(Na passada sexta-feira, 13 de Dezembro, participei na 5ª sessão do Curso Livre “Ciência e Decisão Política em Portugal”, promovido pelo Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian. Essa sessão levava o título “Construir a ponte: Ciência e Decisão Política em Portugal”. Deixo, para registo, o texto de base da minha intervenção. As imagens foram retiradas do site do Curso. )
Sendo deputado à Assembleia da República, mas sendo também investigador em filosofia das ciências, vou tentar colocar-me aqui entre as duas partes desta questão: ciência e política.
Colocar-me “entre”, na ponte, é colocar-me na perspetiva, não apenas de uma interação, mas também de uma responsabilidade mútua.
Essa responsabilidade, da política e da ciência, tem a ver com a forma como ambas se posicionam numa sociedade democrática, como ambas assumem a sua relação com outras esferas da nossa vida de comunidade e com a prossecução do bem comum.
Essa responsabilidade é partilhada, porque quer a comunidade dos praticantes de ciência quer as instituições políticas podem favorecer ou dificultar algo que me parece coletivamente desejável: que as decisões relativas à res publica sejam simultaneamente o mais informadas possível e processadas da forma mais democrática possível.
Como falamos de uma ponte, talvez não seja necessário um estudo de impacte ambiental, mas, decerto, precisamos de estudar as suas condições de possibilidade e, até, a sua relevância: saber se há quem a queira atravessar de cada uma das margens para a outra.
Portanto, ciência e política.
Começo pela ciência.
O último número do The New York Review of Books traz um texto intitulado “Jailed by Bad Science”, que contém uma breve descrição de um episódio na vida de um cidadão, que se pode resumir como segue (1).
Na sequência dos atentados bombistas de março de 2004 em Madrid, foi detetada uma impressão digital numa caixa de detonadores na estação de comboios de Atocha e essa impressão digital foi comunicada pelas autoridades espanholas a bases de dados mantidas pelas autoridades de muitos países em todo o mundo. O FBI comunicou que a pessoa a quem correspondia a impressão digital era um advogado do Oregon chamado Brandon Mayfield. Face às dúvidas das autoridades espanholas, o FBI mandou um dos seus peritos a Espanha para as convencer da segurança da sua identificação e, entretanto, obteve autorização para iniciar vigilância eletrónica do seu suspeito 24 sobre 24 horas, acabando por detê-lo no início de maio, quando achou que ele se preparava para fugir, iniciando também buscas em sua casa, escritório e veículos. Duas semanas depois, enquanto Mayfield continuava na cadeia, as autoridades espanholas anunciaram que tinham determinado a quem pertencia realmente aquela impressão digital. E não era a pessoa que o FBI perseguia. Mayfield acabou por ser libertado e, uns dias depois, o FBI admitiu que tinha errado naquela identificação baseada na impressão digital.
Trata-se de um caso ilustrativo das debilidades recenseadas nas chamadas “ciências forenses”, muitas vezes decisivas no funcionamento da investigação policial e dos tribunais, tal como identificadas num relatório de 2009 da Academia Nacional das Ciência dos Estados Unidos(2). O relatório analisa o uso forense de várias técnicas, desde a análise microscópica de correspondências entre amostras de cabelo até ao estabelecimento de correspondências entre marcas de mordidelas e estruturas dentárias, passando por comparações de escrita manual, de rastos de pneus, de marcas de calçado, de vestígios de sangue, e, claro, também a comparação de impressões digitais, e muitas outras técnicas. O relatório, da responsabilidade de uma equipa que combinava pessoas das comunidades científica e da investigação policial e da justiça, identificou práticas de mau uso de ferramentas derivadas do conhecimento científico, porque os procedimentos não eram rigorosos, porque havia demasiada subjetividade envolvida na interpretação, porque faltava independência aos técnicos que faziam esse trabalho (por exemplo, por funcionarem no seio de organismos policiais ou por saberem qual o resultado esperado pela autoridade que pedia uma análise), porque se reclamava cientificidade para aplicações que nunca tinham sido realmente testadas por cientistas, porque havia relutância em admitir erros nos procedimentos. E, ainda por cima, como também sublinha o artigo em causa, os tribunais tendiam a aceitar declarações demasiado categóricas acerca da valia científica do testemunho de pessoas que se apresentam como peritos, sem que, muitas vezes, esses atributos fossem merecidos.
Serve isto para dizer o quê? Para negar a utilidade de técnicas baseadas em conhecimento científico, que nos permitem ver mais do que seria possível a olho nu e para lá do momento presente? Não é isso que pretendemos. O que importa é compreender que a ciência é um fenómeno complexo, que há muitas camadas de conhecimento envolvidas em cada aplicação concreta (por exemplo, as ciências auxiliares envolvidas na instrumentação) e que os resultados dessa complexidade nem sempre são antecipados, que a ciência é também o leque de procedimentos e cautelas institucionais relevantes (por exemplo, é pernicioso que o investigador seja dependente de uma hierarquia que pressiona a obtenção de certos resultados) e que atitudes individuais desleais podem levar até ao extremo da fraude científica.
A verdade é que o puro fascínio pelos instrumentos pode ser enganador. Lembremos que Galileu, quando virou o telescópio para os céus e observou novas estrelas, concluiu contra as teorias aristotélicas acerca da distinção entre uma região sublunar, imperfeita e sujeita a mudança, e uma região supralunar, perfeita e imutável. Contudo, a verdade é que Galileu não dispunha, nessa altura, de uma teoria ótica que permitisse explicar o funcionamento do telescópio, de forma a sustentar que aquelas estrelas eram grandes, mas muito longínquas (estando numa região supralunar) em vez de serem pequenas e próximas (estando na região infralunar). A conclusão que tirou não era um resultado estritamente observacional, mas também o resultado de uma preferência filosófica pela interpretação que contrariava a conceção tradicional e favorecia a nova conceção copernicana. O que a instrumentação diz pode ser metafisicamente influenciado (3).
As chamadas ciências forenses fornecem um exemplo claro das possíveis consequências de usos inadequados do conhecimento científico. Mas há muitos outros exemplos, como as consequências sociais de políticas económicas e financeiras baseadas em teorias económicas irrealistas, mesmo quando suportadas em pesada utensilagem matemática.
Claro que só percebemos a complexidade do problema se, ao mesmo tempo, não perdermos de vista a enorme contribuição positiva do conhecimento científico para técnicas com grande fiabilidade, como é o caso, para voltarmos ao domínio forense, dos testes de ADN, que não só permitem detetar a culpabilidade, como têm permitido livrar muitas pessoas de suspeitas injustas.
Precisamos de voltar a pensar filosoficamente acerca da ciência.
Sem dúvida que a ciência é um dos empreendimentos humanos mais maravilhosos, quer olhemos para ela apenas do ponto de vista do amor ao saber, quer olhemos para aquilo que a ciência permitiu conquistar em termos de bem-estar da humanidade.
Sem dúvida que precisamos preservar o papel do conhecimento científico na boa condução das nossas comunidades, especialmente numa época em que líderes políticos poderosos se comportam como ignorantes arrogantes – mas também numa época em que outros líderes políticos usam a ciência e a tecnologia como meios de dominação capazes de construir totalitarismos ferozes.
Nenhum empreendimento humano tem só uma cor. Não é preciso rebuscar muito para trazer à memória práticas que se legitimaram em nome da ciência embora sejam, à luz do nosso critério de hoje, inaceitáveis. Podemos citar o eugenismo e a sua pretensão a uma base científica. Ou podemos citar a história de Saartjie Baartman, uma mulher sul-africana da etnia hotentote, celebrizada no livro e no filme “Vénus Negra”, que foi para a Europa, onde foi exposta como uma aberração e, digamos assim, “estudada” por cientistas em modos escandalosos para os nossos padrões de hoje quanto a direitos humanos.
Há outros empreendimentos humanos com um registo histórico tão ou mais trágico do que estes exemplos, desde a política à religião. Mas isso não nos dispensa de pensarmos sobre o que é apropriado exigir à ciência. E, na verdade, chega a ser assustador como, para alguns, ciência é associada a certeza, compreender como uma perspectiva falibilista acerca da ciência é tão mal vista em alguns quadrantes. Não é preciso ter lido o radical Feyerabend, basta ter lido Popper, para perceber o dano que causa não se compreender a importância do pensamento metafísico, e do pensamento filosófico em geral, para as realizações da ciência.
Este muro vem de longe. David Hume acaba
An Inquiry Concerning Human Understanding (1748), com estas palavras: “Se tomarmos nas mãos um volume qualquer – de teologia ou de metafísica das escolas, por exemplo – perguntemos: contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de facto e existência? Não. Atiremo-lo, pois, às chamas, dado que só pode conter sofismas e ilusões.” Infelizmente, ainda é assim que alguns falam, pretensamente em nome da ciência e descartando outros saberes.
No fundo, e para simplificar, precisamos evitar o cientismo, porque o cientismo é o pior ponto de partida para dar à ciência a importante função que ela deve ter na sociedade e na comunidade política.
Genericamente, podíamos dizer que o cientismo é a ideia de que a ciência é co-extensa à razão, a ideia de que tudo na ciência é racional e nada fora da ciência é racional (4).
Mas podemos ser mais modestos e procurar erros de cientismo de forma menos genérica e mais concreta.
A filósofa Susan Haack colocou a correta apreciação do papel da Razão e da Ciência entre dois erros, a saber, por um lado,
o cinismo, termo que a filósofa usa para designar a incapacidade para reconhecer as notáveis realizações intelectuais da ciência e os benefícios reais que ela tornou possível, e, por outro lado,
o cientismo, aquela atitude acriticamente reverente para com a ciência, incapaz de reconhecer a sua falibilidade, as suas limitações e, até, os seus perigos potenciais (5) .
Susan Haack elencou seis indicadores de cientismo (6).
Primeiro, o uso honorífico do qualificativo “científico” como garantia de certeza (esquecendo que todas as teorias científicas sólidas estão rodeadas de hipóteses científicas que começam por ser altamente especulativas e muitas acabam por ter de ser abandonadas, no decurso do próprio avanço da ciência).
Segundo, a tentativa de reivindicar autoridade pelo uso inapropriado de sinais exteriores de cientificidade, como números, terminologia ou modelos – como faz abundantemente a disciplina da economia, que falha massivamente as suas predições e receitas, apesar do recurso intensivo às ferramentas matemáticas e, até, no passado, de ter tentado explicar o comportamento económico com modelos importados da física de partículas. (Vale a pena, como curiosidade histórica, lembrar o economista marginalista Irving Fisher, que se deu ao exercício de expressar uma teoria económica altamente matematizada com recurso minucioso ao formalismo importado diretamente da física energética, dos campos, dos vetores, dos princípios de conservação, apresentando mesmo uma tabela de correspondências entre noções físicas e noções económicas, por exemplo, partícula/indivíduo, espaço a n dimensões / espaço de n mercadorias, energia/utilidade, trabalho/desutilidade.)
Terceiro indicador de cientismo, um falso rigor na demarcação entre ciência e não ciência (inclusivamente, na esteira do positivismo, tentando tratar como desprovido de sentido tudo o que não corresponda a certos padrões de verificação empírica), o que conduziu a episódios tão significativos como Karl Popper ter em tempos considerado que a teoria da evolução natural era um programa de investigação metafísica, ou a imbróglios conceptuais como atirar para o limbo da cientificidade disciplinas formais como a matemática ou disciplinas normativas como o direito, quando a verdade é que, por exemplo, entre a cosmologia e a metafísica, ou entre a psicologia e a filosofia da mente, não há uma fronteira nítida, nem fixa, entre ciência e filosofia.
Quarto, uma pretensão exclusivista centrada no método científico, passando por cima do facto de que não há qualquer tipo de acordo geral entre cientistas acerca do que seja o método científico, e descurando que o rigor da investigação e do confronto com a evidência não é um exclusivo das ciências naturais.
Quinto, a pretensão de que todos os tipos de questões relevantes têm de ser respondidas por uma abordagem científica, quando é fácil identificar questões que, podendo e devendo ser clarificadas pelo melhor conhecimento científico disponível, têm de ser respondidas noutro plano. Decisões sobre a aceitabilidade moral do aborto, ou sobre a sua legalização, devem ser iluminadas por conhecimento médico, mas não são decisões científicas. Decisões sobre a forma de lidar com as alterações climáticas têm de ser informadas por conhecimento científico, mas essas decisões são políticas, porque o seu enquadramento no plano geral das políticas públicas implica opções, opções essas que são constrangidas, mas não completamente determinadas, pelos objetivos climáticos a atingir.
Sexto indicador de cientismo listado por Susan Haack: denegrir áreas de reflexão não científicas, como se os desenvolvimentos em cosmologia ou em biologia evolutiva, por exemplo, que realmente retiraram pertinência a certo tipo de explicações sobrenaturais, eliminassem a relevância de toda a reflexão, filosófica por exemplo, sobre o sentido da vida ou do nosso lugar no universo.
O que proponho é que uma abordagem que evite os erros do cientismo promove a responsabilidade social partilhada, dos cientistas e dos demais cidadãos, assumindo a ciência como uma parte essencial do empreendimento por uma sociedade civilizada, mas que essa responsabilidade não é honrada quando os praticantes de ciência se colocam na posição de excluir o valor de outras modalidades de pensamento e de outras modalidades de ação.
Quero agora voltar-me para as responsabilidades da política e deixar alguns elementos de reflexão acerca de qual o tipo de vida política democrática que necessitamos para podermos beneficiar do contributo da ciência para a nossa vida em comum.
Vivemos em democracia representativa e é desse ponto que vou partir.
Como funciona a representação?
Por vezes a democracia representativa é concebida como um sistema que funciona com delegados. Nesta visão, os eleitores elegem representantes como seus delegados. Os deputados são considerados delegados que devem atuar simplesmente como porta-vozes das preferências expressas dos eleitores do seu círculo eleitoral, sendo, assim, concebidos como desprovidos de autonomia. Essencialmente, o representante não é mais do que a voz daqueles que não estão presentes.
Numa visão estrita do modelo do representante como delegado, o deputado não tem sequer margem para conceber qual seria o interesse dos eleitores do seu círculo, porque isso já seria de certo modo especulativo. O delegado deveria, apenas, representar as preferências expressas dos seus eleitores.
Este modelo foi contestado, no contexto da prática política efetiva, por Edmund Burke (1729-1797), um filósofo irlandês, que alguns consideram ter criado o que chamarei aqui “modelo fiduciário de representação”, à falta de me ocorrer tradução mais fiel para “trustee model of representation”.
Neste modelo de representação, o eleito é um “trustee” em quem os eleitores depositam confiança para agir segundo um princípio de defesa do bem comum e do interesse da comunidade no seu todo (por exemplo, o interesse nacional), mesmo que isso signifique ir contra os interesses a curto prazo dos seus próprios eleitores no respetivo círculo eleitoral.
Uma formulação deste modelo de representação acontece no discurso proferido por Burke ao receber a notícia de ter sido eleito membro do Parlamento inglês pela cidade de Bristol, a 3 de novembro de 1774.
Afirma, nessa altura:
“O vosso representante deve-vos, não apenas a sua diligência, mas o seu juízo; e ele trai-vos, em vez de vos servir, caso ele sacrifique o seu juízo à vossa opinião.”
E acrescenta:
“O Parlamento não é um congresso de embaixadores de interesses diferentes e hostis, que cada um deve assegurar, como um agente e um defensor, contra outros agentes e defensores; o Parlamento é uma assembleia deliberativa de uma nação, com um interesse, o da totalidade – onde nenhum propósito local, nem preconceitos locais, deveriam guiar, exceto o bem comum, resultante da razão geral do todo. Vós escolheis um membro, de facto; mas, tendo-o escolhido, ele não é membro de Bristol, mas é um membro do Parlamento.”
Nestes termos, o parlamento é essencialmente deliberativo: aí se trocam razões entre interesses diferentes, não para fazer prevalecer algum desses interesses particulares, mas para encontrar o interesse do todo.
No decurso do seu raciocínio, Burke aponta claramente para o carácter deliberativo do mecanismo. Afirma:
“Se o governo fosse uma questão de vontade de qualquer parte, a vossa vontade, sem dúvida, deveria ser superior. Mas o governo e a legislação são matérias de razão e de juízo e não de inclinação.”
E, refletindo sobre a ideia de que os seus eleitores lhe poderiam dar instruções sobre como votar no parlamento, continua:
“Que tipo de razão é essa em que a determinação precede a discussão, em que um grupo de homens delibera e outro decide e em que aqueles que formam a conclusão distam umas 300 milhas daqueles que ouvem os argumentos?”
Ou seja: o deputado não vai apenas entregar a opinião dos eleitores, vai deliberar com os outros parlamentares e assim dar sentido ao próprio parlamento como representação do todo.
Escusado será dizer que Bristol não reelegeu Burke…
Neste ponto, a questão que suscitamos é esta: embora aceitando esta conceção fiduciária de representação do todo, como responsabilidade do parlamento no seu conjunto, será isto suficiente para a democracia?
É hoje generalizada a convicção de que isto não chega para termos uma democracia funcional.
Precisamos de avançar no aprofundamento da democracia representativa, em direção a uma democracia participativa, mas também visando uma democracia deliberativa.
Além de votar, e de criar novas propostas e candidaturas, a nossa Constituição da República prevê várias formas de participação mais diretas e ativas dos cidadãos, tais como petições, a ação popular para defender no plano judicial interesses difusos (isto é, interesses da comunidade como um todo que se projetam em indivíduos concretos), referendos, constituir associações sindicais que têm variados direitos (por exemplo, participar na elaboração da legislação do trabalho, na gestão das instituições de segurança social, na contratação coletiva); criar comissões de trabalhadores, numa lógica de intervenção democrática na vida da empresa; a intervenção direta na administração da justiça (julgamentos com júri, juízes sociais em questões de trabalho ou saúde pública); as Iniciativas Legislativas de Cidadãos, isto é, projetos de lei que, em vez de serem apresentados por deputados, são apresentados por grupos de cidadãos.
As vias da democracia participativa contribuem para prevenir e corrigir uma das doenças da democracia representativa, que é uma certa separação entre representados e representantes, e contribuem para enriquecer a comunidade democrática.
Contudo, tanto a democracia representativa como a democracia participativa necessitam de outra dinâmica: a democracia deliberativa.
A democracia deliberativa responde a uma necessidade de cidadãos livres que vivem em comunidade: não basta a força (mesmo que seja a força do voto) para tomar decisões democráticas entre cidadãos livres. Temos direito a discutir as razões das decisões que são tomadas. Um órgão de soberania pode ter legitimidade para tomar uma determinada decisão, mesmo que essa decisão seja impopular (e, às vezes, é preciso tomar decisões de que muita gente discorda naquele momento). Mas o decisor deve apresentar as suas razões para essa decisão. E as pessoas interessadas devem ter oportunidade de apresentar as suas razões a favor e contra as várias opções. E cada um deve atender às razões dos outros. Pode não lhes dar razão, no sentido de não ficar convencido com os seus argumentos, mas tem de mostrar que considerou os seus argumentos: responder-lhes racionalmente, considerar as objeções e as propostas alternativas e, eventualmente, incorporar na decisão as modificações que resultem razoáveis da argumentação.
A exigência de apresentar razões, em vez de apenas impor a força do voto maioritário, é válida ainda mais para matérias reconhecidamente complexas – como são muitas das matérias que mais precisam do contributo do conhecimento científico.
Mas isto interroga a própria forma como concebemos a função parlamentar. Vejamos um exemplo.
Andou por aí, no debate eleitoral, a proposta de ter assentos vazios no parlamento, como tradução de votos em branco. Os votos em candidaturas elegeriam deputados, os votos em branco “elegeriam” assentos vazios. Que tipo de conceção da representação subjaz a uma proposta como esta? Quando um grupo de peticionários é recebido na Assembleia da República, podem ser recebidos por assentos vazios, em vez de serem recebidos por deputados? Quando é preciso elaborar uma proposta para resolver um problema, podem ser assentos vazios a fazê-la? Ou terão de ser mesmo deputados de carne e osso? Quem fiscaliza a ação do Governo, assentos vazios ou deputados? Propostas como esta denotam uma desvalorização evidente da reflexividade do representante.
Será, isso sim, no quadro de uma democracia representativa, mas também participativa, e também deliberativa, que pode trabalhar-se uma relação mais fecunda entre a ciência e a política democrática. Uma política democrática onde o conhecimento contribui mais assiduamente para a compreensão dos problemas e das potenciais soluções e onde os participantes da comunidade científica se envolvem mais profundamente na compreensão dos fatores societais e políticos que condicionam as escolhas possíveis e se envolvem deliberativamente na construção das soluções.
Para avançar nesse caminho, precisamos de adaptar as nossas instituições. Precisamos de criar os espaços de partilha, de reflexão conjunta, de elaboração, que cumpram essa aproximação deliberativa entre ciência e decisores políticos.
O Alexandre Quintanilha talvez vos queira falar do que andamos a pensar sobre isso, mas eu limito-me aqui a dar um pequeno número de exemplos que poderiam inspirar-nos por cá (7).
No Parlamento Europeu, existe, desde 1988 numa base permanente, o Painel de Avaliação das Opções Tecnológicas e Científicas, ao qual cabe contribuir para o debate e a apreciação legislativa das questões científicas e técnicas de especial relevância política, através de conhecimento científico que se pretende imparcial.
A abordagem do Painel é uma abordagem de longo prazo, deixando para outros serviços do Parlamento Europeu a resposta às exigências específicas sectoriais, ou de curto prazo, em matéria de investigação.
O Painel para o Futuro da Ciência e da Tecnologia desempenha a sua missão de várias formas, desde organizando fóruns onde políticos e cientistas discutem desenvolvimentos científicos que possam ser importantes para a sociedade, até fornecendo estudos aos órgãos parlamentares que permitam, por exemplo, avaliar o impacto potencial da introdução de novas tecnologias, passando pela promoção de atividades de avaliação tecnológica nos parlamentos nacionais.
Qualquer membro ou órgão do Parlamento Europeu pode apresentar uma proposta ao Painel, sendo este constituído por deputados de várias comissões parlamentares, incluindo a Comissão que lida com as questões relativas aos Direitos, Liberdades e Garantias.
No Reino Unido, existe o POST (Parliamentary Office of Science and Technology), um serviço com uma experiência de mais de 30 anos ao serviço quer da Câmara dos Comuns quer da Câmara dos Lordes, cuja missão consiste em prover o parlamento, a partir de dentro, com análises independentes, equilibradas e acessíveis sobre questões de políticas públicas que estejam relacionadas com ciência e tecnologia – sem deixar de, com as suas iniciativas e publicações, contribuir também para a formação de um público para estas preocupações, servindo o propósito de “estabelecer pontes entre a investigação e as políticas”.
Também, em França, existe o Office parlementaire d’Évalutation des Choix Scientifiques et Tecnologiques, comum à câmara alta (Senado) e à câmara baixa (Assembleia Nacional) do Parlamento. Este surgiu da consciência, despertada no início dos anos 1980, a propósito de debates sobre o programa nuclear, sobre o programa espacial ou, por exemplo, sobre as telecomunicações, de que o Parlamento não tinha os meios adequados para apreciar, de forma racional e independente, as decisões do governo. Ora, como é que se fiscaliza e se controla o Governo se não temos os meios para compreender em toda a sua extensão o que está a fazer e a planear? Neste “Office parlementaire”, é um deputado ou um senador que conduz os trabalhos em cada caso, reunindo os meios necessários para produzir o relatório sobre a matéria em causa, normalmente incluindo personalidades externas ao parlamento. Desde a sua criação, já produziu cerca de 200 relatórios, incluindo matérias como a micro/nano-eletrónica, o impacto de substâncias químicas na saúde humana, a biologia sintética, a estratégia nacional para a energia ou a segurança das barragens e estruturas hidráulicas.
A minha sugestão é que precisamos, por cá, de nos inspirarmos nestes exemplos e procurar respostas institucionais apropriadas a estas preocupações. Fazendo da investigação científica uma parte integrante da democracia deliberativa.
NOTAS
(1)RAKOFF, Jed S., “Jailed by Bad Science”, The New York Review of Books, Vol. 66, Nº 20, 19 de dezembro de 2019, pp.79ss
(2)National Research Council,
Strengthening Forensic Science in the United States: A Path Forward. Washington, DC: The National Academies Press, 2009. https://doi.org/10.17226/12589
(3) KOYRÉ, A.,
Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, Lisboa, Gradiva, 1986, pp. 96-97
(4) PIGLIUCCI, Massimo, “The Problem with Scientism”, post no Blog of the American Philosophical Association, datado de 25 de janeiro de 2018, https://blog.apaonline.org/2018/01/25/the-problem-with-scientism/
(5) HAACK, Susan,
Defending Science – Within Reason: Between Scientism and Cynicism, Amherst, Prometheus Books, 2003
(6) HAACK, Susan, “Six Signs of Scientism”, in Logos & Episteme, III, 1 (2012): 75-95
(7) Alexandre Quintanilha era outro dos oradores na mesma sessão.
Porfírio Silva, 17 de Dezembro de 2019