. Que se feche o círculo e o Verbo volte a ser Deus.”

Em verdade vos digo: o teatro de Cintra é sempre mais do que teatro. Vale a pena lembrar que Camilo afirmou que o teatro não era “o centro da sua paixão dominante” (pelo menos, assim lemos em Luís Francisco Rebelo, “O Teatro de Camilo”, publicado na Biblioteca Breve, do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, em 1991) – apesar de a própria vida de Camilo ser fonte constante de cenas teatrais, como sugeriu José Régio, quando falou das “tragédias que ele próprio inventa (quando mais ou menos as não reproduz) sabendo, porém, terem seu paralelo na realidade”. Fazer teatro por tudo o que há no mundo para lá do teatro, pois.

E é “canja” por quê? Sobre o título, Cintra já disse “é para despistar”. Mas também explica. A folha de sala explica. É para consolar um estômago cansado de porcarias.
O ponto de Luis Miguel Cintra é sempre esse: como encontramos pé para estarmos num plano que não seja o carreirismo dominante. Que é aquilo que verdadeiramente nos estraga o estômago e nos pede uma canja com miúdos de galinha. Moelas e tal.

["Canja de Galinha (com Miúdos)" é uma produção conjunta da Companhia Mascarenhas Martins e do Museu da Marioneta, instalado este que está no Convento das Bernardas, em cuja capela vamos ao teatro. O espectáculo ficará em cena no Museu da Marioneta, em Lisboa, até 29 de Dezembro, excepto nos dias 24 e 26 de Dezembro, e pode ser visto de terça-feira a quinta, às 19h00, às sextas-feiras e sábados, às 21h30, e, ao domingo, às 17h30.]




Porfírio Silva, 23 de Dezembro de 2019
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17.12.19

Plano de não retenção no ensino básico


Fica, para registo, a minha intervenção, esta tarde, na audição do Ministro da Educação (a requerimento do CDS) sobre o plano de não retenção no ensino básico.



Porfírio Silva, 17 de Dezembro de 2019


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Construir a ponte: Ciência e Decisão Política em Portugal



(Na passada sexta-feira, 13 de Dezembro, participei na 5ª sessão do Curso Livre “Ciência e Decisão Política em Portugal”, promovido pelo Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian. Essa sessão levava o título “Construir a ponte: Ciência e Decisão Política em Portugal”. Deixo, para registo, o texto de base da minha intervenção. As imagens foram retiradas do site do Curso. )

Sendo deputado à Assembleia da República, mas sendo também investigador em filosofia das ciências, vou tentar colocar-me aqui entre as duas partes desta questão: ciência e política.
Colocar-me “entre”, na ponte, é colocar-me na perspetiva, não apenas de uma interação, mas também de uma responsabilidade mútua.
Essa responsabilidade, da política e da ciência, tem a ver com a forma como ambas se posicionam numa sociedade democrática, como ambas assumem a sua relação com outras esferas da nossa vida de comunidade e com a prossecução do bem comum.
Essa responsabilidade é partilhada, porque quer a comunidade dos praticantes de ciência quer as instituições políticas podem favorecer ou dificultar algo que me parece coletivamente desejável: que as decisões relativas à res publica sejam simultaneamente o mais informadas possível e processadas da forma mais democrática possível.
Como falamos de uma ponte, talvez não seja necessário um estudo de impacte ambiental, mas, decerto, precisamos de estudar as suas condições de possibilidade e, até, a sua relevância: saber se há quem a queira atravessar de cada uma das margens para a outra.
Portanto, ciência e política. Começo pela ciência.

O último número do The New York Review of Books traz um texto intitulado “Jailed by Bad Science”, que contém uma breve descrição de um episódio na vida de um cidadão, que se pode resumir como segue (1).
Na sequência dos atentados bombistas de março de 2004 em Madrid, foi detetada uma impressão digital numa caixa de detonadores na estação de comboios de Atocha e essa impressão digital foi comunicada pelas autoridades espanholas a bases de dados mantidas pelas autoridades de muitos países em todo o mundo. O FBI comunicou que a pessoa a quem correspondia a impressão digital era um advogado do Oregon chamado Brandon Mayfield. Face às dúvidas das autoridades espanholas, o FBI mandou um dos seus peritos a Espanha para as convencer da segurança da sua identificação e, entretanto, obteve autorização para iniciar vigilância eletrónica do seu suspeito 24 sobre 24 horas, acabando por detê-lo no início de maio, quando achou que ele se preparava para fugir, iniciando também buscas em sua casa, escritório e veículos. Duas semanas depois, enquanto Mayfield continuava na cadeia, as autoridades espanholas anunciaram que tinham determinado a quem pertencia realmente aquela impressão digital. E não era a pessoa que o FBI perseguia. Mayfield acabou por ser libertado e, uns dias depois, o FBI admitiu que tinha errado naquela identificação baseada na impressão digital.

Trata-se de um caso ilustrativo das debilidades recenseadas nas chamadas “ciências forenses”, muitas vezes decisivas no funcionamento da investigação policial e dos tribunais, tal como identificadas num relatório de 2009 da Academia Nacional das Ciência dos Estados Unidos(2). O relatório analisa o uso forense de várias técnicas, desde a análise microscópica de correspondências entre amostras de cabelo até ao estabelecimento de correspondências entre marcas de mordidelas e estruturas dentárias, passando por comparações de escrita manual, de rastos de pneus, de marcas de calçado, de vestígios de sangue, e, claro, também a comparação de impressões digitais, e muitas outras técnicas. O relatório, da responsabilidade de uma equipa que combinava pessoas das comunidades científica e da investigação policial e da justiça, identificou práticas de mau uso de ferramentas derivadas do conhecimento científico, porque os procedimentos não eram rigorosos, porque havia demasiada subjetividade envolvida na interpretação, porque faltava independência aos técnicos que faziam esse trabalho (por exemplo, por funcionarem no seio de organismos policiais ou por saberem qual o resultado esperado pela autoridade que pedia uma análise), porque se reclamava cientificidade para aplicações que nunca tinham sido realmente testadas por cientistas, porque havia relutância em admitir erros nos procedimentos. E, ainda por cima, como também sublinha o artigo em causa, os tribunais tendiam a aceitar declarações demasiado categóricas acerca da valia científica do testemunho de pessoas que se apresentam como peritos, sem que, muitas vezes, esses atributos fossem merecidos.

Serve isto para dizer o quê? Para negar a utilidade de técnicas baseadas em conhecimento científico, que nos permitem ver mais do que seria possível a olho nu e para lá do momento presente? Não é isso que pretendemos. O que importa é compreender que a ciência é um fenómeno complexo, que há muitas camadas de conhecimento envolvidas em cada aplicação concreta (por exemplo, as ciências auxiliares envolvidas na instrumentação) e que os resultados dessa complexidade nem sempre são antecipados, que a ciência é também o leque de procedimentos e cautelas institucionais relevantes (por exemplo, é pernicioso que o investigador seja dependente de uma hierarquia que pressiona a obtenção de certos resultados) e que atitudes individuais desleais podem levar até ao extremo da fraude científica.

A verdade é que o puro fascínio pelos instrumentos pode ser enganador. Lembremos que Galileu, quando virou o telescópio para os céus e observou novas estrelas, concluiu contra as teorias aristotélicas acerca da distinção entre uma região sublunar, imperfeita e sujeita a mudança, e uma região supralunar, perfeita e imutável. Contudo, a verdade é que Galileu não dispunha, nessa altura, de uma teoria ótica que permitisse explicar o funcionamento do telescópio, de forma a sustentar que aquelas estrelas eram grandes, mas muito longínquas (estando numa região supralunar) em vez de serem pequenas e próximas (estando na região infralunar). A conclusão que tirou não era um resultado estritamente observacional, mas também o resultado de uma preferência filosófica pela interpretação que contrariava a conceção tradicional e favorecia a nova conceção copernicana. O que a instrumentação diz pode ser metafisicamente influenciado (3).

As chamadas ciências forenses fornecem um exemplo claro das possíveis consequências de usos inadequados do conhecimento científico. Mas há muitos outros exemplos, como as consequências sociais de políticas económicas e financeiras baseadas em teorias económicas irrealistas, mesmo quando suportadas em pesada utensilagem matemática.
Claro que só percebemos a complexidade do problema se, ao mesmo tempo, não perdermos de vista a enorme contribuição positiva do conhecimento científico para técnicas com grande fiabilidade, como é o caso, para voltarmos ao domínio forense, dos testes de ADN, que não só permitem detetar a culpabilidade, como têm permitido livrar muitas pessoas de suspeitas injustas.

Precisamos de voltar a pensar filosoficamente acerca da ciência.

Sem dúvida que a ciência é um dos empreendimentos humanos mais maravilhosos, quer olhemos para ela apenas do ponto de vista do amor ao saber, quer olhemos para aquilo que a ciência permitiu conquistar em termos de bem-estar da humanidade.
Sem dúvida que precisamos preservar o papel do conhecimento científico na boa condução das nossas comunidades, especialmente numa época em que líderes políticos poderosos se comportam como ignorantes arrogantes – mas também numa época em que outros líderes políticos usam a ciência e a tecnologia como meios de dominação capazes de construir totalitarismos ferozes.
Nenhum empreendimento humano tem só uma cor. Não é preciso rebuscar muito para trazer à memória práticas que se legitimaram em nome da ciência embora sejam, à luz do nosso critério de hoje, inaceitáveis. Podemos citar o eugenismo e a sua pretensão a uma base científica. Ou podemos citar a história de Saartjie Baartman, uma mulher sul-africana da etnia hotentote, celebrizada no livro e no filme “Vénus Negra”, que foi para a Europa, onde foi exposta como uma aberração e, digamos assim, “estudada” por cientistas em modos escandalosos para os nossos padrões de hoje quanto a direitos humanos.

Há outros empreendimentos humanos com um registo histórico tão ou mais trágico do que estes exemplos, desde a política à religião. Mas isso não nos dispensa de pensarmos sobre o que é apropriado exigir à ciência. E, na verdade, chega a ser assustador como, para alguns, ciência é associada a certeza, compreender como uma perspectiva falibilista acerca da ciência é tão mal vista em alguns quadrantes. Não é preciso ter lido o radical Feyerabend, basta ter lido Popper, para perceber o dano que causa não se compreender a importância do pensamento metafísico, e do pensamento filosófico em geral, para as realizações da ciência.

Este muro vem de longe. David Hume acaba An Inquiry Concerning Human Understanding (1748), com estas palavras: “Se tomarmos nas mãos um volume qualquer – de teologia ou de metafísica das escolas, por exemplo – perguntemos: contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de facto e existência? Não. Atiremo-lo, pois, às chamas, dado que só pode conter sofismas e ilusões.” Infelizmente, ainda é assim que alguns falam, pretensamente em nome da ciência e descartando outros saberes.

No fundo, e para simplificar, precisamos evitar o cientismo, porque o cientismo é o pior ponto de partida para dar à ciência a importante função que ela deve ter na sociedade e na comunidade política.

Genericamente, podíamos dizer que o cientismo é a ideia de que a ciência é co-extensa à razão, a ideia de que tudo na ciência é racional e nada fora da ciência é racional (4).

Mas podemos ser mais modestos e procurar erros de cientismo de forma menos genérica e mais concreta.

A filósofa Susan Haack colocou a correta apreciação do papel da Razão e da Ciência entre dois erros, a saber, por um lado, o cinismo, termo que a filósofa usa para designar a incapacidade para reconhecer as notáveis realizações intelectuais da ciência e os benefícios reais que ela tornou possível, e, por outro lado, o cientismo, aquela atitude acriticamente reverente para com a ciência, incapaz de reconhecer a sua falibilidade, as suas limitações e, até, os seus perigos potenciais (5) .

Susan Haack elencou seis indicadores de cientismo (6).

Primeiro, o uso honorífico do qualificativo “científico” como garantia de certeza (esquecendo que todas as teorias científicas sólidas estão rodeadas de hipóteses científicas que começam por ser altamente especulativas e muitas acabam por ter de ser abandonadas, no decurso do próprio avanço da ciência).

Segundo, a tentativa de reivindicar autoridade pelo uso inapropriado de sinais exteriores de cientificidade, como números, terminologia ou modelos – como faz abundantemente a disciplina da economia, que falha massivamente as suas predições e receitas, apesar do recurso intensivo às ferramentas matemáticas e, até, no passado, de ter tentado explicar o comportamento económico com modelos importados da física de partículas. (Vale a pena, como curiosidade histórica, lembrar o economista marginalista Irving Fisher, que se deu ao exercício de expressar uma teoria económica altamente matematizada com recurso minucioso ao formalismo importado diretamente da física energética, dos campos, dos vetores, dos princípios de conservação, apresentando mesmo uma tabela de correspondências entre noções físicas e noções económicas, por exemplo, partícula/indivíduo, espaço a n dimensões / espaço de n mercadorias, energia/utilidade, trabalho/desutilidade.)

Terceiro indicador de cientismo, um falso rigor na demarcação entre ciência e não ciência (inclusivamente, na esteira do positivismo, tentando tratar como desprovido de sentido tudo o que não corresponda a certos padrões de verificação empírica), o que conduziu a episódios tão significativos como Karl Popper ter em tempos considerado que a teoria da evolução natural era um programa de investigação metafísica, ou a imbróglios conceptuais como atirar para o limbo da cientificidade disciplinas formais como a matemática ou disciplinas normativas como o direito, quando a verdade é que, por exemplo, entre a cosmologia e a metafísica, ou entre a psicologia e a filosofia da mente, não há uma fronteira nítida, nem fixa, entre ciência e filosofia.

Quarto, uma pretensão exclusivista centrada no método científico, passando por cima do facto de que não há qualquer tipo de acordo geral entre cientistas acerca do que seja o método científico, e descurando que o rigor da investigação e do confronto com a evidência não é um exclusivo das ciências naturais.

Quinto, a pretensão de que todos os tipos de questões relevantes têm de ser respondidas por uma abordagem científica, quando é fácil identificar questões que, podendo e devendo ser clarificadas pelo melhor conhecimento científico disponível, têm de ser respondidas noutro plano. Decisões sobre a aceitabilidade moral do aborto, ou sobre a sua legalização, devem ser iluminadas por conhecimento médico, mas não são decisões científicas. Decisões sobre a forma de lidar com as alterações climáticas têm de ser informadas por conhecimento científico, mas essas decisões são políticas, porque o seu enquadramento no plano geral das políticas públicas implica opções, opções essas que são constrangidas, mas não completamente determinadas, pelos objetivos climáticos a atingir.

Sexto indicador de cientismo listado por Susan Haack: denegrir áreas de reflexão não científicas, como se os desenvolvimentos em cosmologia ou em biologia evolutiva, por exemplo, que realmente retiraram pertinência a certo tipo de explicações sobrenaturais, eliminassem a relevância de toda a reflexão, filosófica por exemplo, sobre o sentido da vida ou do nosso lugar no universo.

O que proponho é que uma abordagem que evite os erros do cientismo promove a responsabilidade social partilhada, dos cientistas e dos demais cidadãos, assumindo a ciência como uma parte essencial do empreendimento por uma sociedade civilizada, mas que essa responsabilidade não é honrada quando os praticantes de ciência se colocam na posição de excluir o valor de outras modalidades de pensamento e de outras modalidades de ação.

Quero agora voltar-me para as responsabilidades da política e deixar alguns elementos de reflexão acerca de qual o tipo de vida política democrática que necessitamos para podermos beneficiar do contributo da ciência para a nossa vida em comum.

Vivemos em democracia representativa e é desse ponto que vou partir.
Como funciona a representação?

Por vezes a democracia representativa é concebida como um sistema que funciona com delegados. Nesta visão, os eleitores elegem representantes como seus delegados. Os deputados são considerados delegados que devem atuar simplesmente como porta-vozes das preferências expressas dos eleitores do seu círculo eleitoral, sendo, assim, concebidos como desprovidos de autonomia. Essencialmente, o representante não é mais do que a voz daqueles que não estão presentes.

Numa visão estrita do modelo do representante como delegado, o deputado não tem sequer margem para conceber qual seria o interesse dos eleitores do seu círculo, porque isso já seria de certo modo especulativo. O delegado deveria, apenas, representar as preferências expressas dos seus eleitores.

Este modelo foi contestado, no contexto da prática política efetiva, por Edmund Burke (1729-1797), um filósofo irlandês, que alguns consideram ter criado o que chamarei aqui “modelo fiduciário de representação”, à falta de me ocorrer tradução mais fiel para “trustee model of representation”.

Neste modelo de representação, o eleito é um “trustee” em quem os eleitores depositam confiança para agir segundo um princípio de defesa do bem comum e do interesse da comunidade no seu todo (por exemplo, o interesse nacional), mesmo que isso signifique ir contra os interesses a curto prazo dos seus próprios eleitores no respetivo círculo eleitoral.

Uma formulação deste modelo de representação acontece no discurso proferido por Burke ao receber a notícia de ter sido eleito membro do Parlamento inglês pela cidade de Bristol, a 3 de novembro de 1774.
Afirma, nessa altura:
“O vosso representante deve-vos, não apenas a sua diligência, mas o seu juízo; e ele trai-vos, em vez de vos servir, caso ele sacrifique o seu juízo à vossa opinião.”
E acrescenta:
“O Parlamento não é um congresso de embaixadores de interesses diferentes e hostis, que cada um deve assegurar, como um agente e um defensor, contra outros agentes e defensores; o Parlamento é uma assembleia deliberativa de uma nação, com um interesse, o da totalidade – onde nenhum propósito local, nem preconceitos locais, deveriam guiar, exceto o bem comum, resultante da razão geral do todo. Vós escolheis um membro, de facto; mas, tendo-o escolhido, ele não é membro de Bristol, mas é um membro do Parlamento.”
Nestes termos, o parlamento é essencialmente deliberativo: aí se trocam razões entre interesses diferentes, não para fazer prevalecer algum desses interesses particulares, mas para encontrar o interesse do todo.
No decurso do seu raciocínio, Burke aponta claramente para o carácter deliberativo do mecanismo. Afirma:
“Se o governo fosse uma questão de vontade de qualquer parte, a vossa vontade, sem dúvida, deveria ser superior. Mas o governo e a legislação são matérias de razão e de juízo e não de inclinação.”
E, refletindo sobre a ideia de que os seus eleitores lhe poderiam dar instruções sobre como votar no parlamento, continua:
“Que tipo de razão é essa em que a determinação precede a discussão, em que um grupo de homens delibera e outro decide e em que aqueles que formam a conclusão distam umas 300 milhas daqueles que ouvem os argumentos?”
Ou seja: o deputado não vai apenas entregar a opinião dos eleitores, vai deliberar com os outros parlamentares e assim dar sentido ao próprio parlamento como representação do todo.
Escusado será dizer que Bristol não reelegeu Burke…

Neste ponto, a questão que suscitamos é esta: embora aceitando esta conceção fiduciária de representação do todo, como responsabilidade do parlamento no seu conjunto, será isto suficiente para a democracia?
É hoje generalizada a convicção de que isto não chega para termos uma democracia funcional.
Precisamos de avançar no aprofundamento da democracia representativa, em direção a uma democracia participativa, mas também visando uma democracia deliberativa.

Além de votar, e de criar novas propostas e candidaturas, a nossa Constituição da República prevê várias formas de participação mais diretas e ativas dos cidadãos, tais como petições, a ação popular para defender no plano judicial interesses difusos (isto é, interesses da comunidade como um todo que se projetam em indivíduos concretos), referendos, constituir associações sindicais que têm variados direitos (por exemplo, participar na elaboração da legislação do trabalho, na gestão das instituições de segurança social, na contratação coletiva); criar comissões de trabalhadores, numa lógica de intervenção democrática na vida da empresa; a intervenção direta na administração da justiça (julgamentos com júri, juízes sociais em questões de trabalho ou saúde pública); as Iniciativas Legislativas de Cidadãos, isto é, projetos de lei que, em vez de serem apresentados por deputados, são apresentados por grupos de cidadãos.

As vias da democracia participativa contribuem para prevenir e corrigir uma das doenças da democracia representativa, que é uma certa separação entre representados e representantes, e contribuem para enriquecer a comunidade democrática.
Contudo, tanto a democracia representativa como a democracia participativa necessitam de outra dinâmica: a democracia deliberativa.

A democracia deliberativa responde a uma necessidade de cidadãos livres que vivem em comunidade: não basta a força (mesmo que seja a força do voto) para tomar decisões democráticas entre cidadãos livres. Temos direito a discutir as razões das decisões que são tomadas. Um órgão de soberania pode ter legitimidade para tomar uma determinada decisão, mesmo que essa decisão seja impopular (e, às vezes, é preciso tomar decisões de que muita gente discorda naquele momento). Mas o decisor deve apresentar as suas razões para essa decisão. E as pessoas interessadas devem ter oportunidade de apresentar as suas razões a favor e contra as várias opções. E cada um deve atender às razões dos outros. Pode não lhes dar razão, no sentido de não ficar convencido com os seus argumentos, mas tem de mostrar que considerou os seus argumentos: responder-lhes racionalmente, considerar as objeções e as propostas alternativas e, eventualmente, incorporar na decisão as modificações que resultem razoáveis da argumentação.

A exigência de apresentar razões, em vez de apenas impor a força do voto maioritário, é válida ainda mais para matérias reconhecidamente complexas – como são muitas das matérias que mais precisam do contributo do conhecimento científico.
Mas isto interroga a própria forma como concebemos a função parlamentar. Vejamos um exemplo.
Andou por aí, no debate eleitoral, a proposta de ter assentos vazios no parlamento, como tradução de votos em branco. Os votos em candidaturas elegeriam deputados, os votos em branco “elegeriam” assentos vazios. Que tipo de conceção da representação subjaz a uma proposta como esta? Quando um grupo de peticionários é recebido na Assembleia da República, podem ser recebidos por assentos vazios, em vez de serem recebidos por deputados? Quando é preciso elaborar uma proposta para resolver um problema, podem ser assentos vazios a fazê-la? Ou terão de ser mesmo deputados de carne e osso? Quem fiscaliza a ação do Governo, assentos vazios ou deputados? Propostas como esta denotam uma desvalorização evidente da reflexividade do representante.

Será, isso sim, no quadro de uma democracia representativa, mas também participativa, e também deliberativa, que pode trabalhar-se uma relação mais fecunda entre a ciência e a política democrática. Uma política democrática onde o conhecimento contribui mais assiduamente para a compreensão dos problemas e das potenciais soluções e onde os participantes da comunidade científica se envolvem mais profundamente na compreensão dos fatores societais e políticos que condicionam as escolhas possíveis e se envolvem deliberativamente na construção das soluções.

Para avançar nesse caminho, precisamos de adaptar as nossas instituições. Precisamos de criar os espaços de partilha, de reflexão conjunta, de elaboração, que cumpram essa aproximação deliberativa entre ciência e decisores políticos.
O Alexandre Quintanilha talvez vos queira falar do que andamos a pensar sobre isso, mas eu limito-me aqui a dar um pequeno número de exemplos que poderiam inspirar-nos por cá (7).

No Parlamento Europeu, existe, desde 1988 numa base permanente, o Painel de Avaliação das Opções Tecnológicas e Científicas, ao qual cabe contribuir para o debate e a apreciação legislativa das questões científicas e técnicas de especial relevância política, através de conhecimento científico que se pretende imparcial.
A abordagem do Painel é uma abordagem de longo prazo, deixando para outros serviços do Parlamento Europeu a resposta às exigências específicas sectoriais, ou de curto prazo, em matéria de investigação.
O Painel para o Futuro da Ciência e da Tecnologia desempenha a sua missão de várias formas, desde organizando fóruns onde políticos e cientistas discutem desenvolvimentos científicos que possam ser importantes para a sociedade, até fornecendo estudos aos órgãos parlamentares que permitam, por exemplo, avaliar o impacto potencial da introdução de novas tecnologias, passando pela promoção de atividades de avaliação tecnológica nos parlamentos nacionais.
Qualquer membro ou órgão do Parlamento Europeu pode apresentar uma proposta ao Painel, sendo este constituído por deputados de várias comissões parlamentares, incluindo a Comissão que lida com as questões relativas aos Direitos, Liberdades e Garantias.

No Reino Unido, existe o POST (Parliamentary Office of Science and Technology), um serviço com uma experiência de mais de 30 anos ao serviço quer da Câmara dos Comuns quer da Câmara dos Lordes, cuja missão consiste em prover o parlamento, a partir de dentro, com análises independentes, equilibradas e acessíveis sobre questões de políticas públicas que estejam relacionadas com ciência e tecnologia – sem deixar de, com as suas iniciativas e publicações, contribuir também para a formação de um público para estas preocupações, servindo o propósito de “estabelecer pontes entre a investigação e as políticas”.

Também, em França, existe o Office parlementaire d’Évalutation des Choix Scientifiques et Tecnologiques, comum à câmara alta (Senado) e à câmara baixa (Assembleia Nacional) do Parlamento. Este surgiu da consciência, despertada no início dos anos 1980, a propósito de debates sobre o programa nuclear, sobre o programa espacial ou, por exemplo, sobre as telecomunicações, de que o Parlamento não tinha os meios adequados para apreciar, de forma racional e independente, as decisões do governo. Ora, como é que se fiscaliza e se controla o Governo se não temos os meios para compreender em toda a sua extensão o que está a fazer e a planear? Neste “Office parlementaire”, é um deputado ou um senador que conduz os trabalhos em cada caso, reunindo os meios necessários para produzir o relatório sobre a matéria em causa, normalmente incluindo personalidades externas ao parlamento. Desde a sua criação, já produziu cerca de 200 relatórios, incluindo matérias como a micro/nano-eletrónica, o impacto de substâncias químicas na saúde humana, a biologia sintética, a estratégia nacional para a energia ou a segurança das barragens e estruturas hidráulicas.

A minha sugestão é que precisamos, por cá, de nos inspirarmos nestes exemplos e procurar respostas institucionais apropriadas a estas preocupações. Fazendo da investigação científica uma parte integrante da democracia deliberativa.



NOTAS
(1)RAKOFF, Jed S., “Jailed by Bad Science”, The New York Review of Books, Vol. 66, Nº 20, 19 de dezembro de 2019, pp.79ss
(2)National Research Council, Strengthening Forensic Science in the United States: A Path Forward. Washington, DC: The National Academies Press, 2009. https://doi.org/10.17226/12589
(3) KOYRÉ, A., Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, Lisboa, Gradiva, 1986, pp. 96-97
(4) PIGLIUCCI, Massimo, “The Problem with Scientism”, post no Blog of the American Philosophical Association, datado de 25 de janeiro de 2018, https://blog.apaonline.org/2018/01/25/the-problem-with-scientism/
(5) HAACK, Susan, Defending Science – Within Reason: Between Scientism and Cynicism, Amherst, Prometheus Books, 2003
(6) HAACK, Susan, “Six Signs of Scientism”, in Logos & Episteme, III, 1 (2012): 75-95
(7) Alexandre Quintanilha era outro dos oradores na mesma sessão.


Porfírio Silva, 17 de Dezembro de 2019

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22.11.19

O 25 de Novembro e o socialismo democrático




1. Ano após ano, quando se aproxima o dia 25 de Novembro, regista-se uma pequena agitação política em torno da comemoração da efeméride, onde surgem especialmente vocais os que gostariam de promover no calendário comemorativo alguma data que concorresse com o 25 de Abril como marco da construção da nossa democracia. Mais uma vez, especialmente tendo por palco a Assembleia da República, isso volta a acontecer este ano. Normalmente avesso a concorrer em exercícios de revisionismo, desta vez entendo dizer algumas palavras sobre o tema – colocando-me na minha perspectiva de sempre: a do socialismo democrático.

2. No seio da esquerda – ou, mais propriamente, para o tema presente, no seio das esquerdas – há mais de um século que temos a divergência acerca da opção entre revolução e democracia representativa. Situo-me, hoje como sempre, do lado dos que entendem que a democracia representativa é o melhor sistema para abrir caminho a uma vida melhor para a generalidade dos cidadãos – entendendo a “vida melhor” tanto na dimensão material como na dimensão existencial da liberdade e da pertença digna a uma comunidade de iguais. Não sou adepto de nenhum tipo de regime ou processo onde alguns, em nome dos amanhãs que cantam, se encarregam de acelerar a história na direcção de qualquer coisa que eles acham ser o futuro – não hesitando sequer quando os supostos destinatários de tais benfeitorias são forçados a aceitar a benesse. No seu pior, as revoluções acabam em ditadura. No sentido em que rejeito esses processos e abomino os efeitos práticos da acção dessas autoproclamadas vanguardas, não sou revolucionário. Sou mais do tipo social-democrata, por isso mesmo. Não acredito em regimes revolucionários, porque a história mostra que tendem a cristalizar em sistemas opressivos – mesmo quando se pretendem de esquerda. Não é por acaso que o PS sempre se reclamou do socialismo democrático – e todos os socialistas democráticos entendem que primeiro está a democracia e só depois o socialismo. Para nós, faz sentido haver democracia sem socialismo, mas não faz sentido haver socialismo sem democracia.

3. Entretanto, aceito e apoio plenamente o papel positivo que alguns processos revolucionários desempenham na história, quando permitem o desmantelamento de regimes ditatoriais e proporcionam o desmoronar de construções sociais opressivas e retrógradas, abrindo caminho à democratização. É o caso da revolução que se seguiu à acção militar de 25 de Abril de 1974, que permitiu em pouco tempo abalar fortemente as estruturas de dominação política, económica, social e cultural montadas durante décadas de um regime fortemente ideológico marcado por Salazar. Basta ver os profundos equívocos que continuam a atravessar, por exemplo, a sociedade espanhola, para entender como um processo revolucionário tem virtualidades libertadoras que raramente se conseguem em processos de transição onde a liberdade é concedida pelos seus inimigos aos herdeiros que escolheram para prevenir a derrocada. É verdade que uma revolução tem custos que uma transição à espanhola pode poupar, mas a suave transição sem ruptura também tem zonas escuras, como mostra o recente episódio da retirada de Franco do Vale dos Caídos. É claro que, numa revolução, muita coisa muda e muita coisa fica essencialmente na mesma, mas o nosso processo revolucionário deu ao país um abanão muito necessário. Aceito o carácter positivo de processos revolucionários que servem para conduzir a uma verdadeira democracia representativa – admitindo, logo, que a democracia representativa terá de ser desenvolvida para ser também democracia participativa e democracia deliberativa.

4. O processo revolucionário português foi essencialmente pacífico e bem-sucedido. Passou por muitos momentos difíceis, por tentativas de o reorientar à força, mas conseguiu sempre voltar à matriz mais pura das aspirações democráticas. O 25 de Novembro, tento redundado na vitória daqueles que queriam que todos pudessem participar numa democracia representativa guiada essencialmente pelas escolhas de todo o povo, foi um momento importante do processo português de libertação da comunidade política. O 25 de Novembro, ao ter resultado no que resultou, fez parte do processo revolucionário de transição para a democracia. Não há nenhuma razão para um socialista democrático se envergonhar do 25 de Novembro. Pelo contrário: no 25 de Novembro saíram derrotadas algumas concepções erradas e perigosas acerca do que devia ser o nosso regime.

5. A questão é: então, em que sentido é que vale a pena comemorar o 25 de Novembro e qual é o 25 de Novembro de um socialista democrático? A minha resposta é: não alinho no 25 de Novembro dos revisionistas que fazem uma leitura enviesada desse momento. E nem todos os que estiveram do lado dos vencedores no 25 de Novembro merecem o meu respeito. Explico-me. Os revisionistas querem comemorar o 25 de Novembro como sendo o fim do 25 de Abril. Não concordo e não aceito: o que foi positivo no 25 de Novembro só foi possível por causa do 25 de Abril, não o contrário. Os revisionistas que querem instrumentalizar politicamente a comemoração do 25 de Novembro esquecem que alguns dos (com ou sem aspas) derrotados dessa clarificação política deram, afinal, um contributo importante para que essa data não se tivesse transformado num confronto sangrento de consequências imprevisíveis. Tanto quanto se sabe, a acção do Partido Comunista Português foi importante para se ter saído daqueles dias em paz - quanto mais não seja por ter recuado e não ter insistido numa tentativa condenada ao fracasso e à agudização do confronto. E, talvez até mais decisivo, alguns dos que agora pretendem estar do lado dos vencedores do 25 de Novembro são, verdadeiramente, derrotados. Muito claramente: ganhou, no 25 de Novembro, o lote daqueles que queriam uma democracia representativa onde todos os partidos pudessem participar. E perderam, no 25 de Novembro, todos aqueles que queriam restringir a democracia: perderam os que queriam forçar a “sua” revolução e perderam os que queriam ilegalizar os comunistas e, atrás deles, talvez também mais alguns partidos de esquerda. Por isso mesmo é que Melo Antunes teve de vir, em cima das brasas ainda quentes, afirmar que o Partido Comunista continuava a ser necessário. No 25 de Novembro também foram derrotados os que queriam voltar a atirar para a ilegalidade uma parte da esquerda portuguesa, tal como foram derrotados os que queriam obstaculizar a construção de uma democracia representativa.

6. Por último, tendo o processo revolucionário português sido essencialmente pacífico, apesar de algumas intentonas, e de ter chegado a bom porto (na medida em que permitiu construir uma democracia assente numa Constituição legitimada democraticamente), pergunto-me qual a utilidade política de tentar instrumentalizar visões parciais de certas data para efeito de luta interpartidária imediata. Não andamos a insistir em comemorar o 28 de Setembro e a maioria silenciosa, que também foi uma tentativa de forçar um rumo que estava na cabeça de uns poucos. Não insistimos em comemorar o 11 de Março e a derrota de um general megalómano e demasiado convencido da sua importância pessoal. Não insistimos em comemorar o que nos divide, nem trazemos para o combate partidário do dia-a-dia essas feridas. E ainda bem. E, para mim, certas tentativas de manipular a memória do 25 de Novembro, certas abordagens revisionistas, não passam de falta de respeito por um caminho conjunto que os portugueses fizeram para construir uma democracia que temos, hoje, de voltar a defender contra os desmemoriados. Até porque, afinal, os que foram mais decisivos para termos chegado a bom porto, para termos equilibrado os contrários, foram os socialistas democráticos organizados no PS – e os seus aliados nesse combate. E disso temos o dever de nos orgulhar.

Post scriptum. Para aqueles que se fazem donos da data para defenderem o seu revisionismo oportunista, será, talvez, aconselhável lembrar as palavras de Ramalho Eanes a propósito do 25 de Novembro: "O 25 de Novembro foi um momento fracturante e eu entendo que não devemos comemorar, os momentos fracturantes não se comemoram, recordam-se e recordam-se apenas para reflectir sobre eles. No caso do 25 de Novembro, devíamos reflectir por que é nós portugueses, com séculos e séculos de história, com uma unidade nacional feita de uma cultura distintiva profunda, por que é que nós chegámos àquela situação, por que é que chegámos à beira da guerra civil". São declarações produzidas por Ramalho Eanes a 24 de Novembro de 2015.

Porfírio Silva, 22 de Novembro de 2019
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17.11.19

Carta aberta a David Justino sobre retenções e sobre responsabilidade em política


Caro Professor David Justino,

1. O CDS e o PSD fizeram, nos últimos dias, um ensaio de dramatização política de uma linha do programa do Governo onde se inscreve o objectivo de “criar um plano de acção de não retenção no ensino básico, trabalhando de forma intensiva e diferenciada com os alunos que revelem mais dificuldades.” Mesmo depois de responsáveis governamentais, incluindo o Ministro da Educação, terem dito muito claramente que a linha de rumo não passa por “passagens administrativas”, e de o Primeiro-Ministro ter reafirmado esses esclarecimentos no debate quinzenal na Assembleia da República, o CDS e o PSD insistem na tecla do facilitismo e na acusação de que o Governo quer que os alunos passem quer saibam quer não saibam.

Isto é: o PSD e o CDS continuam incapazes de entender que facilitismo é desistirmos dos alunos; facilitismo é resignarmo-nos a uma escola que serve aqueles que aprenderiam de qualquer maneira, porque têm uma sólida retaguarda familiar e cultural proporcionada pelas suas condições socioeconómicas; facilitismo é a escola abandonar aqueles que mais precisam dela.

Na realidade, o PSD e o CDS estão a repetir o número de alarmismo e fantasia que já nos proporcionaram há quatro anos, no início da anterior legislatura: quando acabámos com os exames precoces (4º e 6º anos), que não existiam em praticamente nenhum país civilizado, a direita dizia que íamos acabar com os exames todos, com o do 9º ano e, quem sabe, também com o do 12º ano. Não era verdade, mas era um número político destinado a distorcer o que estava a ser feito e a levar o debate para longe da realidade. O PSD e o CDS voltaram agora ao mesmo processo, talvez não devesse ser motivo de espanto – mas, confesso, e este é o motivo desta carta a si dirigida, ainda me espanto com o papel que o David Justino aceita desempenhar nesta peça toda. Explicarei, no que segue, as razões do meu espanto – e acrescentarei um apelo.

2. A verdade é que o país tem um problema que precisa de ser enfrentado. Como mostram os dados, temos uma das mais elevadas taxas de retenção da Europa. Como medida pedagógica, os estudos mostram que a retenção é largamente ineficaz: na esmagadora maioria dos casos não resolve as dificuldades de aprendizagem e, demasiadas vezes, conduz ao abandono escolar, piorando o que era suposto remediar. Além disso, a retenção é uma medida socialmente enviesada, porque atinge principalmente os alunos de famílias de estratos socioeconómicos mais carenciados. Face a isto, há quem trabalhe para resolver o problema e há quem apenas se dedique a tentar prejudicar os passos dados para avançar, não hesitando em recorrer à demagogia em vez de pensar no futuro das nossas crianças e jovens.

No PS, sabemos de que lado estamos: o Governo do PS decidiu enfrentar a situação. Esse trabalho é de continuidade da legislatura anterior. Menciono, por exemplo: o Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar; o apoio tutorial específico aos alunos do 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico que ao longo do seu percurso escolar acumulem duas ou mais retenções (para acompanhamento complementar de pequenos grupos de alunos, apoiando a criação de hábitos de trabalho apropriados a melhores aprendizagens, promovendo o desenvolvimento de competências pessoais e sociais, envolvendo positivamente as famílias no processo de aprendizagem, articulando com os demais docentes a resposta às dificuldades de cada aluno e os respectivos planos de trabalho); o Projecto-Piloto de Inovação Pedagógica, desenvolvido durante três anos por sete Agrupamentos de Escolas, com o objectivo de dar-lhes mais autonomia para tomarem decisões apropriadas à sua realidade concreta, em vários planos, designadamente na constituição das turmas e na sua carga horária, no calendário escolar, na distribuição de serviço docente e na gestão do crédito horário, na gestão da matriz curricular, no apoio ao estudo no 1º ciclo, nas respostas diferenciadas para alunos consoante as necessidades individuais.

Estas diferentes linhas de acção foram avaliadas. A decisão de prosseguir com base nos resultados da acção iniciada pelo Governo no anterior mandato resulta das avaliações, que mostraram que o rumo era correcto e que devia ser prosseguido. Por exemplo, no relatório da avaliação externa do Projecto-Piloto de Inovação Pedagógica, pode ler-se: “Podemos concluir que há ganhos assinaláveis no combate à desistência e retenção escolares, sendo que na grande maioria dos contextos, a tendência aponta para a sustentabilidade destes resultados, associando-se aos mesmos a melhoria da qualidade das aprendizagens. Os Agrupamentos de Escolas que participaram no PPIP dão sinais claros de capacidade de se apropriarem do currículo e de o saberem gerir coerente e articuladamente, investindo na diversificação de práticas de ensino-aprendizagem e de avaliação, bem como envolvendo mais ativamente os alunos nesses processos. De assinalar, ainda, os evidentes benefícios no bem-estar de professores e alunos e o estreitamento das relações com os parceiros e com a comunidade em geral, decorrentes dos processos em que estão envolvidos de inovação e autonomia.”

Na realidade, o que nos propomos fazer nesta legislatura é continuar o rumo iniciado na legislatura anterior. Há razões para isso: o país obteve resultados. As taxas de retenção têm vindo a baixar, embora tenham de baixar mais (especialmente no Secundário, onde são particularmente elevadas). A taxa de abandono escolar precoce atingiu um mínimo histórico em 2018. Mas é preciso continuar o trabalho: aprofundar, melhorar e ampliar as estratégias e as medidas que deram bons resultados.

Será que o PSD e o CDS se querem pôr de fora deste esforço nacional? Seria trágico que, por oportunismo político, a oposição de direita ignorasse este desafio e apostasse na ignorância e no preconceito do “senso comum” avariado como obstáculo à acção determinada e guiada pelo que sabemos sobre estes fenómenos educativos.

3. Há razões para o questionar directamente sobre estas matérias, Professor David Justino. Foi Ministro da Educação, foi Presidente do Conselho Nacional de Educação, é hoje o primeiro vice-presidente do PSD. Tem, portanto, especiais responsabilidades pela forma como o seu partido entra nestes debates. E, em boa verdade, é de recear que a politiquice tenha prevalecido nesta circunstância. Há várias razões para esse receio. Vejamos.

Em primeiro lugar, o programa de não retenção já estava inscrito no programa eleitoral do PS, amplamente debatido e divulgado durante a campanha eleitoral. Se o PSD e o CDS achavam tão grave o que lá estava escrito, deviam tê-lo denunciado e dito em campanha eleitoral que se opunham, permitindo aos eleitores incluírem essa questão na sua decisão de voto. Não o fizeram. Ou só agora descobriram a importância da questão ou escolheram uma forma particularmente grave de distorção do debate político, escondendo dos eleitores uma matéria que consideram tão grave. Receio que só tenham focado agora esta matéria por um banal oportunismo, porque entenderam que dava momentaneamente jeito como bandeira de agitação.

Em segundo lugar, o que o PSD e o CDS criticam agora sobre a necessidade de não abusar do recurso à retenção não é novidade na acção desta equipa governativa, sendo de estranhar que agora se lembrem de gritar pelo lobo como se fosse coisa novidosa. Apenas para princípio de conversa: já o decreto-lei nº 55/2018, de 6 de Julho, assinado pelo actual Ministro da Educação e que estabelece o currículo dos ensinos básico e secundário e os princípios orientadores da avaliação das aprendizagens, determinava que, nos anos não terminais de ciclo, a retenção como medida pedagógica só deve ser tomada a título excepcional. Antes disso, desde 2016 que, por despacho, essa orientação estava reafirmada pelo anterior Governo do PS como linha a seguir. Digo “reafirmada” porque…

Em terceiro lugar, imagine-se, essa mesmíssima orientação já estava contida em legislação publicada pelo Governo de Passos Coelho, com o Ministro Crato: o Decreto-Lei 139/2012, de 5 de Julho, assinado por Passos e Crato, já previa esse carácter excepcional da retenção nos anos não terminais. Afinal, o PSD e o CDS, das três uma: ou se tornaram ainda mais retrógrados em matéria educativa (considerando facilitismo algo que o próprio Nuno Crato tinha legislado), ou legislaram de má-fé e não queriam que se aplicasse a legislação que os próprios produziram… ou não estudam as matérias e ignoram este curso dos acontecimentos – o que é grave, porque a educação merece menos amadorismo, menos improvisação e menos politiquice.

Tenho, portanto, de lhe perguntar, Professor David Justino: o primeiro vice-presidente do PSD não teria obrigação de garantir que o seu partido evita meter as matérias de política educativa nestes becos escuros da demagogia e do desconhecimento?

4. Contudo, Professor David Justino, há ainda outra razão para lhe dirigir esta carta aberta. É que seria de esperar, atendendo a públicas e solenes tomadas de posição suas, que fizesse tudo para evitar a deriva demagógica do seu partido nesta matéria da não retenção.

Como tivemos oportunidade de dizer, o nosso programa de não retenção não tem nada a ver com passagens administrativas, nem com passagens por decreto. Quem não sabe não passa, mas temos de fazer mais para que todos os alunos aprendam mais e melhor e, portanto, o chumbo seja evitado – até porque o chumbo não serve para nada e pode até conduzir o aluno para engrossar as fileiras do abandono. Há uma demonstração muito prática e directa disto que afirmo: nem o já referido Projeto-Piloto de Inovação Pedagógica, que deu autonomia reforçada a um conjunto de agrupamentos de escolas para terem melhores condições para trabalhar em prol da eliminação da retenção, conduziu a uma eliminação absoluta das retenções nas escolas envolvidas. Isto mostra que não está aqui em jogo nada que tenha a ver com passagens administrativas. Tem de fazer-se um esforço maior para o sucesso, mas não se proíbe a retenção. Face a tudo isto, Professor David Justino, julgámos, pelo seu histórico, que estaria de acordo connosco. E ficámos desagradavelmente surpreendidos pela posição do seu partido.

David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação pronunciou-se várias vezes sobre a questão da retenção. Durante o seu mandato, foi aprovada a Recomendação sobre Retenção Escolar no Ensino Básico e Secundário, a qual, por exemplo, considerava que a frequência com que se recorria à repetência não se coadunava com a determinação legal de que essa medida devia ter um carácter excepcional. Claro, isso podia ter acontecido contra a sua vontade e contra o seu voto. Terá sido o caso? Mas, independentemente disso, David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação pronunciou-se sobre a questão na primeira pessoa, de forma formal e enfática. Lembro aqui apenas uma dessas ocasiões.

Na introdução ao relatório “Estado da Educação 2014”, publicado em 2015, David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação identifica “o problema da retenção e do insucesso escolares” como “destruição sistemática de capital humano”, como “reprodução incessante das desigualdades educativas”, como “um problema de ineficiência do sistema educativo” e “um problema de iniquidade pouco compatível com o desenvolvimento social”. Diz, ainda, que se trata de um dos problemas “mais lesivos do desenvolvimento económico, social e cultural dos Portugueses”.

No mesmo texto, David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação acrescenta que “muitas das críticas que foram formuladas à Recomendação do CNE” [sobre Retenção] “expressam de forma mais evidente que existe mesmo uma ‘cultura de retenção” e que a aceitação do princípio da selectividade está profundamente impregnada em alguns sectores da sociedade portuguesa.”

Estamos inteiramente de acordo com estas formulações de David Justino Presidente do Conselho Nacional de Educação sobre o problema da retenção.

Mas, aqui, temos de perguntar: onde está este David Justino? Escondido? Arrependido? Vergado à sua condição de primeiro vice-presidente do PSD? Incapaz de lutar, na política partidária, pelas suas ideias e convicções?

Seja lá como for, temos de fazer-lhe um apelo, Professor David Justino: é importante, para a educação e para a justiça social que precisa tanto da escola pública, que não ignore neste momento as suas responsabilidades. David Justino vice-presidente do PSD tem o dever de explicar ao presidente do PSD tudo aquilo que defendeu enquanto presidente do Conselho Nacional de Educação sobre o problema da retenção, para evitar a demagogia desinformada que o Dr. Rui Rio trouxe para o debate público sobre o sucesso escolar. David Justino vice-presidente do PSD tem a responsabilidade de exercer uma forte pedagogia sobre o Presidente do PSD para libertar o Dr. Rui Rio dessa “cultura de retenção” que acarreta todos os perigos que identificou no passado e que, desgraçadamente, infectou agora o presidente do seu partido.

Este é um daqueles momentos da vida pública que definem o que vale um político. Professor David Justino, não deixe de mostrar ao país quem é, a propósito de questão tão relevante para a construção de uma sociedade decente. Este é, sem sombra de dúvida, um apelo à sua responsabilidade cidadã – especialmente relevante sendo hoje o primeiro vice-presidente do partido com a segunda maior representação parlamentar saída das recentes eleições.


Porfírio Silva, 17 de Novembro de 2019

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9.11.19

Memórias. Berlim, 1989, um dia como este, um muro como qualquer outro.




Na noite de 9 de Novembro há 30 anos, o governo da então chamada República Democrática Alemã anuncia de forma desastrada (por não corresponder exactamente ao que queriam fazer, que era uma liberalização cautelosa das saídas para o estrangeiro), anuncia, dizíamos, que os cidadãos desse país poderiam atravessar as respectivas fronteiras (de dentro para fora...) livremente. Em consequência, logo nessa noite, cerca de vinte mil alemães de leste atravessaram o posto fronteiriço de Berlim Leste para Berlim Oeste. No dia 11, as máquinas começaram a abrir mais passagens através do muro da vergonha, já que os postos normais não davam vazão à enchente dos que queriam experimentar o sabor dessa nova liberdade. Logo foram anunciadas conversações para a abertura da simbólica Porta de Brandemburgo, que só viria a tornar-se uma ampla passagem entre dois mundos em Dezembro desse ano. No fim de semana seguinte à abertura, cerca de dois milhões de alemães orientais visitaram Berlim Ocidental.

Tive a sorte de estar nessa Berlim esfuziante por esses dias. Tinha ido à conferência "Security in Europe: Challenges of the 1990's", organizada pelo Politischer Club Berlin e pela Amerika Haus Berlin,  que decorreu entre 15 e 17 desse mês, tendo ficado mais uns dois ou três dias. A conferência acabou na tarde de sexta-feira (17) e, desde aí até ao regresso no domingo, deambulei como uma esponja pela cidade que era nessa altura o centro do mundo. Havia, além do povo que estava a fazer a sua história, uma multidão de jornalistas por todo o lado, especialmente postados em frente à Porta de Brandemburgo, por haver então a expectativa de esse local histórico ser aberto imediatamente.

Descobri há algum tempo duas folhinhas que escrevi na altura, "do lado de lá", no meio da agitação. Estão a ficar roídas pelo tempo. Antes que desapareçam, transcrevo-as para este arquivo-pessoal-público.

Folha 1. "Aqui é a Marx-Engels Platz, em Berlim Leste. Hoje são 17 de Novembro de 1989. O Muro já tem aberturas mas ainda falta muita coisa. Aqui está a ocorrer uma manifestação (ou concentração) de estudantes (pelo menos parecem, pela sua juventude, apesar de também haver gente mais velha). Vim para aqui directamente da estação de metropolitano, onde comprei o meu visto e troquei os obrigatórios 25 DM por 25 marcos da DDR. Do lado de lá vale, não 1 para 1, mas 1 para 10 ou ainda mais. Há o pequeno pormenor de que tenho a máquina fotográfica da Guida ao ombro, mas não consigo tirar nenhuma fotografia. Até o azar pode ser histórico... Outro pormenor é que está um frio danado, que entra por todo o lado apesar de estar com dois pares de meias calçados, camisa, camisola de gola alta, casaco de inverno e gabardina. São aqui 15.50H."

Folha 2. "No mapa, tenho aqui uma indicação sobre a Igreja de S. Nicolau, no centro histórico de Berlim. Fui para entrar, vi que se pagavam entradas e que havia um museu. Como não estou com grande tempo para museus, fui perguntar se também se pagava para ver a igreja. Resposta: «Isto não é uma igreja. Isto é um museu.» Entendi: estamos, realmente, no Leste. São 16H 13M."

Memórias das minhas ingenuidades, pois. Como se vê, ainda havia muita coisa por mudar. Eu não falava uma palavrinha de alemão, mas recolhi um comunicado da SPARTAKIST - Herausgegeben von der Trotzkistischen Liga Deutschlands, com o título "Für eine leninistisch-trotzkistische Arbeitpartei!". E em baixo de página: "Für den Kommunismus von Lenin, Luxemburg und Liebknecht!". Ainda tenho uns jornais, uns autocolantes, uns "alfinetes de peito", desses dias. E, claro, umas pedrinhas pequeninas que eu próprio rapei do muro, à unha, enquanto outros já andavam em cima dele com picaretas.

O mundo, realmente, mudou muito. Nem tudo correu bem, como se sabe. Só que ninguém, sabendo do que fala, pode desprezar o valor da liberdade - haja o que houver, com todos os defeitos que as democracias possam ter. Isso sentiu-se naqueles dias (e ainda se sente) em Berlim. Claro, ainda há quem, por cegueira ideológica, ache que tudo não passou de uma operação das forças reaccionárias conspirando por todo o mundo. Por hoje, a esses nada a dizer.

***

(O texto acima é uma republicação recorrente. Segundo os meus registos, ele foi publicado pela primeira vez a 17/11/03, no meu primeiro blogue, o "Turing Machine", que há muito foi devorado pelas modificações da blogosfera e das redes sociais. Em Novembro de 2015, dia 9, na transição política do passismo para a esquerda plural, acrescentei um apontamento com o seguinte teor: "Como pode ser verificado, há vários anos que publico regularmente este apontamento neste dia. Faço-o, este ano, mais uma vez. Para que saibam que o meu amor à liberdade é permanente e não padece de circunstancialismos. Nem contradiz o meu forte e determinado empenho no acordo das esquerdas que está a ser concretizado nestas horas: foi já hoje, de madrugada, que a Comissão Política do PS aprovou a rejeição do programa do governo da direita e o acordo à esquerda para suportar um governo de iniciativa do PS. Votação: Sim: 69; Não: 5, Abstenções: 0.")



30.10.19

Assumir o património de quatro anos de esquerda plural






Para registo, deixo a minha primeira intervenção parlamentar na XIV Legislatura, no debate do programa do XXII Governo Constitucional, a 30 de Outubro de 2019.


***

Senhor Presidente,
Senhor Primeiro-Ministro, Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,

O XXII Governo Constitucional apresenta à Assembleia da República um programa para investir os próximos quatro anos na resposta articulada a quatro grandes desafios estratégicos: alterações climáticas, sustentabilidade demográfica, transição para o digital, combate às desigualdades.

O programa do Governo ampara essa forte ambição estratégica no compromisso com uma boa governação: contas certas para a convergência, investir na qualidade dos serviços públicos, melhorar a qualidade da democracia, e valorizar as funções de soberania.

Quer isto dizer que o XXII Governo Constitucional se propõe governar para as pessoas, para os portugueses de hoje e para os portugueses de amanhã, para todos os portugueses, porque, para nós, diferentemente de outros, o país só está melhor quando a vida das pessoas está melhor.

Nesse sentido, a missão deste Governo continua o trabalho do Governo anterior, agora com novos níveis de ambição e de exigência. Como o Primeiro-Ministro hoje voltou aqui a reafirmar, queremos dar continuidade à mudança iniciada em 2015, sabendo que não se fez tudo numa legislatura, que há ainda muito para fazer, mas que o rumo continuará a ser o mesmo: construir uma sociedade decente, melhorar as condições de vida dos cidadãos, o que exige, ao mesmo tempo, criar condições para o crescimento da economia, uma economia mais inovadora, mais inclusiva e mais limpa. É esse círculo virtuoso que temos de continuar a alimentar.

Para alcançar esse desiderato, o grupo parlamentar do Partido Socialista, agora reforçado pelo voto popular, honrará as suas responsabilidades próprias de assumir e fazer frutificar o património de quatro anos de esquerda plural bem-sucedida no parlamento e no governo, esperando dos nossos parceiros nada mais nada menos do que um empenhamento tão nítido como o nosso.

Que fique claro que nós respeitamos a pluralidade do diálogo parlamentar e não deixaremos de estudar e considerar as propostas de todos os representantes eleitos para esta Casa da Democracia.
Contudo, a verdade é que o PS representa uma ideia acerca da responsabilidade das políticas públicas que a direita não partilha, minada como está por uma conceção profundamente individualista da sociedade e por preconceitos profundos contra o papel do Estado, dos serviços públicos e dos seus trabalhadores. As batalhas pela igualdade, e contra a determinação do futuro de cada um pela condição social de partida, continuam a separar-nos profundamente da direita em políticas decisivas, por exemplo em matéria educativa.

Precisamos de juntar toda a determinação de quantos entendem que Estado Social não é assistencialismo, que o Estado Social é para todos, não é só para os mais carenciados.

Precisamos de fazer com que somem todos aqueles para quem a promoção da saúde é uma responsabilidade primária das políticas públicas.

É preciso contar com todos os que trabalham pela continuidade do investimento na escola pública como principal instrumento de redução das desigualdades e de mobilidade social, continuando a promover o sucesso escolar e a reduzir o abandono precoce, e a promover a inclusão.

Precisamos de todas as inteligências e de todas as vontades apostadas em que a transição para o digital seja oportunidade de uma sociedade assente no conhecimento, mais inclusiva, onde inovação vá a par de melhor e mais qualificado emprego, de maior equidade territorial; uma transição para o digital respeitadora dos direitos fundamentais, designadamente dos direitos dos trabalhadores.

Olhando assim para o país, e para as nossas responsabilidades, não nos equivocaremos na escolha dos parceiros. Para prosseguir o rumo sabemos que temos de ser os menos sectários de todos e, de todos, os mais flexíveis a negociar, com os olhos postos nos resultados a alcançar mais do que nas diferentes posições de partida.

No passado, a direita sonhou com o diabo para travar a recuperação de rendimentos e direitos, mas o diabo não veio e o país retomou um caminho de desenvolvimento económico e social.

A direita que tentou fazer esquecer as suas responsabilidades governativas anteriores apostando num discurso radical recebeu dos eleitores uma mensagem de desaprovação.

Infelizmente, há, nesse campo, quem não tenha aprendido grande coisa com a experiência. O líder da oposição entrou neste debate, não focado nos próximos quatro anos, mas a tentar apanhar uma boleia das “fake news” das últimas semanas. O líder da oposição entra esta legislatura a lamentar os custos da democracia, quando devia mesmo era preocupar-se com os custos da falta de democracia, com os custos do autoritarismo e da presunção de autossuficiência.

Também por isto o país não pode contar com esta direita para dar um rumo consistente à governação e às políticas públicas.

Temos, por isso, de contar com a determinação, com a inteligência e com o trabalho de todos os que sabem e querem, a partir tanto das suas diferenças como das suas convergências, dar continuidade ao essencial do rumo iniciado em 2015 e mostrar que sabemos quanto vale para os portugueses a estabilidade política e social.

O país pode, para isso, contar com o Partido Socialista, esta força da esquerda democrática que, mais uma vez, nas últimas eleições, a cidadania escolheu reforçar, para que possamos, no governo e no parlamento, continuar a assumir as nossas responsabilidades perante o país, as nossas responsabilidades perante os portugueses.


Porfírio Silva, 30 de Outubro de 2019
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24.10.19

De uma legislatura para outra




No seguimento das eleições de 6 de Outubro para a Assembleia da República, começa amanhã a XIV Legislatura, pelo que hoje é o último dia da legislatura que foi marcada por uma maioria de esquerda plural na Assembleia da República.

Sim, uso intencionalmente o termo “marcada”: a legislatura foi mesmo marcada por esta solução política, contra a tentativa da direita para negar legitimidade à acção concertada de deputados do PS, do BE, do PCP e do PEV para, em conjunto com o Governo do PS, prepararem, debaterem, modificarem e aprovarem os documentos estruturadores das políticas públicas. A legislatura foi, para muitos portugueses, marcante – por ter mostrado que os partidos de esquerda podem cooperar para dar boa governação ao país e para responderem aos (a alguns dos) anseios dos cidadãos.

Sim, uso intencionalmente a expressão “maioria de esquerda plural”: a legislatura funcionou efectivamente com base numa cooperação estruturada entre todos os partidos com representação parlamentar que se reclamam da esquerda, constituindo os deputados desses partidos a maioria que garantiu o rumo durante quatro anos. Alguns detestam a expressão “maioria de esquerda”, porque acham que o PS devia ser “charneira”, mas isso não retira nada ao facto de que tivemos uma legislatura construída à esquerda e de que sem esta maioria não teríamos podido fazer o que fizemos. Outros detestam a pluralidade à esquerda, porque acham que só é de esquerda quem pensa alinhado pelo seu diapasão, e tratam as diferenças políticas e ideológicas como traições ao catálogo, mas isso não retira nada ao facto de que as esquerdas monolíticas só existem em ditadura e em democracia só uma esquerda plural pode ser vencedora.

A consequência do funcionamento desta maioria de esquerda plural, que conteve um mecanismo de concertação parlamentar e um governo do PS, foi constatada pelo Secretário-Geral do PS logo na noite das eleições: os portugueses gostaram da “Geringonça” e querem a continuidade dessa dinâmica. Isso tem sido repetido sucessivamente por António Costa desde então, sem contradição com o facto de que as modalidades concretas de funcionamento quotidiano têm de mudar por força das novidades. Entre essas novidades conta o facto de ter desaparecido a pressão presidencial para a existência de “papéis passados” e de o PCP ter entendido que, sendo assim, as “posições conjuntas” tinham passado à história – e de, nestas circunstâncias, o PS ter tido de assumir sozinho a responsabilidade por não aceitar uma forma desequilibrada e amputada de “Geringonça”, como queriam os que acabaram a pressionar para alguns terem “casamento” e outros “união de facto”.

O que o Governo do PS e a maioria da esquerda plural conseguiram para o país em apenas quatro anos mudou o nível de exigência dos cidadãos face à política e, especialmente, face ao PS. Agora, as pessoas querem ainda mais e melhor: que foi o que dissemos na campanha que íamos fazer. O PS saiu mais forte destas eleições, tendo sido o único partido de esquerda a merecer um reforço no juízo da cidadania. Esse novo patamar de exigência é o desafio central da legislatura que começa e temos, no programa eleitoral apresentado aos portugueses, a grande ferramenta para alcançar esse desiderato: prosseguir o trabalho em prol de uma sociedade decente, na medida em que as políticas públicas (e o partido, como força social) para isso possam contribuir.

À esquerda, começaremos a falhar este desafio se promovermos leituras erradas do processo político dos últimos anos. Ainda hoje, num jornal diário, um intelectual da nossa praça, que se reclama da esquerda, escreve que “a ‘Geringonça’ foi para António Costa uma aliança táctica, não uma opção estratégica”. É difícil cometer maior injustiça do que a que essa afirmação encerra. Basta lembrar que António Costa, ainda antes de ser líder do PS, quando se candidatou às Primárias, derrubou o muro do “arco da governação”, explicando claramente que não aceitava a “reserva” da governação ao PS, PSD e CDS e sublinhando que os partidos à nossa esquerda podiam e deviam poder ser parte das responsabilidades de dar um rumo à governação do país. Esquecer o significado dessa ideia política, esquecer que começou aí a possibilidade desta esquerda plural, é padecer de uma falta de memória e de uma distorção de visão que não pode dar qualquer contributo positivo para o que falta fazer. Só podemos ver tendências (politicamente) suicidas naqueles que enchem a boca com a esquerda e a colaboração à esquerda para, na prática da luta política, tomarem como seus principais alvos outros partidos da esquerda que deu rumo ao país nos últimos anos.

Perante isto, termino uma legislatura e começo outra com a seguinte ideia: cabe ao Partido Socialista a grande responsabilidade de assumir o património de quatro anos de esquerda plural bem-sucedida no parlamento e no governo, onde todos preservam a sua identidade e, ao mesmo tempo, se fazem capazes de distinguir o principal do menos importante, em ordem à capacidade política para construir respostas aos problemas do país.

Claro que, como sempre, continuo a defender o diálogo parlamentar alargado para encontrar soluções para problemas de médio e longo prazo que, por exigirem continuidade das políticas para além da legislatura, não podem sofrer mudanças bruscas de rumo de quatro em quatro anos. Isso significa, designadamente, que não dever abandonar-se o diálogo parlamentar com o PSD – coisa que sempre defendi e que sempre esteve claro nos textos programáticos do PS nos últimos anos.

De qualquer modo, isso não pode enganar-nos: o PS não vai com todos. Por uma razão muito simples: o PS representa uma ideia acerca da responsabilidade das políticas públicas que a nossa direita não partilha, minada como está por individualismos vários e por preconceitos profundos contra o papel do Estado, dos serviços públicos e dos seus trabalhadores. As batalhas pela igualdade, e contra a determinação do futuro de cada um pela condição social de partida, continuam a separam-nos profundamente da direita em políticas decisivas (por exemplo, em matéria educativa). Por essa razão, temos de procurar na esquerda plural os interlocutores privilegiados para continuar o nosso trabalho. Continuando a trabalhar para continuarmos a ser os melhores garantes de que o diálogo produz resultados políticos palpáveis à esquerda. Para isso, temos de ser, no PS, os menos sectários de todos, os melhores negociadores de todos, os mais imaginativos a transformar pedras em pães, os mais abertos ao diálogo – e aqueles que mais persistentemente se preocupam com a melhoria das condições de vida de todos os portugueses, num quadro de estabilidade e sustentabilidade.

Trata-se, “apenas”, agora em condições diferentes, de continuarmos a ser os mesmos que fomos na anterior legislatura.


Porfírio Silva, 24 de Outubro de 2019

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12.10.19

A Geringonça morreu, viva a Esquerda Plural!




1. A solução política constituída por um formato estruturado de cooperação parlamentar entre os partidos da esquerda e por um Governo do PS, que ficou conhecido por “Geringonça”, garantiu a estabilidade política e avanços sociais durante a legislatura que ora finda. Esse formato chegou ao fim. A Geringonça acabou e isso não vai tornar as coisas mais fáceis, nem para o PS nem para o país. Gostaria, aqui, de explicitar algumas das minhas reflexões sobre esta matéria.

2. Antes de mais, quero voltar a sublinhar que fui um apoiante da primeira hora (aliás, de muitos anos antes da primeira hora) de alguma modalidade de cooperação aberta à esquerda; que continuo a ser um apoiante fervoroso da Esquerda Plural, porque acho que é o melhor para os portugueses e para o país; que sempre encarei este processo como uma luta política e não como um casamento: sempre olhei para a Esquerda Plural como intrinsecamente, e felizmente, diversa e contraditória em muitos aspectos, requerendo uma dinâmica contínua de cooperação-competição, onde o debate e a discordância fazem parte das ferramentas de construção. É assim que me posiciono na política em geral e neste texto em particular.

3. Logo na noite eleitoral, António Costa disse ao que vinha: vamos dar continuidade à Geringonça, que conquistou os portugueses. E deu o rumo: vamos falar com os parceiros destes quatro anos para ver como fazemos, num quadro de continuidade onde o PS foi reforçado pelo voto popular. E vamos falar também com o PAN e com o LIVRE. O objectivo explícito é a estabilidade política e social, que deu frutos para o país: devolveu direitos e rendimentos, atraiu investimento e permitiu-nos poupar muito em juros. (Sim, porque quem pensa em governar tem de pensar nessas coisas concretas que interessam à vida real, não pode esgotar-se na luta partidária.)

4. Na verdade, a continuação da conversa não correu bem. Sem dúvida que o PS ficaria melhor com acordos, papéis passados. Pode fazer-se mais do que está escrito, como aconteceu entre 2015 e 2019. Mas o que está escrito fornece um rumo conhecido e estrutura a cooperação política, o que foi muito importante nestes quatro anos. Por isso António Costa disse, desde o primeiro momento, que queria uma solução de estabilidade, para a legislatura. É verdade que alguns, agora, criticam essa insistência na estabilidade – mas a insistência na estabilidade era a insistência na necessidade de continuar a Geringonça. Ameaçar a estabilidade era ameaçar a Geringonça, ameaçar a Geringonça era ameaçar a estabilidade.

5. Contudo, o PCP decidiu dar um passo claro e colocar-se de fora. Tal como o PCP foi decisivo em 2015, para afirmar este processo, o PCP foi decisivo em 2019 para acabar com ele. Não acabou o mundo, mas acabou esta forma de cooperação que tão bem-sucedida foi para uma legislatura. Quem deu esse passo foi o PCP. A história apreciará devidamente esse facto.

6. O que poderia o PS fazer a partir daí? Na verdade, o SG do PS evitou extrair imediatamente as consequências do que o PCP tinha dito. António Costa fez de conta que não ouviu, julgo que para não tornar nada irreversível. Contudo, a partir do momento em que se consolidou a posição do PCP, ficou claro que fazer papéis assinados com outros parceiros seria ensaiar uma solução com parceiros de primeira e parceiros de segunda. Isso seria inaceitável e iria envenenar todas as relações à esquerda no futuro. Um dos problemas desta solução política sempre foi a concorrência entre o PCP e o BE. Isso não está melhor, está pior. Só o PS está a fazer tudo com o maior cuidado possível para levar as coisas em frente sem mais afrontamentos. Se o PS tivesse aceitado uma solução com parceiros de primeira e parceiros de segunda, o diálogo à esquerda ficaria definitivamente condenado à guerra civil generalizada. Foi o PS que teve de fazer o sacrifício de não insistir nessa tecla para proteger um futuro necessário de cooperação à esquerda. Entretanto, outros não demoraram a lançar-se sobre os despojos da Geringonça, com toda a virulência, talvez tentando ganhar agora os votos que perderam nas eleições.

7. Aqui intervém uma pergunta essencial: os que fizeram campanha contra a maioria absoluta não deviam agora disponibilizar-se para construir uma legislatura forte? Em campanha, deram a ideia de que queriam evitar a maioria absoluta do PS para que existisse uma maioria das várias esquerdas. Agora, na verdade, parecem querer a implosão da maioria das esquerdas. Não deviam ter dito, durante a campanha eleitoral, que, além de serem contra a maioria absoluta, eram também contra uma maioria de esquerda sólida e funcional? É justo que os eleitores que queriam a continuidade da Geringonça peçam contas aos partidos em que votaram sobre esta questão essencial.

8. Neste quadro, quando figuras gradas do BE afirmam que o PS decidiu acabar com a “Geringonça”, sabendo-se que não foi o PS que se pôs de fora do formato que tivemos em 2015, só podemos lamentar que o BE continue o seu caminho de ataque sistemático ao PS – desta feita recorrendo à mentira política. Podemos até compreender que o BE quisesse (ou quisesse dar a ideia de querer) uma Geringonça a dois, só PS e BE. Apesar de ser incompreensível essa pretensão à luz da declaração de guerra que Catarina Martins fez ao PS, quando afirmou (à LUSA, 15/09/2019): "A história desta legislatura é a tensão entre o Partido Socialista e a esquerda". Na verdade, o BE decidiu explorar esta circunstância para prosseguir dois dos seus objectivos: atacar o PS e atacar o PCP. Embora, claro, fazendo de conta que está “só” a atacar o PS.

O BE coloca como condição para essa Geringonça a dois, nomeadamente, uma matéria de desacordo recente com o PS: a legislação laboral. Fomos a votos com a nossa posição muito clara (a nova legislação laboral é mais favorável aos trabalhadores que a anterior, há muitos anos que não acontecia em Portugal uma revisão da lei do trabalho ser para mais protecção dos trabalhadores e não para menos protecção) e, afinal, parece que a nossa posição teve mais aceitação do eleitorado do que as dos partidos que perderam votos. E, certamente, ninguém pretenderá que o PS ganhou as eleições à custa dos votos dos patrões (até porque os resultados mostram que o voto socialista está eminentemente enraizado no povo miúdo, nos de baixo). Quando vozes que projectam no espaço público as posições do BE sugerem que a posição do PS foi um brinde aos patrões, estamos apenas a assistir à retórica que certa esquerda usa quando regressa às suas teses de que o PS e a direita valem o mesmo.

Joana Mortágua é que sabe do que fala: "Não existe acordo escrito porque o PS não aceitou as condições prévias do Bloco para negociar: reverter as leis laborais da troika". Sim, as condições prévias são sinal de ultimato, não são sinal de vontade negocial. É preciso perceber que no PS também temos de respeitar os que votaram em nós.

9. Há, contudo, uma pergunta que vale a pena fazer, numa veia interpretativa. Se foi o PCP que condenou a Geringonça, porque é que o PS não insistiu mais nesse tópico? Provavelmente, teria sido mais conforme aos interesses do PS insistir com mais estrondo, publicamente, com o PCP para que aceitasse algum tipo de explicitação das convergências estratégicas com o PS no horizonte da legislatura. Isso teria sido, também, mais conforme aos interesses do país, na defesa da estabilidade política, que, não tenho dúvidas, estaria mais bem servida com papéis assinados com metas plurianuais.
Quer dizer, o PS podia ter insistido mais com o PCP que a disponibilidade do BE pedia uma disponibilidade do PCP e que só assim se poderia manter a Esquerda Plural num formato que não fosse mais fraco do que no passado. O PS podia, por exemplo, ter pedido uma segunda reunião com o PCP, para sublinhar isso, tanto privada como publicamente. Ou, em alternativa, por exemplo, pedir uma segunda reunião aos Verdes, para insistir que estava a querer trazer a CDU para o processo, podendo até pedir ao PEV os seus bons ofícios junto do PCP para o efeito. Porque é que o PS não fez nada disso? Porque é que o PS não tomou essas diligências, mesmo antecipando a sua ineficácia, para marcar melhor a sua posição?

Não estou na cabeça do Secretário-Geral, nem estou por dentro das negociações, nem falo por ninguém a não ser por mim. Mas acredito que os negociadores socialistas não quiseram sublinhar ainda mais a posição negativa que o PCP teve em todo este processo. Os socialistas, depois de terem assumido no debate eleitoral que tinham mais simpatia pela forma de trabalhar dos comunistas durante estes quatro anos, em comparação com a atitude mais agressiva e adversarial dos bloquistas, têm agora de lidar com uma posição dos comunistas que, em substância, decretaram a morte da colaboração estruturada à esquerda e lançaram o espectro de uma luta de todos contra todos no espaço da anterior maioria parlamentar. Teria sido do interesse imediato do PS deixar bem claro que esta bonita história acabou por culpa do PCP, mas o sacrifício do momento pode ser necessário, e valer a pena, para preservar o mais possível a necessária cooperação futura com os comunistas. O BE, continuando a sua saga de tomar o PS e o PCP como os seus sacos de votos futuros, em vez de tentar preservar a boa vontade entre os parceiros, optou, mais uma vez, pelo que julga garantir ganhos imediatos: atirar à cabeça do PS e sublinhar as responsabilidades do PCP no roer da corda.

10. Como alguns camaradas têm afirmado, esta solução pode ser capaz de garantir a estabilidade. Concordo. Pode. E tem de ser feito. Mas vai dar mais trabalho. Vai aumentar a incerteza. Vai estimular os comportamentos oportunistas. E, no limite, pode ocasionar um novo acontecimento de coligação negativa, que já deu ao país os anos dolorosos do passismo.

11. Todas as soluções políticas têm as suas vantagens e desvantagens, não há arranjos humanos perfeitos no mundo real. Uma maioria absoluta, que provavelmente muitos consideram que seria preferível para quem tem de governar o país, teria algumas vantagens, mas teria também a grande desvantagem de desresponsabilizar os demais partidos. Uma situação como a da recuperação do tempo de serviço dos professores, por exemplo, teria permitido ao PSD e ao CDS continuar a sua farsa política se o PS tivesse maioria absoluta – porque é mais fácil falar quando não se tem os votos necessários para aplicar aquilo que se propõe. Por outro lado, esta situação de governo minoritário do PS contém outro risco: talvez alguns dentro do PS pensem que podemos governar à peça, dentro da esquerda e também com a direita. Não me parece que seja realista esperar isso.

Primeiro, porque está agora nos ombros do PS a responsabilidade de fazer honrar a legislatura que finda e a obra da Esquerda Plural, que fez bem ao país e colocou o PS como a força mais dinâmica da esquerda portuguesa e uma das mais bem-sucedidas da esquerda europeia. Honrar o que está feito é fazer agora mais e melhor. Na legislatura que finda, não fizemos nada que um bom governo social-democrata não devesse fazer, mas podemos ter deixado por fazer alguma coisa que é preciso fazer, limitados pelo posicionamento “sindical” de alguns dos nossos parceiros. Isso significa que temos de procurar soluções progressistas para problemas que não se resolvem apenas numa óptica sindical, como é o caso da necessária modernização da Administração Pública – onde a esquerda da esquerda mostra tradicionalmente uma certa falta de coragem política para assumir que a resposta pública não melhora apenas com mais dinheiro e mais funcionários, sendo necessário repensar a própria estrutura dos serviços e os sistemas de recompensa pela dedicação à causa pública. Encontrar respostas a desafios desta dimensão não pode ser realizado sem um rumo coerente, precisando de uma ambição global que não se constrói apenas com parceiros de ocasião.

Em segundo lugar, a direita que temos não é de confiança. Mesmo com Rui Rio, os dois acordos que o Governo fez com o PSD nesta legislatura (descentralização e fundos estruturais) mostraram que esta direita é traiçoeira. Com a possibilidade de termos o passismo de volta ao PSD, a fronteira à direita continua a ser clara, em nome das opções políticas que temos de fazer com os olhos nos portugueses. A tentação “centrista” que pode subsistir numa minoria do PS está desfasada da realidade, da vontade dos portugueses e dos trabalhos que temos pela frente.

É por isto que, como socialistas, cabe-nos continuar empenhados em governar no interesse geral, no interessa dos que mais precisam, no interesse do maior número. Fazer com que a morte da Geringonça seja apenas uma mudança de fórmula – uma mudança de fórmula que nos foi imposta, que não fomos nós que escolhemos.

12. A Geringonça morreu, viva a Esquerda Plural! O próximo Governo, sendo embora um Governo do PS (como foi até agora), há-de ser o Governo de uma Esquerda Plural que continue a fazer o que há a fazer pelo progresso do país e dos portugueses. Um governo de progresso, que não oponha concertação social à concertação política, antes as conjugue – para que não sejamos nós, à esquerda, a abrir espaços aos populismos disfarçados de “novos sindicalismos”. Continuar a trabalhar por uma sociedade decente, de direitos, de cidadania, de instituições democráticas mais fortes, servida por uma economia mais forte e mais justa, fazendo da nossa integração europeia um factor de desenvolvimento e de âncora num mundo global onde seria profundamente errado insistir em qualquer nacionalismo.

Há muito a fazer.



Porfírio Silva, 12 de Outubro de 2019


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