1. Ano após ano, quando se aproxima o dia 25 de Novembro, regista-se uma pequena agitação política em torno da comemoração da efeméride, onde surgem especialmente vocais os que gostariam de promover no calendário comemorativo alguma data que concorresse com o 25 de Abril como marco da construção da nossa democracia. Mais uma vez, especialmente tendo por palco a Assembleia da República, isso volta a acontecer este ano. Normalmente avesso a concorrer em exercícios de revisionismo, desta vez entendo dizer algumas palavras sobre o tema – colocando-me na minha perspectiva de sempre: a do socialismo democrático.
2. No seio da esquerda – ou, mais propriamente, para o tema presente, no seio das esquerdas – há mais de um século que temos a divergência acerca da opção entre revolução e democracia representativa. Situo-me, hoje como sempre, do lado dos que entendem que a democracia representativa é o melhor sistema para abrir caminho a uma vida melhor para a generalidade dos cidadãos – entendendo a “vida melhor” tanto na dimensão material como na dimensão existencial da liberdade e da pertença digna a uma comunidade de iguais. Não sou adepto de nenhum tipo de regime ou processo onde alguns, em nome dos amanhãs que cantam, se encarregam de acelerar a história na direcção de qualquer coisa que eles acham ser o futuro – não hesitando sequer quando os supostos destinatários de tais benfeitorias são forçados a aceitar a benesse. No seu pior, as revoluções acabam em ditadura. No sentido em que rejeito esses processos e abomino os efeitos práticos da acção dessas autoproclamadas vanguardas, não sou revolucionário. Sou mais do tipo social-democrata, por isso mesmo. Não acredito em regimes revolucionários, porque a história mostra que tendem a cristalizar em sistemas opressivos – mesmo quando se pretendem de esquerda. Não é por acaso que o PS sempre se reclamou do socialismo democrático – e todos os socialistas democráticos entendem que primeiro está a democracia e só depois o socialismo. Para nós, faz sentido haver democracia sem socialismo, mas não faz sentido haver socialismo sem democracia.
3. Entretanto, aceito e apoio plenamente o papel positivo que alguns processos revolucionários desempenham na história, quando permitem o desmantelamento de regimes ditatoriais e proporcionam o desmoronar de construções sociais opressivas e retrógradas, abrindo caminho à democratização. É o caso da revolução que se seguiu à acção militar de 25 de Abril de 1974, que permitiu em pouco tempo abalar fortemente as estruturas de dominação política, económica, social e cultural montadas durante décadas de um regime fortemente ideológico marcado por Salazar. Basta ver os profundos equívocos que continuam a atravessar, por exemplo, a sociedade espanhola, para entender como um processo revolucionário tem virtualidades libertadoras que raramente se conseguem em processos de transição onde a liberdade é concedida pelos seus inimigos aos herdeiros que escolheram para prevenir a derrocada. É verdade que uma revolução tem custos que uma transição à espanhola pode poupar, mas a suave transição sem ruptura também tem zonas escuras, como mostra o recente episódio da retirada de Franco do Vale dos Caídos. É claro que, numa revolução, muita coisa muda e muita coisa fica essencialmente na mesma, mas o nosso processo revolucionário deu ao país um abanão muito necessário. Aceito o carácter positivo de processos revolucionários que servem para conduzir a uma verdadeira democracia representativa – admitindo, logo, que a democracia representativa terá de ser desenvolvida para ser também democracia participativa e democracia deliberativa.
4. O processo revolucionário português foi essencialmente pacífico e bem-sucedido. Passou por muitos momentos difíceis, por tentativas de o reorientar à força, mas conseguiu sempre voltar à matriz mais pura das aspirações democráticas. O 25 de Novembro, tento redundado na vitória daqueles que queriam que todos pudessem participar numa democracia representativa guiada essencialmente pelas escolhas de todo o povo, foi um momento importante do processo português de libertação da comunidade política. O 25 de Novembro, ao ter resultado no que resultou, fez parte do processo revolucionário de transição para a democracia. Não há nenhuma razão para um socialista democrático se envergonhar do 25 de Novembro. Pelo contrário: no 25 de Novembro saíram derrotadas algumas concepções erradas e perigosas acerca do que devia ser o nosso regime.
5. A questão é: então, em que sentido é que vale a pena comemorar o 25 de Novembro e qual é o 25 de Novembro de um socialista democrático? A minha resposta é: não alinho no 25 de Novembro dos revisionistas que fazem uma leitura enviesada desse momento. E nem todos os que estiveram do lado dos vencedores no 25 de Novembro merecem o meu respeito. Explico-me. Os revisionistas querem comemorar o 25 de Novembro como sendo o fim do 25 de Abril. Não concordo e não aceito: o que foi positivo no 25 de Novembro só foi possível por causa do 25 de Abril, não o contrário. Os revisionistas que querem instrumentalizar politicamente a comemoração do 25 de Novembro esquecem que alguns dos (com ou sem aspas) derrotados dessa clarificação política deram, afinal, um contributo importante para que essa data não se tivesse transformado num confronto sangrento de consequências imprevisíveis. Tanto quanto se sabe, a acção do Partido Comunista Português foi importante para se ter saído daqueles dias em paz - quanto mais não seja por ter recuado e não ter insistido numa tentativa condenada ao fracasso e à agudização do confronto. E, talvez até mais decisivo, alguns dos que agora pretendem estar do lado dos vencedores do 25 de Novembro são, verdadeiramente, derrotados. Muito claramente: ganhou, no 25 de Novembro, o lote daqueles que queriam uma democracia representativa onde todos os partidos pudessem participar. E perderam, no 25 de Novembro, todos aqueles que queriam restringir a democracia: perderam os que queriam forçar a “sua” revolução e perderam os que queriam ilegalizar os comunistas e, atrás deles, talvez também mais alguns partidos de esquerda. Por isso mesmo é que Melo Antunes teve de vir, em cima das brasas ainda quentes, afirmar que o Partido Comunista continuava a ser necessário. No 25 de Novembro também foram derrotados os que queriam voltar a atirar para a ilegalidade uma parte da esquerda portuguesa, tal como foram derrotados os que queriam obstaculizar a construção de uma democracia representativa.
6. Por último, tendo o processo revolucionário português sido essencialmente pacífico, apesar de algumas intentonas, e de ter chegado a bom porto (na medida em que permitiu construir uma democracia assente numa Constituição legitimada democraticamente), pergunto-me qual a utilidade política de tentar instrumentalizar visões parciais de certas data para efeito de luta interpartidária imediata. Não andamos a insistir em comemorar o 28 de Setembro e a maioria silenciosa, que também foi uma tentativa de forçar um rumo que estava na cabeça de uns poucos. Não insistimos em comemorar o 11 de Março e a derrota de um general megalómano e demasiado convencido da sua importância pessoal. Não insistimos em comemorar o que nos divide, nem trazemos para o combate partidário do dia-a-dia essas feridas. E ainda bem. E, para mim, certas tentativas de manipular a memória do 25 de Novembro, certas abordagens revisionistas, não passam de falta de respeito por um caminho conjunto que os portugueses fizeram para construir uma democracia que temos, hoje, de voltar a defender contra os desmemoriados. Até porque, afinal, os que foram mais decisivos para termos chegado a bom porto, para termos equilibrado os contrários, foram os socialistas democráticos organizados no PS – e os seus aliados nesse combate. E disso temos o dever de nos orgulhar.
Post scriptum. Para aqueles que se fazem donos da data para defenderem o seu revisionismo oportunista, será, talvez, aconselhável lembrar as palavras de Ramalho Eanes a propósito do 25 de Novembro: "O 25 de Novembro foi um momento fracturante e eu entendo que não devemos comemorar, os momentos fracturantes não se comemoram, recordam-se e recordam-se apenas para reflectir sobre eles. No caso do 25 de Novembro, devíamos reflectir por que é nós portugueses, com séculos e séculos de história, com uma unidade nacional feita de uma cultura distintiva profunda, por que é que nós chegámos àquela situação, por que é que chegámos à beira da guerra civil". São declarações produzidas por Ramalho Eanes a 24 de Novembro de 2015.
Porfírio Silva, 22 de Novembro de 2019